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Não precisa de apresentação, este. Senhor Obaro Ejimiwe de letra maiúscula bem maior que a formatação editorial de textos como este ao comando da palavra e da música, Ghostpoet, dispara o seu quarto álbum “Dark Days + Canapés” em 18 de Agosto da plataforma de lançamento gatilho londrino Play It Again Sam pelo qual passam e passaram os dedos de Melanie di Brasio, Sigur Ros, Mogwai ou Pixies, e mais como estes, desde os anos ’80 quando em Bruxelas formava a legião expedicionária editorial que desbravou os, à data hoje banalizados pelas máquinas e talvez? algo carentes de auto-resgate reposicionador da sua postura função interventiva na sociedade em detrimento de confortos corrosivos da genuinidade, territórios artísticos designados de independentes e alternativos.
Em tempos contemporâneos freneticamente instáveis de esquizofrenias paradoxais universalmente expandidas e compactamente fragmentadas, fluidos diz-nos Bauman, Ejimiwe enfia o dedo nas feridas abertas, são várias que estes tempos são deprimentes diz o próprio, confere visibilidade ao invisível através das percepções e interpretações sensoriais, emocionais e intelectuais, germina processos mentais imaginativos, cognitivos, reflexivos, o seu objecto cultural constituindo-se como veículo de intra-representação e inter-projecção humanas, canal de expressão, comunicação e conhecimento, e responde em contraste combate de lâmina afiada cortante com solidez, objectividade e contundência.
Desta vez, Ejimiwe não está para brincadeiras. Nunca esteve aliás mas, desta vez, rosna e abocanha. “Dark Days + Canapés” é política e ética em arte, é estética ao serviço.
Para trás fica o que está para trás, “Dark Days + Canapés” crava a lança no percurso do artista como marco diferenciador; corolário dos precedentes parece ser, portal dos futuros saber-se-á na altura devida.
As letras de “Peanut Butter Blues & Melancholy Jam” (2011) e de “Some Say I So I Say Light” (2013) são íntimas, carpição sofrida e introspectiva da aridez de solidões, desamores, frustrações, incompreensões, cada um de nós que se identifique mais ou menos com a confissão vulnerável do autor; também emocional, “Shedding Skin” (2015) já se alarga na temática e postura enquanto denúncia da banalidade obscura e perpetuada de fenómenos sociais de injustiças e indiferenças, porém personalizado em referência ao círculo pessoal seu, ou nosso se a luva servir na mão. Ainda que as palavras de Ejimiwe, sempre pesadas, despidas, perspicazes e belas de se nos arrepiar a pele, se mantenham fiéis enquanto reflexo da sua experiência de vida, ele é uma esponja autobiográfica, absorve processa e escorre, dá ideia que o copo foi enchendo com o passar dos tempos recentes enquanto observador da realidade mais abrangente que ele próprio.
Uma gota a mais transborda, e “Dark Days + Canapés” é uma expansão temática assumida, contextualizado claramente no dia de hoje como a necessária válvula de escape e murro na mesa às incongruências do presente e incertezas do futuro que lhe, nos, entram pelos olhos dentro no quotidiano e não podem, devem ser ignoradas. Contida, monotonal, murmurada, lacónica. Cáustica, penetrante, confrontante, imperativa. A voz dispara certeira em fusão do comentário social ao jeito de contador de histórias em spoken-word ligeiramente cantado que pretende resgatar coisas fora de moda como cidadania e solidariedade em resposta às incertezas, inquietudes, conflitos, às desgraças desigualdades que o mundo fabrica e a que é submetido. Ejimiwe não apresenta “Dark Days + Canapés” como conceptual e político, antes move-se por desafiar-se artisticamente, criar e inovar em tradução e representação do seu momento presente. Conceptual e político é tudo o que é, e que falta faz.
Política autêntica à séria é, deve ser, um gesto e palavra pessoais; o realismo cru das letras de Ejimiwe falam em nome próprio, transparentes da angústia com que o artista vive o esvaziamento de quaisquer vestígios de humanismo nas relações sociais dominadas pelos desvarios tecnológicos em “Freakshow”: “Nothing came from following you / So easy to see / You strung me along / … / Shutters down, nothing to see / … / All these electric doors giving me jitters, man / It’s a nightmare, I’m screaming out” ou em “Dopamine If I Do”:“Instagram your foes / I do that a lot/ … / But what’s it all to you? / Problems of your own / Maybe in time you tell me why you walk the Earth all alone” ou encarna o drama humanitário dos refugiados e náufragos em Immigrant Boogie: “No one knows how many on the boat / Violent skies won’t show us where to go / … / Oh, let us in / We never bite / Me and the four kids, show some love / … / … / We won’t stay / … / It’s just the boat’s going down / … / I was dreaming of a better life / … / But I can’t swim and water’s in my lungs”. As cenas criadas imaginadas são pessoais e íntimas, afectam e comovem na forma escrita na primeira pessoa potenciando a empatia, entende-se que Ejimiwe não as veja na sua dimensão política, mas carregam implícitas camadas de conteúdos que confrontam questões bem mais abrangentes na sociedade e que dizem respeito a todos, aspecto diferenciador de “Dark Days + Canapés” para os precedentes. Não são nenhuma novidade mas, pelo andar da carruagem aos olhos de Ejimiwe, e de quem o subscreva, as palavras que se lhes dedique nunca são desperdiçadas e os vocais de aspereza atonal sem maquilhagens ilusórias só ajudam.
Ajuda também a composição musical, nuvem sombria e chão agreste que envolve todo o álbum em peso igual ao das letras na criação desta atmosfera de angústias e intranquilidades que pretende evocar. Musicalmente, “Dark Days + Canapés” é também um desvio, expansão, evolução e continuidade do que fica para trás.
A faixa de abertura “One More Sip”, quase uma intro apenas com minuto e meio de duração, lev ao engano, ainda está radicada na sonoridade do passado. Mas logo depois se nos revela que longe está a abstracção minimalista pouco mais que circunscrita a electrónica e máquinas de muitos beats e rara melodia de “Peanut Butter Blues & Melancholy Jam” (2011) que em “Some Say I So I Say Light” (2013) já se veste de alguma dinâmica instrumental ainda maioritariamente sustentada pelo processamento electrónico porém abrindo a porta às guitarras. “Shedding Skin” (2015) vira esta agulha radicalmente e surge o formato de banda, post-rock, trip-hop, sintetizadores e efeitos que “Dark Days + Canapés” apura e desloca em coesão para hemisférios de penumbra bastante mais claustrofóbica em arranjos meticulosamente costurados de pianos e sintetizadores, progressões melódicas ou riffs de guitarras eléctricas e acústicas, estas ocasionais, instrumentos de cordas e muitos efeitos e samples sonoros sob o pano constante e envolvente da secção rítmica de baixo e bateria.
Distribuídos ao longo do alinhamento surgem alguns momentos que nos deixam descomprimir do músculo tenso de outros. Não que tragam alívio algum, pois a revolta e denúncia é simplesmente alternada por desespero e desesperança, mantém-se o ambiente taciturno em “Trouble + Me”: “The mind slivers / Patient, my mind quivers / Stand and deliver / A better way, a solace for my soul / In any river / Come along, come together / Witness the happening / Where sane folk slowly lose control”. O equilíbrio do álbum vai sendo desvendado de faixa em faixa por estes desequilíbrios do mundo alternados musicalmente mas coerentemente atravessados pelo conteúdo temático. O tempo dedicado à visita das faixas “Many Moods at Midnight”, “Live>Leave” ou “Woe Is Meee” não é nada mal empregue.
Tal como não é ao resto do álbum, que não se larga facilmente assim que nos captura. Sem depressão injectada apesar de sombrio, “Dark Days + Canapés” é um álbum honesto e emocional, um trabalho necessário de quem olha à volta, vê e acha que pode contribuir, deve falar, através da sua música que evolui e se enriquece de passo em passo. Para guardar.
Tracklist:
1. One More Sip
2. Many Moods at Midnight
3. Trouble + Me
4. (We’re) Dominoes
5. Freakshow
6. Dopamine If I Do (featuring EERA)
7. Live>Leave
8. Karoshi
9. Blind as a Bat...
10. Immigrant Boogie
11. Woe Is Meee (featuring Daddy G)
12. End Times