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Fotografia: António Júlio Duarte
Recordemos Russolo. Em um dado momento, no seu manifesto futurista “A Arte dos Ruídos” 1913, deslumbrava-nos com a descoberta da simultaneidade dos sons, com a manifestação diversa sonora, que, progressivamente, ia enriquecendo os grupos com “sons complexos”. Revelava-nos a vertigem dos conjuntos, o “desejo e a busca da união” de “sons diferentes”, a longa travessia que a música tinha percorrido, do “acorde perfeito assonante”, para o súbito afloramento de “acordes enriquecidos por algumas dissonâncias de passagem”, até às “dissonâncias persistentes e complicadas da música contemporânea”.
Recordemos ainda, o concerto “Volúpias”, de Gabriel Ferrandini, em janeiro de 2020. As intenções desta simultaneidade foram, não só evocadas, como até celebradas, energicamente, e com júbilo. Como compositor, e exímio na sua “improvisação coletiva”, Ferrandini, assegurava, no seu conjunto, uma inquebrantável “verticalidade” das suas partes. Num perpétuo, e constante, exercício inventivo. O espaço era sulcado com elementos geométricos, de sinal vigoroso. Ora ouvíamos o pontilhado (tonal) assimétrico desferido por Ferrandini, ora nos detínhamos na aguada benévola de Hernâni Faustino, que, a pouco e pouco, ia inebriando o palco, como fumo, e que se estendia até à exultação. Inundando, em plenitude, os sentidos.
A percussão, de Gabriel Ferrandini, pontuava os longos gestos de Hernâni Faustino, no seu contrabaixo. Fornecia-lhe um cartograma. Pedro Sousa, pela firmeza da sua execução, conferia chão ao conjunto; e Schlippenbach, envolvia-nos nos seus apontamentos de cristal, e lembrava-nos as delicadezas sonoras do conjunto. A um dado momento da sua chegada, Peter Evans revelava-nos a emoção, a ironia e o humor. Lamentos que rasgavam a escuridão da sala, sem pudor. Alguns instrumentos saíam da sua limitação convencional, para passarem a ter um outro timbre, a ser uma outra coisa. A assumirem uma nova identidade. Seria a própria vida a irromper?
Russolo deveria ter acordado do seu eterno sono e presenciado isto. Em a “Arte dos Ruídos”, 1913, Russolo, sobre os instrumentos, dizia o seguinte: “É preciso romper a qualquer preço esse círculo restrito de sons puros e conquistar a variedade infinita dos sons ruídos”. Romper a monotonia de timbres, em busca do colorido orquestral, da polifonia variada.
A riqueza dos contrastes sucede-se, para nosso deleite. O enforme e o líquido complementam-se. A surpresa dada pela estranheza nas variedades tímbricas, que nos assombram inicialmente, e que aprendemos a compreender, conduzem-nos depois à “recompensa”: Também Nietzsche nos dizia, sobre as coisas que aparentemente pareciam estranhas inicialmente: “precisamente assim aprendemos nós a amar todas as coisas que amamos agora”.
Carla Carbone
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Fotografia: António Júlio Duarte
A 2 de Agosto, no Festival Jazz 2020 / Gulbenkian, Ferrandini presenteia-nos novamente com a sua preciosa energia, ao lado de excelentes músicos como Miguel Mira, Ricardo Toscano, e Rodrigo Pinheiro.
Por aqui deixamos uma entrevista feita a Gabriel Ferrandini, em Janeiro deste ano, antes de, e longe de alguma vez, prevermos que iriamos viver tempos conturbados por causa de uma pandemia.
CC - O nome Volúpias parece ter surgido da residência na ZDB. Porque o Gabriel decidiu manter o mesmo nome?
GF - O nome, na verdade, não é o mesmo. Na residência era "Volúpia das cinzas". Tinha a ver com a minha fase naquela altura, uma pós-morte, passar da livre improvisação para a composição. Era uma fase de revolta. Agora com o disco, as cinzas ficaram para trás, e ficou só como adubo para Volúpias. O nome ficou mais ou menos igual porque o disco é um "best of" de um ano de residência. Foram 6 datas em um ano, dois sets por noite. No total são 12 sets. Muita música. Escolhi o melhor, como celebração para o disco.
CC - Em entrevistas costuma mencionar o Jazz, o mesmo parece surgir em conversa muitas vezes. Considera o Jazz um ponto de partida, um legado do qual não se consegue livrar? Ou antes uma ferramenta a que se recorre sempre que necessita?
GF - Considero isso tudo o que diz. Um ponto de partida, uma linguagem, uma ferramenta, uma escola. Não me consigo livrar, mas não o quero. Quero só me encontrar dentro dessa linguagem em vez de perpetuar o que já foi feito ao longo da história. Não ser só o meu gosto dentro de uma linguagem. Mas ter mesmo liberdade dentro desse universo.
O jazz foi a minha escola. E é a música mais próxima da minha alma. Foi essa a música que me ensinou a tocar o instrumento. Mas há muita coisa que quero fazer, algumas afastam-se do jazz, mas talvez isso seja à superfície. No fundo, está lá sempre tudo. Quero ser fiel ao meu passado.
CC - O Gabriel considera-se um livre improvisador, ou um compositor com pendor experimentalista? Onde se inscreve, afinal, ou onde se sente mais à vontade?
GF - Sinto-me na raiz de um improvisador. Mas cada vez mais um compositor. Nunca me sinto à vontade. Isto é um processo continuo de ouvir, tocar, estudar.
CC - Existe, por um lado, um sabor subtil a experimentação no sentido acusmático, por outro lado o seu trabalho, em Volúpias, parece pautar-se por uma depuração, cuidado extremo, e sentido analítico face aos sons escolhidos/aplicados, e aos sons por retirar. O que me tem a dizer relativamente a isso?
GF - O disco já é uma “pós análise” da residência da ZDB. Quero dizer que foi um ano a compor, e depois disso, ouvir tudo, escolher o melhor, voltar a analisar, rescrever e rearranjar para tocar agora com novos ouvidos. A residência aconteceu no bairro alto, mas a gravação foi no Alentejo, num sitio no meio do nada muito especial. Deu-nos uma calma que na urbe não iriamos ter. E por cima disso tudo, queria fazer um disco de baladas, e fugir à nossa natureza dos concertos que é mais energético. Isto fez com que a atenção fosse máxima, muita sensibilidade a atacar cada nota, cada som. Esta era a aura que queria captar.
CC - Como ouvinte é impossível não relacionar os ruídos com algo que não tenha a ver com as coisas concretas. Pergunto se houve, intencionalmente, uma preocupação representacional, da emoção, no concerto da Culturgest, em Volupias?
GF - Nunca teatralizamos em palco. É tudo real e muito emocional. Não estamos em controle sobre as emoções, só sobre a técnica e a estrutura.
CC - Alexander von Schlippenbach foi um convidado especial do seu concerto, dando um contributo inegável quanto ao modo como aplicava a moderação, e amenizava os ímpetos criativos provindos dos sons dos outros instrumentos, criando equilíbrio, e dando um sabor cristalino e brilho (luminoso e espacial) ao evento sonoro. Ingressou, a um dado momento, Peter Evans, que retirou, do seu instrumento, sem medo, sons que pareciam lamentos, quase choros ou lamúrias, remetendo para o tema das emoções. O que pensa o Gabriel disto tudo e qual foi a sua motivação nestas escolhas?
GF - Era uma noite especial. O Alexander é um herói meu. Um mestre desta música, tudo o que ele faz está lá, a 100%. o Peter Evans é um grande amigo e um dos melhores trompetistas do mundo. Chamei-o, não só por o admirar, mas para traze-lo a esta celebração. Ter aquelas cinco pessoas em palco é mesmo raro e especial, estávamos felizes juntos. Confio nas opções estéticas deles e acho que o ambiente estava ótimo. Próximo do disco, mas com mais energia no live.
CC - O nome "Volúpias" advém dessa "carga" emocional experienciada no concerto?
GF - Volúpias vem da vida de Lisboa, da residência, das ruas que vivo todos os dias, acabando na prática musical. Tentar traduzir as coisas da vida na música: a celebração, mas também a dor.
CC - Outros intérpretes usaram os instrumentos, retirando o maior número de sons possíveis, a ponto de hibridizar os mesmos instrumentos, até à exaustão. Terá sido para promover a reflexão sobre o condicionalismo dos instrumentos tradicionais? E até que ponto, na nossa cultura, os mesmos limitam a possibilidade de expandir a capacidade cultural, ocidental, de aceitar novos sons?
GF - O jazz, e ainda mais, o free jazz, teve sempre esse ímpeto de procurar os limites dos instrumentos, do corpo, da técnica. As nossas emoções e sonhos são vastos e os instrumentos sofreram muitas limitações, ao longos dos anos. No passado, há 500 anos atrás era tudo muito mais regrado. Eu amo instrumentos e a sua natureza, mas acho que é nosso dever tentar levá-los para mais espaços, libertá-los da sua própria história.
CC - Narrativas, texturas e espaços intuem-se ao longo da peça sonora "Volúpias", como encara o Gabriel a experiência do espaço (enquanto realidade sonora) no seu trabalho?
GF - O espaço: como ambiente e tema. Tentei criar uma vibe, de melancolia das ruas de Lisboa, mas que celebrava uma luz, uma fé.
CC - O evento sonoro "Volúpias" é moldado pela participação circulatória, ou confluência de excelentes músicos, (em que é nítida a existência de diferentes linguagens) conferindo uma frescura e abertura ao longo do concerto) Tal facto deve-se à experiência coletiva de Ferrandini com a Trem Azul?
GF - O Trem azul foi a minha principal escola. Tenho muito a dever às pessoas que me educaram lá e me ajudaram. Cada vez que toco, essa história está comigo. Muito aprendemos, e nos conhecemos ali.
Fotografia: António Júlio Duarte