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Tão grande privilégio como poder apreciar e desfrutar do resultado do determinado processo criativo de um artista, da peça específica que cria e produz, ou maior prazer ainda, é poder assistir e testemunhar o seu percurso ao longo do tempo e a evolução, as mutações e as transformações da sua mensagem e das distintas formas como a expressa. Delhia de France faz-nos desejar estar em Berlim e poder ser receptor presencial de tão valiosa indulgência.
Delhia tem construído a sua carreira musical e artística como a marcante e carismática frontwoman da banda germânica originária de Leipzig de electro-pop music Pentatones, que acaba de lançar o seu segundo LP intitulado “Ouroboros” no passado dia 28 de Fevereiro pela editora independente berlinense Lebensfreude Records, que sucede ao primeiro longa-duração “The Devil’s Hands” lançado no início de 2012 pela mesma editora e aos mini-álbuns “Pentatones” de 2007 disponibilizado no mercado pela banda sem recurso a qualquer editora e “Mosaique Beats” que nos faz recuar a 2003 lançado pela editora Homebody Recordings.
Em paralelo, são incontáveis as colaborações pontuais de Delhia ao longo dos últimos anos com inúmeros produtores e artistas como o incontornável Robot Koch, ou Robag Wruhme, Douglas Greed, Steve Bugg, entre outros. Em todos os projectos em que se envolve, a forte personalidade de Delhia faz-se sentir não só pelas ideias e identidade criativa que imprime em cada participação, como pela sua presença e desempenho vocais, e também pela assinalável vertente estética que lhe é fundamental e que se reflecte nos vídeos que acompanham as faixas ou nas actuações ao vivo a que se dedica na Alemanha e Europa. A sua carreira está tão fundada no habitual lançamento de álbum após álbum como até mais nas suas frequentes live-performances em grandes palcos e teatros com produções mais grandiosas ou menos grandiosas ou em actuações em salas pequenas e de atmosfera extremamente íntima. Delhia de France corresponde aquela espécie de artista que nos faz querer habitar na sua cidade e no seu ambiente e viver e experimentar com ela no dia-a-dia o mesmo que vive e experimenta.
É o seu projecto a solo que tomou corpo no EP “Suavium / part 1” em 27 Maio de 2014 pela mesma Lebensfreude Records, que integra seis faixas e que recebeu como single de apresentação este “I Share a Breath” que figura na segunda posição da tracklist, que nos tem cativado já desde há algum tempo e nos faz reservar parte destas linhas. “Suavium” é anunciado como a parte um de três de um projecto mais vasto composto por uma série de três edições distintas: “Suavium”, “Basium” e “Osculum”.
A linha mestra temática deste projecto que Delhia, para quem a vertente física e sensorial é de extrema relevância em tudo o que vive, intitula e define como “The Kiss-Trilogy”, é O Beijo como símbolo de manifestação física de afecto, respeito e admiração, e nasceu após um processo de pesquisa sobre o seu significado em latim que lhe atribui três diferentes facetas e que emprestam o seu nome aos sucessivos EP’s: Suavium como um beijo profundo trocado entre amantes; Basium como um beijo leve de afeição pousado nos lábios; Osculum como um beijo deixado nas faces entre amigos.
Após vários anos envolvida em equipas criativas e de trabalho plurais, onde é inevitável e necessária a conciliação de ideias no seio do conjunto dos vários intervenientes, a cedência de parte a parte nas fronteiras dos conceitos, a conciliação das formas de expressão, Delhia sente que é chegada a altura de poder criar, decidir e expressar-se de forma artística livre e independente e materializar todas as visões e ideias sobre música e expressão visual que desde há muito guardava para si ou que se via obrigada a adaptar aos dos seus parceiros de trabalho. O veículo encontrado nesta trilogia permite-lhe desenvolver um tema à sua escolha em etapas sucessivas e, nesse enquadramento, poder explorar livremente a sua natureza musical sem limites pré-estabelecidos, sem concessões e restrições e sem necessidade de encontrar equilíbrios entre tendências de outros intervenientes. Como não poderia deixar de ser com Delhia, as suas ideias ultrapassam a vertente musical, à qual é acrescentada uma vincada componente estética e imagética que estimule a dimensão sensorial de uma forma mais abrangente, deformando e alterando a percepção física, e que não se limite ao sentido da audição: está planeado que cada uma das faixas receba um vídeo focado no corpo e na vertente física onde Delhia pretende explorar e desenvolver peças de vídeo-art por via do convite a artistas dedicados à vídeo-projecção e mapping, à animação, à iluminação artística, entre outras técnicas destinadas a atingir a visão e outros sentidos. No caso específico do vídeo realizado para “I Share a Breath” de autoria do colectivo de VJ’s e artistas técnico-visuais MXZEHN com que Delhia se havia cruzado nos seus tempos de estudante universitária de Design na Bauhaus, o tacto não chega a ser efectivamente estimulado, mas é evocado por via do corpo nu que é, de facto, o de Delhia, usado como a tela sobre a qual é de forma discreta trabalhada toda a técnica visual com projecção de padrões geométricos de luz em movimento.
Enquanto “I Share a Breath” apresenta uma marca melódica evidente, as restantes faixas do EP, das quais esta “The Book” que aparece na posição seguinte da tracklist é um exemplo e surge aqui numa apresentação ao vivo de Delhia num pequeno clube, desvendam as verdadeiras intenções de Delhia para o seu projecto a solo. Através da composição musical de que é autora, da vídeo-art que planeia para cada uma das faixas nas parcerias que estabelece com realizadores e artistas de outras artes visuais, e das live-performances nas quais a atmosfera criada pela encenação, pelo guarda-roupa, pela iluminação, pela maior ou menor distância ao público, Delhia de France, cujo nome real no bilhete de identidade é Franziska Grohmann, pretende criar todo um ambiente de intimidade, de irreverência e de questionamento do status-quo através deste ambicioso projecto tri-partido ao qual atribui uma forte identidade conceptual e mais abstracta. Por via da desconstrução e da transformação dos conceitos musicais basilares e primários na sua composição que a conduzam até à raiz e à essência da verdade artística e criativa – pelo menos, da sua – como se de um laboratório se trate, Delhia quer trazer para o centro da sua atenção, dissecar, analisar e explorar as possíveis respostas às questões que, segundo as suas próprias palavras, são “de quanta experimentação necessita a pop-music?” e “de quanta pop-music necessita a música de carácter experimental?”. Suavium, e os trabalhos que se lhe seguirão, não são um projecto iniciado e terminado, estanque em si mesmo, o que só lhes traz mais valor ainda. O que recebemos é tão impressionante quanto apaixonante em resultado do mistério e da genuinidade de que está marcado. São uma proposta de debate, de exploração, de experimentação. São uma porta a abrir, ou já aberta, que desvende novos caminhos.
As faixas “Suneater” e “Unconcealable” ocupam as posições quarta e quinta da tracklist do EP, onde são evidentes os três pilares em que Delhia fundeia a sua composição musical: a forte presença do seu desempenho vocal que vai dos baixos aos altos, por vezes alterado no sampler, mutável entre matizes suaves e macias como sussurros e segredos que são predominantes e as oscilações em que recai frequente e inesperadamente com tonalidades mais afiadas, cruas e ásperas; a sua produção de real música electrónica toda ela honesta e verdadeira – quando em palco ou em estúdio, Delhia não recorre a computadores ou a segmentos musicais pré-gravados; Delhia efectivamente toca e toda a música é produzida nesse preciso momento – e que é resultado de um processo musical evolutivo que tem origem na sua formação em piano e canto que iniciou ainda em criança e que teve continuidade na autoria das suas primeiras composições e letras aos 11 anos de idade, na banda hip-hop Listening Comprehension que fundou aos 15 anos, em participações avulsas em inúmeros projectos de cariz drum & bass, clássico, hip-hop e jazz que usa para explorar e implementar diferenciadoras actuações ao vivo complementadas por excêntricos guarda-roupas e projecções visuais que a começavam a interessar cada vez mais, e que acabaram por introduzi-la no universo da música electrónica quando estudante universitária na Bauhaus onde acaba por conhecer os actuais integrantes de Pentatones; e, por fim, o sublime e surpreendente contraste introduzido pela brilhante harpista Julia Pritz que nos oferece o som do seu extraordinário instrumento ora tocado na forma mais clássica ora alterado electronicamente.
De um processo criativo que Delhia deseja como espontâneo e sem planos pré-concebidos e que tanto pode acontecer em sua casa ou em qualquer local na rua onde consiga ligar o seu computador, em que as coisas acontecem por si próprias ao seu próprio ritmo, inspirada por coincidências e por tudo o que a rodeie e que ganhe significado no seu âmago e aí seja reciclado e transformado, resulta um inclassificável género musical, marcadamente minimalista, que nos faz mergulhar numa atmosfera etérea e imaterial, fluida, cambiante na junção experimental de segmentos distintos, que não é pop, que não é música electrónica na vertente digital, que não é música lírica, e que é, simplesmente, Delhia de France igual a si própria equilibrando as suas duas facetas contemporânea e clássica e fazendo reflectir nas suas letras a dimensão física e sensorial, frágil, transparente e humana que tanta presença têm no seu espírito, em versos como “All senses to focus / On just one thing / One thing to do” em “I Share a Breath”.
Como uma fatalidade inevitável, em 2006 e já em plena actividade nas suas deambulações criativas com outros produtores e artistas, Delhia de France inicia a sua colaboração com os primos Hannes Waldschütz e Le Schnigg, um nos baixos e sintetizadores e o outro nos beats e samplers desde há anos experimentavam e criavam inclassificáveis ritmos e sonoridades peculiares e originais, que a cativaram e aos quais não resistiu por nelas vislumbrar o potencial onde a sua marca vocal e lírica, em conjunto com o pianista Albrecht Ziepert que se juntou na mesma altura, poderiam somar novas dimensões e camadas musicais e alargar os limites ao que cada um vinha a produzir individualmente, trabalhando e esculpindo ritmos, vocais e sonoridades synth-pop electrónicas, acústicas e clássicas que dão origem a uma música orgânica, obscura, diríamos quase asfixiante, misteriosa e sedutora, enérgica e de identidade única, como que tendo vida própria, ritmo cardíaco e veias nas quais corre sangue, à qual é impossível permanecer indiferente.
À semelhança do projecto a solo de Delhia, e possivelmente por seu incentivo e iniciativa, as actuações ao vivo adquirem também em Pentatones uma das principais formas de expressão enquanto artistas criativos e performers, com desempenhos memoráveis para os espectadores a quem é oferecida a já esperada honestidade e genuinidade artística da música que é, de facto, integralmente produzida e interpretada ao vivo pelos músicos em palco sem qualquer recurso a ferramentas digitais e que criam uma fascinante atmosfera envolvente e algo mística, delicada e cristalina e, ao mesmo tempo, soturna e sombria, que deixam os ouvintes capturados algures num território entre a nobreza de um teatro clássico e a pulsação vibrante de uma pista de dança e irremediavelmente rendidos à sua música.
São inúmeras as apresentações em palcos nacionais na Alemanha e também internacionais nas quais é latente a componente estética e visual que é natural em Delhia em resultado do seu guarda-roupa, da coreografia, da sua presença em palco e da encenação de diva que, efectivamente, é, de entre as quais recebeu maior destaque a apresentação em 27 de Abril de 2012 no Centraltheater de Leipzig em conjunto com a orquestra sinfónica MDR integrada no canal público televisivo alemão Mitteldeutscher Rundfunk numa actuação especial em que a banda actua perante o público da sua cidade-natal na qual o álbum “The Devil’s Hand” que havia sido recentemente lançado mereceu especial atenção por via das faixas “The Devil’s Hand” ou “Bonfire”, entre outras (pela sua qualidade estética, sugerimos também a visualização dos vídeos oficiais correspondentes em https://www.youtube.com/watch?v=aNG_gNnHAmY e em https://www.youtube.com/watch?v=pTAl5ln4aoU), mas também com a apresentação de faixas inéditas à época como “Back Home” que já deixavam adivinhar o trabalho futuro.
A inventividade e irrequietude criativa dos quatro músicos e o cruzamento de experiências com outros artistas e produtores leva-os ao longo dos anos a produzir e lançar no mercado independentemente e sem editora outros trabalhos que têm origem nos álbuns de carreira. Surgem diversas versões remasterizadas destes e também novas faixas que não integram nenhum dos seus álbuns como este “Inshallah” que consta do CDr Mosaique Beats Ensemble datado de 2009 que, atestando a abundância musical e criativa dos seus autores, apresenta uma inquestionável sonoridade soul e hip-hop. Na realidade, o titulo deste álbum inspirado no antiga edição de estreia de 2003, remisturado e acrescentado por trabalhos novos, surge numa fase em que banda sente solidificar a sua identidade artística e, segundo a mesma, corresponde a uma instintiva e despreocupada sobreposição de géneros em equilíbrio tenso que atravessam o jazz e hip-hop e trip-hop melódicos, as sólidas estruturas rítmicas dos baixos e da bateria sintetizada, a produção electrónica inventiva e a extraordinária e singular presença vocal de Delhia com que Pentatones se definem musicalmente.
A faixa “The Ghosts” surge na sexta posição entre as treze que compõem o recente álbum Ouroboros lançado apenas há dias e é uma das escolhidas para apresentação do LP que nos deixa a certeza de que muito há para explorar e descobrir sobre Delhia e os seus Pentatones como artistas plenos de originalidade e vitalidade que sempre nos surpreende, não só em todo o trabalho musical, visual e performativo de excelente qualidade já realizado mas também no que está para vir e, na frustrante impossibilidade de ir ao seu encontro, nos faz esperar que o seu caminho os traga até nós em breve na digressão que irão iniciar em Março. Como se tal não bastasse para nos deixar num agradável estado de impaciente expectativa, aguardamos ainda as sucessivas parte dois e três do projecto de Delhia.