Numa matriz sintetizada em apenas três entradas – a ética, a poética e a estética –, a genialidade admirável de Rancière parece conseguir capturar a história evolutiva, ainda que não linear, ziguezagueante nas direcções, feita de avanços e recuos, e avanços, do pensamento sobre a prática artística, a natureza da experiência sensível e o processo imaginativo do e sobre o artista e o observador, que lhe são quer causa quer efeito.
Terá porventura sido o maravilhamento justificado em convívio sobreposto com o deslumbre inconsciente – cenas à Ícaro e tal… – que infligiu à modernidade do séc. XX o vazio que abriu espaço às coisas da pós-modernidade, e outros fenómenos que tais, que, por vezes muitas ou poucas, tanto acerta na genialidade como parece ainda não ter conseguido saber, ou sequer interessar-se por, o que é e o que quer. E outras vezes ainda, em ambas. É talvez assim mesmo, e descobrir-se-á ainda que assim é que é.
Dir-se-ia que está criado, ou melhor, que ela própria contribui na sua criação, o habitat de Lolina. É a russa Inga Copeland, já por aí anda há tempos. No passado, em conjunto com o londrino Dean Blunt, enquanto membro do algo misterioso e reservado duo Hype Williams dedicado à club music experimental, bastante atmosférica, texturada, fantasmagórica, e a uma videografia originalmente bizarra, e a solo, assinando com o nome próprio. Agora, fazendo uso da persona Lolina, com “The Smoke”, longa duração editado em 14 de Março, sucessor dos EP’s “Relaxin’ with Lolina” e “Lolita” de 2015 e 2017, respectivamente, e do LP “Live in Paris” de 2016.
“The Smoke” mantém aquele registo anterior de uma certa indecifrabilidade. Adivinha-se a intenção em contrariar e resistir ou, pelo menos, em confundir, ao não atender às expectativas, às pré-disposições sobre a sua música, ou sobre “a” música e, ainda, em não se preocupar de todo com a empatia musical e emocional, ou ausência delas.
A produção é electrónica: órgãos e sintetizadores em texturas de registo lo-fi, samples atípicos, arranjos melódicos de cordas, flautas e pianos que são ora imprevistamente arbitrários, ora ameaçadoramente tensos, o corpo pesado e grave do baixo e percussão electrónica variada e alheatória. A música não o é. Nada há em “The Smoke” da música electrónica nos seus vários géneros habituais, maioritariamente sustentados em ritmo e beat. Por cima ou ao lado da música, na sua própria dimensão melódica e (a)rítmica, não sem contribuir para a bizarria e singularidade, os vocais assumem lugar de destaque ainda que, mais falando ou murmurando, poucas sejam as ocasiões em que Copeland efectivamente canta.
Em cada faixa de “The Smoke”, Copeland combina meticulosamente a combinação dos seus elementos musicais em composições contorcidas e contrastantes que derrubam sem hesitar as categorias e as classificações do esperado e do habitual.
Tudo é assimétrico, arrítmico e excêntrico, mas pleno de tonalidades. Sem surpresa, porém, o resultado é equilibrado e coeso no contexto do território de ambientes texturados e inusitados característicos da inexplicável e inclassificável elegância e sofisticação musicais de Copeland.
Lolinda não cabe em definições e regimes de estéticas musicais que não a sua. Pelo contrário, é o desinteresse da sua personalizada e distinta sonoridade por eles que ajuda a descobri-los, ou inventá-los.
The Smoke tracklist
1. Roulette
2. Fake City, Real City
3. Style and Punishment
4. The River
5. The Missing Evidence
6. A Path of Weeds and Flowers
7. Murder
8. Betrayal