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Søren Aagaard, Cafe Zero - A smoke fermentation house with no seasons, 2023. © Whitney Browne / Cortesia dos artistas e Performa.
A Bienal de Artes Performativas – Performa aconteceu em Nova Iorque no mês de Novembro, distribuindo-se entre vários espaços de apresentação pública, mais ou menos informais ou institucionais. A primeira edição desta bienal de Artes Performativas foi realizada em 2004, fundada pela importante historiadora e curadora RoseLee Goldberg, cuja investigação em torno da história da performance tem servido como guião para muitos cursos de performance.
Anunciando Nova Iorque como a líder global na área da performance, e capital desta prática artística, a Performa incluiu na sua programação as suas obras comissionadas, que foram desenvolvidas ao longo dos últimos dois anos em diálogo com os artistas e instituições parceiras; obras do Pavilhão-Sem-Paredes Finlandês**, que apresenta uma selecção de artistas finlandeses da área da performance, dança e música; a programação do Núcleo Performa, onde aconteceram eventos relacionados com a própria história da bienal, como o lançamento do seu arquivo e uma nova linha de programação que interliga a performance e o protesto. Outras parcerias ocasionais com instituições Nova-iorquinas, embora pontuais, também constaram da programação deste ano.
Todas as bienais caracterizam-se por ter como âncora um momento histórico, interligando as inovações actuais no campo das artes performativas, com a história da performance, criando uma linha de continuidade criativa visível e palpável. Este ano a âncora programática foi a Arte Conceptual. Tal como notado na brochura da Performa, este eixo toma forma com o cuidado de alargar a visão do que esta significa historicamente para além da associação com a produção artística nova iorquina dos anos 60 e 70, e adoptando uma postura revisionista da história da arte, considerando a produção de artistas brasileiros e senegaleses, ou as influências do budismo zen. Outras edições tiveram como âncoras, a título de exemplo, o Surrealismo, o Construtivismo Russo ou a Renascença. Nas palavras de RoseLee Goldberg, a propósito da escolha deste eixo de programação; “Este ano, exploramos o enorme legado da arte conceptual - um movimento que foi tão radical que pode ser considerado como um big bang na história da arte, na forma como transformou noções fundamentais do que é a arte e como esta pode ser concretizada - assim como os diversos “conceptualismos” que continuam a dominar a produção e ensino artísticos em todo o mundo.”
Søren Aagaard, Cafe Zero - A smoke fermentation house with no seasons, 2023. © Whitney Browne / Cortesia dos artistas e Performa.
Cafe Zero é apresentado como uma “casa nómada de defumação e fermentação, sem estações”, fazendo um jogo entre season (estação) e seasoning (tempero/temperar). É uma performance de Soren Aagaard, artista dinamarquês cuja obra é muitas vezes influenciada – como é o caso – pelo seu percurso e formação enquanto chef. A comida acaba por ser uma das matérias por si mais utilizadas, como veículo de análises antropológicas e sociológicas. Também na presente programação da Performa, a comida como matéria, e o jantar ou refeição enquanto momento performativo foram formas ou formatos recorrentes de apresentação performativa. Consegue-se identificar uma tendência, ou revivalismo, da utilização da comida enquanto performance artística. Esta tendência é acompanhada pelas instituições museológicas, tais como o Moma PS1, que apresenta de momento a exposição “A Lot of People” de Rirkrit Tiravanija***, que conta com uma encenação de cinco dos trabalhos interactivos ou de prática social de Tiravanija, sendo o mais citado o famoso pad thai (“Untitled 1990 (pad thai)”) servido numa exposição individual numa galeria comercial, exposição de 1990 em Nova Iorque. Todas estas situações artísticas tiveram a sua relevância histórica enquanto questionamento do objecto de arte, e de inserção do contexto relacional e de sociabilização dentro do espaço de arte e da performance.
Søren Aagaard, Cafe Zero - A smoke fermentation house with no seasons, 2023. © Whitney Browne / Cortesia dos artistas e Performa.
Cafe Zero trata-se de uma obra entre o teatro e a performance em que um jantar é servido. Em colaboração com uma designer dinamarquesa, Anne Sofie Madsen, Aagard desenhou o cenário e os figurinos dos performers/actores, nomeadamente Chef Matthew Weingarten, Chef Markus Oxelman, Chef Jackie Gordon, Chef Erica Wides e o historiador Chef Scott Alves Barton, que investiga a história gastronómica.
Ao entrar no espaço onde a obra será encenada, somos convidados, enquanto espectadores, a investigar a área onde mais tarde os performers actuarão. Duas estruturas que se aparentam a tendas, pretas com um padrão manchado, como que por manchas de lixívia. Numa, gelo. Na outra, o cheiro a fumo. Também um fio de roupa pendurada numa diagonal. Um pouco de fumo, duas mesas de alumínio com acessórios de cozinha. Um tempo de espera instala-se, à medida que o público que, embora convidado a circular, se senta como se virado a um palco, formando uma massa de pessoas apenas numa das direcções desta área-cenário.
Performers entram em cena, e começam a retirar os utensílios de cozinha, reorganizando as mesas e a sua utilização. Conversam enquanto começam os preparativos do que será o menu. A conversa dá-se em torno da fermentação; origem, efeitos e execução técnica da comida. Bebidas são servidas e o cheiro delicioso acentua-se na sala.
“Não me sinto muito bem ultimamente.
Tens comido?”
Alterações climáticas e o efeito no equilíbrio alimentar; a falta de frutos e legumes de estação, porque as próprias estações estão em dissolução. Caminhamos para uma polaridade que se expressa até no clima. Já não há alimentos sazonais, os alimentos-elementos moderados.
Søren Aagaard, Cafe Zero - A smoke fermentation house with no seasons, 2023. © Whitney Browne / Cortesia dos artistas e Performa.
É-nos previamente apresentado o menu, composto pelas seis receitas; House Special, The New Veggie Dish, Meta Bloody Beets, So Local!, Painkiller e The Onion The Miso The Caramel. Nestes pratos são usados alimentos como ostras, pastrami e vegetais fermentados que, sabemos pela folha de sala, foram produzidos através de práticas de hortas verticais das redondezas.
Na mesma folha de sala este momento é apresentado como uma sessão de cozinha fantasiosa, ou de ficção científica, com um guião realizado a partir de transcrições de gravações sonoras de cozinhas, profissionais como se entende pelos repetitivos “Ok Chef!” que nele constam, em combinação com temas distópicos ou de outras visões futuras.
Há um controlo do sabor, do gosto, que começa no cheiro. O cheiro instala-se primeiro, e a atenção do público altera-se. Os performers enganam-se no texto - são dois tipos de atenção difíceis de manter. Como uma separação dos modos de funcionamento do cérebro numa bipolaridade activa.
“Sabias que a diarreia é hereditária?
Não ter sentido de humor também é hereditário, sabias?”
O cheiro abre o apetite. Ter apetite aumenta o desconforto no espaço e também a desatenção, a conversa passa por questões laborais. Há uma estranheza na mistura de temas na conversa. Soam a pregos de um DJ. I am the microbe é a música que de vez em quando é cantada. A sua letra é-nos partilhada também no menu. A exploração da relação sensorial é curiosa, a relação do cheiro com a música, que refere os sabores, e os processos através dos quais são alterados.
Søren Aagaard, Cafe Zero - A smoke fermentation house with no seasons, 2023. © Whitney Browne / Cortesia dos artistas e Performa.
Depois de a comida ser servida a atenção dispersa-se completamente. Depois de servida a comida, só o convívio, o som da conversa sobreposta e a desaparição do cheiro.
O movimento de arrumação e de limpeza é desconsiderado pelos atendentes do evento. Será de notar esta pequena nota final, piscando o olho à falta de visibilidade-consideração de partes menos nobres, mas igualmente importantes, da convivialidade que a comida proporciona.
Toda a comida servida é soberba, e é essa qualidade excepcional que talvez salve um momento performativo que tenta uma mistura de realidades sem realmente o conseguir. A estimulação dos sentidos, do olfacto ao palato, mas também o uso da audição é sem dúvida a parte forte deste evento performativo, no entanto enquanto tema ou apresentação, esta força parece ser desconsiderada. As ideias sobre fermentação e práticas alimentares apresentadas como “sci-fi” são parcas, artificialmente aglomeradas, ou não muito entusiasmantes.
* As traduções de determinadas expressões, ou citações do guião desta performance, foram realizadas por mim e poderão ser informadas pela minha própria sensibilidade à língua inglesa.
** A particularidade de um dos mais relevantes festivais de performance dedicar uma linha de programação apenas a artistas finlandeses, com financiamento finlandês, será abordada num outro artigo, a ser publicado brevemente.
*** Um breve apontamento sobre esta exposição será publicado em breve.
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Catarina Real (1992, Barcelos). Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica no campos expandidos da pintura, escrita e coreografia, maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração, que se debruçam sobre o questionamento de como podemos viver melhor colectivamente. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. Mantém uma prática de comentário - nas vertentes de textos de reflexão, textos introdutórios a exposições, entrevistas e moderação de conversas - às obras e processos realizados pelos artistas na sua faixa geracional, com a intenção de contribuir para um ambiente salutar de crítica e criação colectiva e comunitária.
É de momento artista residente na Residency Unlimited, Nova Iorque, com apoio do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.