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Não esperemos facilidades. Não esperemos ficar na zona de conforto, entrincheirados nos padrões rítmicos e harmonias tradicionais. Arca não pretende agradar através de melodias cómodas e comerciais. Esperemos ser empurrados para zonas cinzentas, territórios de fronteiras nebulosas, novas realidades onde Arca se sente artisticamente mais verdadeiro e transparente. Esperemos excelência, inovação, relevância musical e criatividade. Esperemos uma torrente musical alienígena, bizarra e casuística, libertadora de regras e de razão impostas e que cria novos conceitos de estética. Esperemos um contra-senso alucinogénio que dá asas à imaginação, permanentemente mutante em combinações do abstracto e do ilógico, do impulsivo e do experimental. Esperemos voltar a premir o botão do play e ouvir repetidamente “Thievery”.
Alejandro Ghersi, mais conhecido por Arca, jovem produtor e DJ de naturalidade venezuelana e actualmente residente em Londres, traz-nos no seu primeiro LP, lançado em 3 de Novembro pela editora Mute Records do qual consta esta faixa na nona posição da tracklist, um desafiante convite para uma visita a um universo surreal que procura criar, a uma realidade num plano paralelo feito de uma musicalidade que não pretende ser de fácil consumo e de limites bem demarcados.
Na sua individualidade plena de contrastes, “Thievery” está a meia-distância de inúmeras atmosferas. As drum machines e sintetizadores tocam suavemente nos padrões rítmicos mais ancestrais do hip-hop e drum & bass mais embalantes, ao mesmo tempo que produzem viciantes sonoridades tribais, ásperas e incisivas, que podem ser uma invocação da origem sul-americana de Ghersi, às quais se juntam os samples vocais que vêm completar a criação desta dimensão artificial e futurista.
O vídeo que acompanha “Thievery” é protagonizado em exclusivo por Xen, personagem fictício criado por Ghersi que, na verdade, é parte dele mesmo e seu refúgio enquanto adolescente, e que empresta o seu nome ao álbum. Xen contribui fortemente para o ambiente em que Arca nos faz mergulhar ao longo da faixa. Ghersi atribui-lhe elevado valor emocional por ser o nome com que assinava as entradas do seu diário enquanto jovem que cresceu num ambiente social castrador e enformador. Materializada digitalmente pelo amigo de longa data e artista visual e gráfico Jesse Kanda numa criatura ultra-moderna, longinquamente humana e de fisionomia andrógena, vigorosa e musculada e ao mesmo tempo marcadamente feminina, Xen foi inspirada nas tribos nativas sul-americanas que olhavam para os seus membros que assumiam práticas quer homossexuais quer heterossexuais como alguém que tinha a capacidade de ver o mundo de várias formas distintas. Através de Xen, mais do que evocar a sua homossexualidade ou um mero alter-ego feminino, Ghersi levanta a voz contra a etiquetagem social do mundo num espectro bicolor de preto ou branco, de masculino ou feminino, defendendo que cada um possa expressar as suas diferentes facetas e ser livre para as integrar no todo da sua individualidade. Xen não pretende ser sexualmente agressiva ou impositiva; uma face inexpressiva de uma mulher careca sob um ambiente frio e futurista não contém qualquer insinuação implícita ou explícita. Xen é, apenas, tão perturbante quanto memorável.
“Now You Know”, tema de abertura do álbum, apresenta vários traços comuns a “Thievery”. Encontramos a mesma aleatoriedade rítmica e mecânica das drum machines e dos sintetizadores, até mesmo mais marcantes, experimentais e progressivos do que em “Thievery”. Encontramos, apesar de mais distante, a homenagem à cultura tribal sul-americana através da inclusão de apontamentos sonoros de pan-pipes. Encontramos Kanda na autoria do vídeo que é igualmente embriagante, não pela atracção fatal por uma criatura digital semi-humana mas, agora em círculos estonteantes, desumanizado pela ausência de criaturas, até mesmo de outro mundo, pleno de efeitos pirotécnicos computadorizados num céu sobre as ruas indiferentes de uma cidade. “Now You Know” terá uma fundação semelhante a “Thievery”, mas transporta-nos para outro tipo de realidade, onde impera evidente a tecnologia.
Ainda em Caracas e com 16 anos, altura em que se cruzou online e nasceu a amizade com Kanda, com quem se correspondia continuamente num trabalho conjunto que foi evoluindo e crescendo com o tempo, um dedicado à produção musical e outro à produção visual e gráfica, Ghersi acabou por perder o interesse na educação musical clássica que recebia desde os 7 anos que, ainda assim, lhe trouxe uma importante base musical a partir da qual pode desconstruir os conceitos tradicionais e explorar os novos territórios para os quais a sua personalidade o empurrava. O piano foi trocado pelo computador e pelos softwares de programação e produção digital de música, dando origem em 2005 ao seu primeiro projecto como produtor sob o nome Nuuro, tendo editado em 2006 o EP In Transit e o LP All Clear e o EP Paper Heart em 2007 ainda em Caracas, e em 2009 o LP Reddest Ruby já em NY, a par de inúmeras outras faixas avulsas lançadas gratuitamente online.
Entre faixas instrumentais e outras a que junta a sua própria voz, como “Terrorfist” em In Transit, “Waiting” em All Clear, “Cute” em Paper Heart e “Cotacahi!” em Reddest Ruby, não encontramos a experiência fora de comum que Arca nos proporciona. Nuuro é apenas (!!) um tímido miúdo-sensação de 16 anos que se acasula no seu quarto ano após ano e produz domesticamente no seu computador música excelente, sólida e sofisticada, que aglomera batidas acalmantes electrónicas, entrecortadas por ritmos de drum & bass e por vocais pop nostálgicos e meditativos próprios de um adolescente. A sequência dos quatro trabalhos revela uma versátil, flexível e madura evolução musical à disposição de todos (Nuuro lançava o seu trabalho gratuitamente) à qual muitos produtores de idade e carreira bem mais avançada ainda aspiram.
Foi no início de 2012, depois de emigrar para NY em 2007 onde dá seguimento aos estudos de música, que Ghersi, já sob o pseudónimo Arca, e ainda à semelhança de tantos incógnitos confinados à produção de música em casa, começa a sair do anonimato e lança o seu primeiro EP Baron Libre com o selo da editora UNO NYC dedicada à música experimental e progressiva. Baron Libre, encerrado pelos corajosos sete minutos de duração de “Spira”, já revela a identidade musical retorcida de Arca ao longo das suas quatro faixas, fundindo sonoridades que atravessam a dance-music, o funk e o hip-hop com samples de coros e outros efeitos vocais diversos, e nas quais a noise-music começa a marcar presença, como é exemplo o tema de abertura Covenant.
Em Strecht 1, EP lançado em Abril de 2012 também na UNO NYC, Arca continua a aglomerar património musical empurrado pela sua personalidade criativa irrequieta. As seis faixas que compõem Strecht 1 são uma incursão clara no universo hip-hop e trip-hop, em lânguidos ritmos e samples vocais distorcidos de temas mais melódicos e essencialmente instrumentais como “Walls” ou “DOEP”, mas nas quais já aponta em direcções de experimentalismo progressista.
Num fluxo de produção contínuo surge em final de 2012 o (longo) EP Strecht 2 também através da editora UNO NYC que integra as faixas “Broke Up” e “2Blunted” entre as nove que o compõem. O universo sonoro e vocal hip-hop e trip-hop da década de 90 que Ghersi recupera, renova e faz renascer tão genialmente nas duas edições da série Strecht está presente mas, como é já de esperar em Ghersi, em Strecht 2 é esticado face ao seu antecessor na série. Strecht 2 transforma e altera as formas basilares do hip-hop e trip-hop , tornado diverso, inesperado e singular, uma verdadeira viagem traduzida num vocabulário musical mais perverso e contorcido que ocupa mais e mais volume, estendido para além dos conceitos habituais pela presença dos sintetizadores que rangem sons e batidas baixos e arrastados, rugosos e arrepiantes, nas primeiras aproximações à industrial noise-music que começa a incluir nos seus temas.
A série Strecht revela-se como um daqueles viciantes trabalhos que se simplesmente se ouvem, sem buscar selecionar qual a melhor faixa, saltando para a próxima quando uma não nos cativa. Longe de serem estáticas ou carentes de personalidade na sua abstracção, nenhuma faixa de ambas as edições nos faz desejar a próxima, pois em cada uma encontramos, mais do que o que pensávamos existir para ser encontrado, o que ignorávamos existir e Arca nos completa dando-nos a conhecer. A arquitectura musical composta por letra, ritmo e melodia é progressivamente desconstruída rumo a uma nova estrutura maleável e quase ausente de padrões que consegue combinar inúmeros géneros para gerar algo novo. Para lá da continuidade do passado, Strecht 1 e 2 são o vislumbre do desafio que Arca nos oferece no seu seguimento e com o qual Ghersi parece autorizar-se para continuar a ir mais longe.
O percurso de Ghersi em NY ao longo de 2012 traduzido no sucessivo e evolutivo lançamento destes três trabalhos que, ainda relativamente desconhecido, o levavam já a frequentar ambientes recheados de personalidades cada vez mais relevantes no universo da indústria musical, poderá, porventura, ser interpretado como sendo a expiação do ambiente opressor em que cresceu em Caracas como um solitário e dotado miúdo mais atraído pelos computadores do que por jogos de futebol, auto-reprimido socialmente devido à homossexualidade que já sabia existir dentro de si mas não podia exprimir livremente num ambiente social conservador, demasiado protegido na condição social privilegiada de colégios e condomínios em que teve a sorte de crescer. Ghersi descobria-se e afirmava-se progressivamente como artista, mas também como indivíduo na vertente pessoal. Esperar-se-ia que o ano seguinte de 2013 fosse mais temperado, tempo dedicado a absorver e a digerir toda esta transformação e libertação. Mas não foi o que aconteceu.
Em 23 de Julho de 2013, Arca lança gratuitamente online a excepcional mixtape &&&&& da qual constam 14 fantásticos e excêntricos temas que preenchem cerca de 25 minutos de duração e nada ficam a dever à antecessora série Strecht. Ainda que pareça contraditório, sem o ser na realidade, em &&&&&, Arca confronta-nos uma vez mais e novamente manufactura novas realidades e sonoridades. Os diálogos entre os baixos e os sintetizadores são ainda mais descompassados e harmoniosamente desequilibrados e desorientadores em ameaçadoras composições audazes e tensas para as quais contribuem também os samples vocais de rap e hip-hop com que pontua essas conversas, alternando períodos de ambientes aterradores e caóticos com suaves e límpidas, quase cristalinas, sonoridades de piano electrónico.
A parceria entre Arca e Jesse Kanda continua a dar frutos e lançam juntos lança um projecto de vídeo-projecção inspirado em &&&&& e composto por vários capítulos a exibir sucessivamente em vários locais até ao final de 2013. O primeiro trecho Trauma scene 1 foi exibido em 6 de Outubro do ano passado no MoMA PS1 com a faixa “Knot” como banda sonora e é protagonizado por três figuras disformes de crianças numa dança sincronizada com a música.
Não foi necessário nada mais para Arca ver reconhecido e distinguido a sua genialidade. Já antes do lançamento da mixtape, as três obras anteriores não passaram despercebidas a Kanye West, que não perdeu tempo a chamá-lo para co-produzir quatro faixas do seu álbum Yeezus de Junho de 2013. Foi o golpe de misericórdia que condenou Arca a uma posição cada vez mais relevante na melhor música actual que já estava adquirida por mérito próprio e a conviver o resto do ano de 2013 rodeado por uma total constelação de estrelas. Sucederam-se trabalhos conjuntos com a proeminente Kelela e a ainda mais aclamada FKA Twiggs, com quem co-produziu a faixa “Lights On” do longa duração LP1 e a integralidade do EP2, sendo fácil distinguir o cunho de Arca nas faixas “How’s That” e “Water Me”, aos quais acresce ainda Jesse Kanda na autoria dos vídeos. A ascensão continua em 2014 atingindo patamares sucessivamente mais elevados depois do lançamento de Xen, agora na co-produção com Bjork do sucessor de Biophilia.
“Xen”, a homónima terceira faixa do álbum de Arca, contém a mesma identidade sonora e visual de “Thievery” a que dá continuidade no vídeo que acompanha a faixa com a presença da figura Xen numa outra versão gráfica.
Esperemos, e desejamos, ser incomodados. Arca impõe-se um constante movimento para longe de onde esteja, desafia-se, e desafia-nos constantemente, provocando-nos a acompanhar o mesmo movimento.