Não se adivinharia o que a digressão de 2016 da banda veterana de indie-rock Shearwater viria a gerar. Em 16 de Fevereiro passado, o projecto colaborativo Loma apresentou o seu primeiro álbum, homónimo do projecto. O trio é composto por Jonathan Meiburg, compositor e vocalista da banda, que se encantou com a música da vocalista Emily Cross e do multi-instrumentalista Dan Duszynski, o duo Cross Record que abria o palco e aquecia o ambiente. O ano de 2017 foi o período de incubação num laboratório experimental em direcção a nenhum pressuposto artístico que, ao mesmo tempo, desvendava progressivamente o valor da combinação dos seus compostos.
Em “Loma”, a mistura das pegadas digitais das duas fontes referenciais é tão evidente quão surpreendente. Os arranjos musicais indie de Meiburg, tendencialmente dinâmicos oscilando entre o macio e melancólico e o expressivo e vigoroso, emparelham com o post-rock espectral e sinistro da voz fluida e etérea de Cross e o minimalismo melódico e ambiental de Duszynski. Loma não se limita a amplificar os méritos das suas partes – e fá-lo. Num contexto – artístico e não só – que impõe algo a que se vai chamando instinto como condição necessária e obrigatória à criação, cultivando a obsessão que acaba por armadilhar o valor da esfera da criatividade, vai mais longe e esquiva-se com mestria aos riscos possíveis, em tantas ocasiões inevitados, da banalidade.
Se o carácter da música, aquilo que ela é e como ela é, encontra as suas propriedades na desconstrução analítica do que, no seu conjunto, resulta na melodia, no valor de verdade inerente ao que é transmitido ou implícito ao que é induzido, no estímulo de sensações e emoções que a sua experiência sensorial despoleta, “Loma” revela-se distinto na sua individualidade por oferecer o estimulante mistério do transitório, do liminar, do ambivalente. De facto, “Loma” viaja e faz viajar por entre os antagonismos que opõem contemplação, suspensão, flutuação e tensão, angústia e ansiedade. Nesta multidisciplinaridade que atravessa os domínos entre o tóxico e o puro, “Loma”, e Loma, revelam-se habilmente coerentes e distintos.
E se a indecifrabilidade destes contrastes dos arranjos musicais são oferecidos pelo percurso das dez faixas do álbum – veja-se a quietude introspectiva, mitigante e amortecida de “Who Is Speaking” e o cinematismo enérgico, perturbador e instável de “Relay Runner” –, este mesmo carácter Janusiano, que assinala as transformações de um algo em origem de outro algo, das transições onde se encontram o passado e o futuro, é não menos encontrado em outras faixas que, individualmente, aglomeram em si mesmas as duas faces de Loma – veja-se “White Glass”, “Dark Oscillations” ou a instrumental “Jornada”. Como adenda que agrega caracterização a esta peculiaridade, repare-se que o trio alberga dois vocalistas que têm por hábito cantar as letras que criam – Meiburg e Cross –; mas, agora, Meiburg escreve e não canta, Cross não escreve e canta.
E, ainda, se algum carácter que não artístico pode ser inferido de “Loma, carácter esse que, pelo menos nos seus signos artísticos, ele aparenta não almejar mas aqui sugere-se sugerido, é precisamente este de marco de transformação – de porta Janusiana – de quem se encontra num ponto focal para onde converge o que foi e de onde diverge o que será e que, nessa turbulência, tal como de uma janela um servo cativo capta e aprecia a imensidão da paisagem sem querer apoderar-se dela – de uma janela Kantiana –, perscruta o intrínseco e extrínseco a si mesmo e perspectiva o que foi, é e será em consciência de si e do seu redor.
Entre continuidades e rupturas tonais e rítmicas, texturas melódicas espessas e minimalistas, e as temáticas líricas – de que se refere, como exemplo entre tantos e logo a abrir o álbum, os versos “What does the night / Have to do with the day? / I should not ask / What / … / What does the day / Have to do with the night?” de “Who Is Speaking”, Loma afirma-se musicalmente e conceptualmente como um pêndulo entre a contracção e a expansão. No tão vasto universo do pop-rock, em que é fácil sofrer dos malefícios da quantidade em prejuízo do memorável, “Loma” é um daqueles trabalhos, não absolutamente raros mas cada vez mais escassos, que funde inúmeras e diversas energias que convidam e empurram para uma viagem emocional sem vulgaridade, que se adivinha prolongar-se-á muito além de si mesmo, e ao qual repetidos regressos não diminuem.
“Loma” tracklist
1. Who Is Speaking
2. Dark Oscillations
3. Joy
4. I Don’t Want Children
5. Relay Runner
6. White Glass
7. Sundogs
8. Jornada
9. Shadow Relief
10. Black Willow