É interessante pensar que o nascimento do mítico Radiophonic Workshop da BBC tenha ocorrido em aliança com o departamento teatral e não como seria lógico pensar-se com a secção de música da instituição. Por um lado, Desmond Briscoe e Daphne Oram (a compositora de que falámos na anterior edição do Memórias do Futuro), os fundadores do Radiophonic Workshop, não eram vistos como compositores pelos músicos da vetusta BBC, mas antes como técnicos de som. Por outro, imaginar a gloriosa profusão de ruídos espaciais, invenções de futuro e visionárias manipulações electrónicas como parte de um drama muito particular acaba por fazer inteira justiça ao Radiophonic Workshop. O seu lugar era, de facto, o da encenação de um amanhã para que a Inglaterra olhava com alguma confiança depois da Segunda Guerra Mundial. Porque o futuro primeiro deseja-se e só depois se constrói.
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Apesar do nascimento do Radiophonic Workshop ser coincidente com a chegada da era da televisão, foi no âmbito da rádio que começou a dar os primeiros passos. Muitos dos pioneiros das vanguardas europeias estavam aliás ligados a núcleos de investigação associados a laboratórios de rádio, casos de Stockhausen, Berio ou Schaeffer. O som em estado puro e a sua capacidade de antecipar o futuro pareciam ser motores desse género específico de criatividade. Delia Derbyshire, no entanto, chegou ao Radiophonic Workshop em 1963 e criou imediatamente um impacto ao ajudar a criar o tema que ainda hoje é visto por muitos como um verdadeiro clássico da idade electrónica em Inglaterra – o genérico da série televisiva de ficção científica Dr Who.
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Com uma formação em matemáticas e música, Delia Derbyshire estava inteiramente fora do seu tempo e só por um breve período é que encontrou alguma sintonia. Em 1959, acabada de sair da faculdade, Delia procurou um emprego na Decca, a famosa editora que em breve haveria de recusar os Beatles e compensar o erro assinando os Rolling Stones, mas foi-lhe recusada entrada devido à política da companhia de não contratar mulheres. Acabou a trabalhar para a Boosey & Hawkes, uma das marcas míticas de Library Music, então um campo em expansão por causa das necessidades de música na rádio e na televisão para a ilustração sonora de filmes, documentários e programas diversos. Em 1963, Ron Grainer recebeu a encomenda para um indicativo para a nova série de ficção científica Dr Who. E foi a partir das suas notas em papel que Delia Derbyshire gravou e orquestrou o tema tal como hoje se conhece. Grainer terá ficado tão surpreendido com o trabalho de Delia que procurou conseguir-lhe um crédito de co-autoria, ideia firmemente recusada pela BBC que não entendia na altura como poderiam simples técnicos serem igualmente autores. Mas Delia, não era um mero talento técnico. Roy Curtis-Bramwell, autor que escreveu sobre o Radiophonic Workshop, afirmou que «a matemática do som era natural para Delia Derbyshire», acrescentando que «ela podia pegar num conjunto de sons e construir com eles uma peça musical de forma muito diferente de qualquer outra pessoa. Ela manteve-se no Radiophonic Workshop durante algum tempo e contribuiu com uma quantidade enorme de música muito bela, quase de outro mundo».
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Delia é agora o objecto de um curto documentário da autoria de Kara Blake de título The Delian Mode. Em 25 minutos, uma combinação de entrevistas – com gente como Adrian Utley dos Portishead, Brian Hodgson, seu companheiro no Radiophonic Workshop, ou, entre outros, David Vorhaus e Peter Zinovieff, respectivamente aliados nas aventuras White Noise e Unit Delta Plus – material de arquivo e alguma vídeo-arte (o cabo de um telefone para significar o transporte da voz de Delia do passado para o presente), Blake constrói um retrato possível de uma mulher absolutamente visionária. Não é um retrato inteiramente inédito. Algum do material de arquivo e algumas das vozes que ilustram a vida e a obra de Delia Derbyshire já tinham servido para os documentários Alchemists of Sound (para televisão) ou Sculptress of Sound (para rádio), mas ainda assim, Kara Blake consegue impor a sua própria visão e revelar algumas tiradas incisivas da parte dos seus entrevistados. David Vorhaus, ele próprio um pioneiro de relevo graças ao seu trabalho nos White Noise e aos discos de Library Music que produziu, oferece uma imagem bem ilustrativa do carácter de Delia: «há uma linha ténue que divide o génio da loucura e ela dançou nessa corda bamba durante muito tempo».
Delia Derbyshire faleceu em 2001 e nos últimos 10 anos a sua obra – e sobretudo o alcance da sua influência – tornou-se mais visível do que nunca. É ela a sombra que informa a guinada na direcção estética dos Portishead, por exemplo, e é ela a influência que a maior parte dos «hauntologistas» associados à editora Ghost Box reclamam. E até os Broadcast da recém desaparecida Trish Keenan a saudaram com a devida vénia.
A vida de Delia Derbyshire, no entanto, não foi fácil, como The Delian Mode bem ilustra. A dada altura, o tempo passou a correr com outro modo, com a chegada dos sintetizadores, e Delia sentiu que os dias da meticulosa escultura do som em fita magnética estavam a desaparecer. A década de 70 foi especialmente atribulada para ela, com o álcool a revelar-se um ingrato refúgio para os seus demónios. Foi só na fase final da sua vida que encontrou alguma paz, muito através dos primeiros sinais de reconhecimento por parte de uma nova geração. Peter Kember, o homem que o mundo conhece como Sonic Boom (membro dos míticos Spaceman 3 juntamente com Jason Pierce que haveria depois de fundar os Spiritualized), foi dos primeiros a manifestar admiração por Delia e neste documentário oferece um valioso testemunho para se perceber como viveu a sua musa nos últimos anos de vida.
No elogio fúnebre publicado nas páginas da revista Wire em 2001, Robin Carmody explicava que Delia Derbyshire tinha sido «uma psicóloga do som, uma analista obsessiva do ritmo, da inflexão, do tom, do pensamento». Foi, sem dúvida, alguém que desde cedo conviveu com memórias do mesmo futuro que ajudou a inventar. E que nunca esteve tão presente como agora.