André Abel e Joana da Conceição, a Tropa Macaca, editaram recentemente Ectoplasma, nova proposta num universo em permanente expansão que aponta o trabalho deste duo como uma das mais estimulantes propostas mas margens da cena musical de produção nacional.
P: O vosso novo lançamento tem por título Ectoplasma e surge na sempre interessante Mexican Summer. Como é que funciona esse lado da gestão de carreira que vos tem conseguido edições em importantes catálogos internacionais?
R: Somos nós que tratamos da produção da música dos nossos discos e, sempre que terminamos um, pareceu estar sempre à mão a editora que o lançaria. Ora por proximidade e empatia no arranque com o Tiago e a sua Ruby Red, ora depois com a Qbico e a Siltbreeze por entusiasmo e elogios à distância, todas elas operações à imagem de um homem só em gestão e compromisso obstinado da sua visão editorial. Com este disco é que pela primeira vez fizemos aquela coisa de mostrá-lo a alguém que não tinha demonstrado interesse no nosso trabalho mas que nos pareceu que a probabilidade de ele existir era grande.
P: A label Software da Mexican Summer é curada pelo Joel Ford e o Daniel Lopatin. O convite para editarem surgiu diretamente deles? Como é que olham para as obras desses dois importantes nomes da eletrónica contemporânea?
R: Como dissemos, mostramos o disco ao Daniel e ele adorou e disse que o queria editar, caso a gente aceitasse as condições do acordo para o efeito oferecidas pela casa mãe. Sobre o Ford, confessamos que não conhecemos a música dele. Achamos que o Oneohtrix Point Never é um ótimo artista sincrético de várias linguagens de composição em música eletrónica, com um ritmo e progressão de carreira notáveis.
P: O site da Mexican Summer descreve a vossa música como “misteriosa”. Acreditam que esse mistério é apenas evidente para o ouvinte ou até mesmo para vocês esta música é misteriosa?
R: Mistério, e misteriosa, são palavras que nos agradam. Einstein dizia que a coisa mais bela que se podia vivenciar é o mistério, pois era a fonte de toda a verdadeira arte e ciência. Estamos com ele aí. E se alguém considera misteriosa a música que fazemos, para nós isso é um elogio grandioso.
Estamos todos demasiado condicionados culturalmente, são muitos e muitos anos de acumulações de simulacros, gestos e rituais que já não dizem nada, não rendem mistério. Perpetuamos vícios que não nos trazem para mais perto do que somos, que se sucedem só porque o tempo não para e há que continuar a viver, sendo que é mais simples repetir do que criar, mais confortável pensarmos todos igual do que divergirmos, seguir do que escolher. Nós olhamos para as mesmas coisas que outros já olharam, mas procuramos outros ângulos. Aí está o mistério. Sentimos que nos deve assombrar o que sai por nós, não porque somos um veículo de qualquer coisa maior, mas porque estamos longe de saber (mas mais perto do que alguma vez estivemos) o que somos.
P: Estas obras apoiadas no ruído e em explorações que avançam para lá das margens do que é comummente apontado como música têm pontos em comum com alguns momentos na história mais recente das artes plásticas. Para lá da capa do disco - e podem falar um pouco sobre ela - para que obras poderia este Ectoplasma servir de “banda sonora”?
R: A capa do disco é um desenho da Joana, que o André gostou e decidimos usar para a capa, simultaneamente tão simples e complexo como isso. Nós consideramos que o nosso trabalho se inscreve na tradição musical. Mas numa tradição da música herética, que constantemente desafia as margens do que "é comummente apontado como música", logo sim, contaminada por outras expressões artísticas (que também elas desafiam as margens das disciplinas em que se inserem) mas que ainda, ou sempre é música. White light, white heat. É natural e frequente sentirmos que passamos tangente a outras artes e artistas - e inclusive a Joana é artista plástica - porque as obras são sempre feitas por pessoas que se inspiram nas suas vidas, e acerca da vida e do que significa estar vivo, temos todos muito em comum.
Pensar a que obras o disco podia fazer companhia, é difícil! A Ectoplasma, pela sua qualidade etérea característica de um mantra fantasmático, poderia servir de companheira a qualquer outra expressão artística que, como ela, não encontre um lugar preso à terra, que também vagueie por aí com os fantasmas. Mas não temos nenhuma imagem definitiva para ela.
Já para a Balada dos que já nascem mortos é mais complicado arranjar-lhe companheira. Porque esta peça é mais exigente, tem uma narrativa mais forte, dilacerante; tens de a ouvir do princípio ao fim, partilhar o teu tempo connosco, apreciar a sequência que construímos para ti. Os que já nascem mortos, não nascem, não morrem. Há pessoas, e obras assim, extemporâneas, esta peça é sobre e para elas. Mas apesar deste paralelo, só conseguimos ver a Balada... acompanhada pelas imagens/memórias que te cercam quando a ouves.
P: No mundo em que vivemos é muito complexo escapar aos estímulos da música pop, que nos rodeiam por todo o lado. É necessária disciplina para se construir música como a que os Tropa Macaca têm criado ao longo dos seus quatro álbuns?
R: É necessário esclareceres as tuas prioridades e, claro, ter disciplina para agir de acordo. Depois de fazeres isso o tempo suficiente, o processo (composição, discos, concertos, etc.) torna-se natural. E percebes que já o fazes há tempo suficiente quando já só pode ser dessa maneira. Como se fosse um fio invisível que vais traçando mas que só existe depois de o escreveres.
Nós somos da opinião que um mundo mais plural, onde as expressões artísticas se destacam e diferenciam umas das outras, é um mundo melhor. Nós procuramos o nosso caminho, o que não quer dizer que sejamos avessos a influências, até porque só se constrói sobre o construído, mas sabemos que existem inúmeras direções possíveis, sendo algumas delas previsíveis outras nem por isso - as previsíveis são para os preguiçosos :) E para além disso a história (da música) está cheia de objetos estranhos, de outra ordem que não a crono-necro-lógica, que continuam a pedir resposta.
Do que mais nos agrada neste mundo é ver, ouvir obras de outros artistas comprometidos em partilhar o que de mais íntimo pariram. O resultado pode ser mais ou menos universal/popular, mas é sempre estimulante estar cara a cara com obras que acrescentam ao mundo coisas que não estavam lá. Porque te fazem querer trabalhar mais e melhor, porque enfim, te estimulam.
P: A ideia de psicadelismo, da exploração para lá do mundo meramente consciente, é importante para a vossa música?
R: Sim, cremos que a nossa música expressa uma confiança na riqueza da matéria que provém do inconsciente individual, e por ventura partilhado. Todo o manancial de informidade psicodinâmica que usamos como argamassa para edificar as nossas composições é um sustento incomensurável - como o espaço sideral ou as regiões mais profundas dos oceanos, é escolher a metáfora - que oferece uma recompensa vigorante continuamente.
P: Finalmente, uma pergunta sobre o lado mais técnico da música que criam: que ferramentas são centrais no som de Tropa Macaca?
R: Guitarra elétrica para o André e sintetizadores e pedais de efeitos para a Joana.