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Ao longo da sua vida repleta de convicções, atitudes e comportamentos liberais, inconvencionais e refractários e dos seus escritos rebeldes, insubmissos, revolucionários e, em oposição, também carregados de inspiração, esperança, energia e inocência, em que expressava os seus ideais de natureza política, social e humana, a carismática George Sand, pseudónimo e disfarce masculino de Amandine Aurore Lucile Dupin, escreveu “Nunca é demasiado tarde para seres aquilo que devias ter sido”, incitando à tranquila observação de nós mesmos e de cada parte que integra a nossa individualidade, ao activo questionamento interno, à serena desconstrução pessoal e à ousada revolução, reformulação e reinvenção interior.
“In Defense Of My Muse”, disponibilizado em 14 de Agosto passado pela editora nova-iorquina e londrina Cascine, é o prometedor e entusiasmante EP de estreia da solitária cantora, compositora, produtora e multi-instrumentalista Katy Morley que corresponde e materializa a sua calma revolução, a sua profunda reformulação e a sua estimulante reinvenção: no final de 2013 e partindo de um extremo longínquo ao de criadora musical, a norte-americana natural do Minnesota e actualmente residente em LA abandona uma carreira académica e profissional enquanto neurocientista, circunscreve-se quase em absoluto a um estúdio acompanhada de alguns instrumentos e equipamentos musicais para se dedicar e perseguir inteiramente a sua maior paixão. Movida por um indomável ímpeto para transmitir e partilhar emoções através da música, emerge no início de 2015 após dois desafiantes anos de aprendizagem, de experimentação, de descoberta e de transformação pessoal e puramente intuitiva como Morly, deixando cair a letra e no seu nome como que em símbolo do minimalismo subtractivo da sua música, apresentando-nos as quatro faixas ambientais, absorventes e extasiantes de uma composição musical subtilmente intrincada que escreveu e produziu e que compõem o EP cuja tracklist indicamos abaixo, na qual sentimos incontornável, ao ouvir pela primeira vez observando a sua sequência, um crescimento progressivo da intensidade sonora de faixa em faixa que acresce valor às inúmeras nuances e mutações melódicas e rítmicas em que cada uma delas mesmas se desdobra e expande entre tempos preenchidos em sons e tempos suspensos em silêncio, resultando num sólido trabalho, completo e coerente, distinto e original, característico e personalizado.
Este primeiro passo da carreira musical de Morly é impregnado por uma viciante, intrigante e idiossincrática sonoridade lo-fi de múltiplas camadas discretas e elegantes cuidadosamente talhadas e esculpidas, liquefeita entre os limites do electro-pop, o ambient e inúmeras matizes clássicas e corais, de facetas opostas, desiguais e ambíguas que, entre ritmo, fluidez melódica e momentos de silêncio, se revela experimentalista mas bem construída, minimalista mas ampla, libertadora mas introspectiva, poderosa mas delicada, exigente mas complacente. Sem negar o espaço e o tempo vazio e, aliás, valorizando-o tanto quanto o seu oposto preenchido por sons e palavras, “In Defense Of My Muse” invoca e encoraja ao recolhimento e à contemplação interior numa viagem sónica exploratória tirana, pesada e obscura mas ao mesmo tempo clemente, imaterial e transparente que revela a singular e criativa habilidade de Morly ao entrelaçar, faixa após faixa, diversas atmosferas atemporais, como que sem época e sem tempo, aqui contorcidas e ali distorcidas, entre lugares opacos, glaciais, cortantes e angustiantes e outros texturados, macios, tranquilizantes e acolhedores, que se materializam e diluem em memórias do passado esbatidas e empoeiradas ou em domínios do imaginário mágico e surreal, num vocabulário de alegria e melancolia, de paz e tensão, de força e fragilidade, de inocência e malevolência.
A par da sua música misteriosa e intringante, a personalidade e presença artística de Morly passou bastante despercebida, quase encoberta e talvez intencionalmente, antes do lançamento de “In Defense Of My Muse”.
Em 2010, numa participação pontual, empresta a sua voz à faixa “Faded High” que consta do álbum de estreia Relayted lançado em 2010 pelo colectivo indie Gaygns também originário de Minneapolis, que pontilha os seus passos musicais nos terrenos do soft-rock dos anos ’80 em resultado da declarada admiração do trio fundador Ryan Olson (Poliça) e Zack Coulter e Adam Hurlburt (Solid Gold) pelos 10cc e a sua "I'm Not In Love”, aos quais surpreendentemente se juntou um grupo eclético de outros contribuidores entre nomes como Justin Vernon e Mike Noyce (Bon Iver), Ivan Howard (The Rosebuds), Jake Luck, Nick Ryan (Leisure Birds), Michael Lewis (o saxofonista de Andrew Bird) ou P.O.S. (MC e rapper de Rhymesayers) num conjunto de quase trinta artistas que, após escutarem as primeiras demos do trio, se entusiasmaram pelo desafio lançado por Olson em juntar as suas inúmeras e distintas naturezas musicais nesse álbum inspirado na sonoridade dos 10CC mas que evoluísse livre e experimental nesse caldeirão de múltiplas personalidades artísticas, ao qual se seguiu uma digressão que culminou em Coachella, algumas aparições televisivas, entre as quais ao lado de Jimmy Fallon no seu Late Night, e o EP de remixes Affiliyated lançado em 2011.
O buzz em redor de Morly, ainda que mantendo-se discreto e sem levantar o véu sobre muita informação sobre a artista, começa timidamente a fazer sentir-se no início de 2015, quando a sua faixa “Maelstrom” figura na segunda compilação do excelente projecto Secret Songs Series que o canadiano Ryan Hemsworth conduz no soundcloud desde o ano passado em detrimento das editoras mais convencionais ou mais independentes, em cujos corredores se acotovelam tantos e valiosos artistas e, inevitavelmente, alguns outros mais triviais, a cuja comparação Hemsworth afirma evitar associar o projecto; um verdadeiro baú de tesouro de desconhecidos e novos artistas sob a sua curadoria orientada por dois únicos pressupostos: a inspiração numa particular cor em cada edição, e a significativa probabilidade de virmos a ouvir falar muito mais no futuro sobre cada músico selecionado em virtude do seu valor artístico. Contando com uma primeira edição disponibilizada em Setembro de 2014 e com a segunda edição datada de Janeiro de 2015 e nas quais, ao abrigo das suas aspirações e convicções de inclusão e descoberta, Hemsworth, na sua posição privilegiada enquanto renomeado produtor e DJ que recebe, que acede, que é “inundado” a cada mês com inúmeras faixas de tantos produtores e autores que batalham pela sua afirmação artística, implementa um verdadeiro espírito de partilha sem qualquer custo associado com o público geral e anónimo, curioso e interessado em descobrir nova música, a quem procura oferecer a mesma emoção e alegria de que desfruta ao descobrir música nova que o emocione e que admire em resultado único da sua paixão pela música de qualidade e pela sua difusão, e publica on-line, a cada duas semanas, uma nova faixa de um artista por si seleccionado que aprecie, no qual acredite e que valorize, compiladas de tempos a tempos em conjuntos em cada edição das suas Series. A primeira destas foi designada por shh#ffb6c1 e inspirada sob o signo das tonalidades rosa-claro, antecedendo a Serie shh#000000 dedicada à cor preto absoluto em que Morly se enquadra facilmente.
Em antevisão a “In Defense Of My Muse”, encontramos na fantástica “Maelstrom” traços de identidade musical em tudo semelhantes, notando a personalizada ausência em Morly das usuais características das criações de um típico produtor de música electrónica caracterizadas por discretas melodias, por vezes quase ausentes, de teclados sintetizados e outros instrumentos electrónicos subjacentes à linha da frente dos dominantes ritmos de drum em unidades métricas e rítmicas bem medidas mais associados aos estilos mais habituais de house, electro ou algum outro estilo comummente atribuído à autoria de um produtor de tal vertente da música. Tal como em “In Defense Of My Muse”, sem que as batidas e percussões sintetizadas estejam ausentes e em que, pelo contrário, contribuem com uma presença fundamental, num minimalismo predominantemente melódico, experimental e desconstruído, o ritmo não segue uma métrica linear e uniforme, abrindo significativo espaço para a criatividade e à evolução das harmonias vocais de Morly, não raras vezes com recurso a samples da sua própria voz, ao classicismo do piano, a inúmeros e amplos corais, a apontamentos melódicos de guitarras ao jeito do progressive-rock, aos astutos teclados sintetizados, ora subtis ora penetrantes, intermediados por curtos mas relevantes momentos de pausa e silêncio - uma pesada progressão de camadas sobrepostas que acumula, e acumula, densidade ao longo da faixa.
Adivinhamos, aliás, que a personalidade e o percurso pessoal e artístico de Morly estão intimamente vertidos em “In Defense Of My Muse”, transformado num certeiro postigo entre-aberto que nos permite espreitar a reservada e privada intimidade emocional do mundo de Morly, uma viagem imersiva e inquietante à profundeza do seu mundo interior que reflecte histórias pessoais de crueza e solidão e de resiliência e renovação de uma beleza bizarra, excêntrica e sublime que se lhe sente latente. O carácter meditativo e contemplativo do trabalho, também contraditório, errático e enigmático, uma vez prostrado outra vez acutilante, é um espelho do frio cortante e áspero e da paisagem sombria e melancólica de extrema tristeza do longo Inverno do Minnesota, tempestuoso e sereno mas também belo, ao qual se sucedem os tímidos raios de sol que surgem após uma longa espera e trazem a esperança e a energia calma e animadora do degelo; é, segundo a própria, o ambiente que a moldou enquanto pessoa, que a acompanha em permanência como parte do que é e onde acorre como fonte de inspiração e de força pessoal, apesar da contradição presente nos sentimentos de negação e ressentimento para com as mesmas características do seu estado natal que conduziram ao seu abandono em direcção à sua residência actual em LA.
De uma forma redutora e que não poderia estar mais afastada do valor artístico de Morly, poder-se-ia dizer que cada uma das faixas em “In Defense Of My Muse” não é mais que uma combinação de retalhos melódicos de reduzidos componentes, simplesmente enformados entre samples esparsos e avulsos da sua atraente voz, vocais esvoaçantes e deambulantes de inspiração clássica e coral, harmonias de piano delicadas e plácidas, dance-beats sintetizados de produção contemporânea e marcadamente arrítmica e surpreendente, aos quais são pontualmente acrescidos alguma percussão, efeitos, e outras harmonias de teclados, guitarras e baixo sintetizados. Porém, limitar a sua composição a esta aparente simplicidade e escassez musical é uma absoluta ilusão e um verdadeiro lapso; Morly consegue oferecer muito com poucos recursos e ingredientes: não só cada um destes fragmentos individuais é em si mesmo incrivelmente cativante e sugestivo como, acima de tudo, são hábil e subtilmente combinados com uma impressionante perícia que evidencia uma consciência artística evoluída e versátil, impossível de ser engavetada num género musical específico, incompatível com esses limites rígidos, que gera uma estimulante e única sonoridade que alarga e extrapola a mera soma daquelas parcelas individuais e que cria e explora originais atmosferas sonoras, umas vezes mais meditativas e reflexivas, outras mais enérgicas e dançáveis, outras mais ensombradas e soturnas.
A primeira das quatro faixas, a fascinante e perturbante “You Came To Dis Sky” – a par das duas que lhe são subsequentes, onde a letra é praticamente ausente, mais que canções, constituem peças de música instrumentais sustentadas em encantadoras harmonias sequenciais de piano e tentadoras frases ritmadas disformes – é de uma vastidão desoladora, sofrida, melancólica e fria. Os primeiros sons de Morly que o EP nos oferece são de um desacelerado piano abafado e aterrador cuja presença nos persegue ao longo de toda a faixa, sobre o qual Morly coloca a sua voz ameaçadora como um verdadeiro instrumento musical, explorando-a entre os seus graves mais graves e os seus agudos mais agudos repetindo-nos sistematicamente, assustadoramente, “Dis Sky”, e pouco mais que estas palavras até o tantra adquirir a sua forma inteira mais perto do final. Mais do que uma murmurante guitarra que surge discreta, o segredo mais bem guardado da faixa é o instável beat que lhe adiciona lenta e gradualmente alguma intensidade, garantindo que não se torna monótona e sensaborona, apesar de não a amputar e não apagar o profundo impacto que causa.
“Seraphese”, a tão fenomenal quanto simples faixa sucedânea, plena de detalhes de composição musical, dá continuidade e aumenta as emoções despertados pela anterior logo desde a sua abertura. Iniciada por uma sinistra e lúgubre percussão que se sente distante e abafada e se assemelha a um irrequieto batimento cardíaco sobre o qual desponta a presença vocal incisiva e arrepiante dos sucessivos e decrescentes murmúrios baços e suplicantes de Morly e das trágicas linhas melódicas de piano que pontuam e se intensificam ao longo da faixa, acrescentadas por uma envolvente camada mais texturada continuamente crescente mas sempre intimista de percussões várias agudas e graves sintetizadas e uma frase de um beat contínuo mais perto do final, tanto nos derruba e nos esgota emocionalmente em estado de ansiedade, asfixia e inquietação como nos captura na sua elegância e graciosidade melódicas.
“And Sooner Than We Know It” e o seu ambiente que paira leve, vaporoso, encorajador e esperançoso, o degelo após o Inverno do Minnesota, é a faixa que nos dá algum tempo para respirar e nos traz alguma sensação de alívio após “Seraphese” e “You Came To Dis Sky”; seguramente a mais agregadora e pacificadora de entre o conjunto. Apenas instrumental, e no seguimento das anteriores, recebemos à entrada e por breves instantes a solidão, o lamurio e a tristeza de uma linha simples de quatro tons de um gélido piano que, sendo abafada pelo que se lhe acrescenta, se repete ciclicamente ao longo de toda a duração da faixa – a faceta de Morly que já conhecemos, portanto; porém, Morly revela aqui a sua outra face e, numa lenta e gradual progressão sonora, surgem sucessivamente uma harmonia de vozes num coro vocal ecoante, grandioso e auspicioso de esperança, ao qual se sobrepõe a leveza cândida e a ligeireza alegre do teclado sintetizado, que flutua e vagueia acompanhado de um vibrante e evolutivo beat sintetizado e o clap, entre alguns outros efeitos sonoros percussivos e de preenchimento musical de carácter animador.
O EP é esplendidamente encerrado pela marcante “Drone Poem (In Defense Of My Muse)”, na qual Morly reflecte e partilha a sua relação com a sua música, – a sua arte, a sua musa – a protecção dessa relação, e sobre quão facilmente, para si, a pureza e a honra dessa relação podem ser comprometidas e violadas se condicionadas por concessões de consciência menos honesta na busca pelo sucesso comercial ou se sujeitas a avaliações e competições comparativas. Morly compôs este hino à defesa da sua musa inspirada pela admiração a Nick Cave e à sua posição perante a MTV ao recusar a sua nomeação a “Melhor Artista do Ano” na edição de ’96. “Drone Poem” é também uma despedida confessada: Morly abandonou o Minnesota, porventura não entendida por quem deixou para trás mas sabendo que nunca aí iria permanecer e, em “Drone Poem”, única faixa com efectiva letra e em que a sua voz não é alterada electronicamente em texturas vocais como nas precedentes, canta-nos “You are here / But you’re not listening / … / But I didn’t love you / … / And I know I never will”. Mas é também uma reconciliação desejada desde a sua partida após essa despedida incompreendida: são as relevantes presença e memória de casa no seu espírito que a inspiraram a compor e escrever o EP e diz-nos mais à frente “And you tell me / That they’re not listening / … / That they don’t care / But, I’m gonna love them”. A fragilidade desta franca e sincera exposição da sua intimidade, uma devastadora mistura profunda e simultaneamente frágil e ameaçadora de resolução, coragem, mágoa e apaziguamento, em firme e violento contraste com a faixa anterior, transforma “Drone Poem” na faixa mais forte e pesada do EP, primorosamente encerrado quanto atinge o seu poderoso apogeu emocional. Em harmonias lentas e longamente estendidas, a faixa abre com um ritmo constante de um baixo profundo de som distante e amordaçado ao qual se junta o vocal singular de Morly num múrmurio gemido que se intensifica quando acompanhado pela sua voz arrebatadoramente despida e crua num crescimento de intensidade sonora, terminando em agitação num perturbante zénite desordenado e amotinado dos sintetizadores distorcidos.
A única e evidente amargura que este excepcional “In Defense Of My Muse” nos deixa é a irónica rapidez com que a sua duração se esgota. A típica duração das quatro faixas em torno dos três minutos não se estende por mais que uma totalidade de quase catorze minutos de brilhante e notável música, que terminam cedo demais deixando-nos privados de algo por que desejamos em muito maior abundância, precisamente no momento em que nos sentimos inteiramente mergulhados no mundo de Morly. A questão que se poderia colocar é qual a identidade e o ambiente musicais que é possível criar e transmitir em tão curta extensão. Contudo, ao contrário do que seria de esperar num trabalho de tão curta duração, não falta marca pessoal e original em Morly e nesta sua estreia: o que este EP encerra em si mesmo é por demais recompensador face ao que hipoteticamente não traz ou poderia trazer, e a densa, complexa e cativante atmosfera sonora que Morly nos oferece desde os primeiros acordes cedo faz encolher qualquer dedo questionador apontado naquela direcção, provando-nos irrefutavelmente que um coeso, distinto, original e extraordinário EP de apenas quatro faixas pode ser bem mais valioso que tantos longa-duração que acabam por se arrastar num terreno amolecido de banalidade e trivialidade. Para nosso regozijo, ansiedade e curiosidade pela viagem emocional a que Morly nos leva, prevê-se já que a este trabalho de estreia, apenas disponível em suporte informático, juntar-se-á brevemente para nossa satisfação um outro EP com lançamento previsto para o próximo Inverno, data em que ambos serão lançados em formato rígido conjunto de 12”.
Excedendo em muito a sua função de apresentação e antevisão artística, este magnético e personalizado “In Defense Of My Muse” é uma estreia absolutamente memorável e incrivelmente sugestiva, que certamente desarma qualquer adepto de música repleta de emocionais texturas, deixando-nos ansiosos por rapidamente receber mais da talentosa e prometedora Morly.
Tracklist:
1. You Came To Dis Sky
2. Seraphese
3. And Sooner Than We Know It…
4. Drone Poem (In Defense Of My Muse)