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Queremos isso! Ser afetados! E o desenho é uma das minhas formas preferidas de pensar. Desenhar é usar o corpo em função do que não se vê; da imagem que ainda não está lá. É intuir…
(A lua e o seu efeito de afetação sobre o que em nós é amni-ótico...Enuncia o que está para nascer, num Pós Guerra. Em tempos muito antigos, quando o Homem assentou, era prestado o culto da guerra e do amor a uma mesma deusa...Zénite é também sobre e sob isto — Este pensamento chega-me sob a lua cheia que nos observa do alto, no último dia em que o espetáculo foi apresentado, em 2024...Só vos digo: Foi mágico...).
Desenhos # 1 © Rafael dos Santos
É entusiasmante conversar com o Rafael — ‘O tempo torna-se um rio sem margens’. É essa pujança, a que chama "desejo agressivo", geradora do atrito. Chama, também porque nele arde em sacrifício das imagens que chegam; alquimia conhecida por todo o mundano criador. O Vale do rio Trancão, na Bobadela, é o sítio tornado o Lugar do Teatro Zénite.
Sílvio Vieira assume a direção artística e de projecto, porém, a sua pujança decorre não de uma disputa autoral, mas da sua própria abertura e do Vale à cocriação com os interpretes, e, com o Rafael dos Santos, que assina a cenografia e desenhos, bem como a concepção do Teatro juntamente com o encenador. Ainda que a sua premissa construtiva fosse a utilização do entulho das obras de requalificação do Teatro Nacional D. Maria II, a demanda é do (re)encontrado Vale; o mesmo que dizer, da Paisagem, que a páginas tantas se torna, dir-se-ia, Mãesagem — Como diz o texto, a primeira mulher do Vale disse que não poderia ser rio, nem árvore "Preferia lutar na Guerra das Paisagens". Por-ventura tocar os seus pontos sensíveis; fragilizar-se e fragilizar-nos para com mais precisão apreender a escala do Vale.
Quis muito que os elementos fossem incisivos, certeiros. Aqui, jogar com a escala parecia-me quase impossível de não fazer; não quis ganhar ao espaço e não quisemos enfrentá-lo; preferimos abri-lo, ver através dos buracos entre as pedras, ver o reflexo que o rio criava — Observar que o correr da água do rio e o esvoaçar das cortinas de veludo não estão nada distantes. Eu e o Sílvio passámos muito tempo juntos, conversávamos, e as imagens começaram a aparecer-nos; tempo importante para perceber como é que nos relacionávamos com estas pistas que surgiam e quais as resistentes. Quis que os elementos partissem dos meus desejos e afetos, que ajudassem o espetáculo mas que todos fossem portais; espelhos com o fogo, a cortina de veludo, o telhado esburacado, pintado com lodo, construído pelo Tiago. Bem…muitas coisas…Sim, sempre!
Isto sente-se. O espetáculo torna-nos peregrinos; seguimo-los (interpretes e elementos cénicos), movendo-nos no Vale, não como quem segue influencers, mas como quem depende da escala própria da Paisagem; ou do seu continuado desdobramento em diferentes escalas, no sentido de nos colocar verdadeira e infinitamente em relação — Vinculando-nos à Terra e elevando o olhar à vastidão do céu, entretanto, noturno, e ao seu imenso Aberto; i.e., num gesto, elevar o Horizonte do nosso Possível a Zénite, sem com isso abandonar o mundo. A pesar…uma “muralha de sangue”…
É importante para mim pensar sobre uma ideia de destruição; de tirania, de perversão.
No seguimento da nossa conversa, sobre ser ‘bonzinho’, sobre os tempos que parecem suscitar uma estranha ideia de bondade e de conciliação nas pessoas, vejo-me a reagir de forma parecida à de quando tocava ao vivo; quando aumentava a distorção do amplificador para criar uma onda de ruído para aniquilar. Agora é diferente; este desejo agressivo acontece ao relacionar-me com a procura da fervura, com o que é próximo e silencioso; com o que não tem barreiras, com o que não tem limites; ter acesso ao que não está corrompido e 'desocultá-lo' numa imagem — Na ruína, a cenografia integra quatro espelhos redondos que reflectem o fogo, estão assentes em tripés de pratos de bateria; são reminiscências desse período em que tocava.
Os buracos martelados com uma marreta, no telhado pintado de branco, comprometendo-o; construído sem saber que ia sofrer e sujo com um lodo ‘desagradável’. Só conseguimos ver luz e os iluminados por causa destes buracos; com o Pedro, iluminamos este telhado através do espaço negativo, de dentro para fora — Destruir até acessar um miolo luminoso.
Zénite. © Bruno Simão
Retomo, porque sinto em Zénite a intensificação do mesmo afeto, um texto de Jean Marc-Besse [1], em torno do pensamento de Charles Péguy, por sua vez, em torno de Henri Bergson, a propósito de “Paisagem-evento”: “toda [a] paisagem apresenta uma velocidade própria, que corresponde à forma do encontro entre o que chega e a sensibilidade que para ali se transporta”.
Volto assim também à(s) escala(s). A sua precisão é insuperável na relação com o tempo do espetáculo; como se alinha com as diferentes temporalidades do Lugar…E de como magicamente atuam em consonância; recordo, por exemplo, o sobrevoo dos aviões a partir do Aeroporto ali ao lado…Uma vez mais, o seu desdobrar em diferentes escalas, i.e., iniciamos no topo do Vale observando os interpretes ao fundo (escala 1:1000); descemos, deles nos aproximamos, até que habitamos 1:1 — note-se um-para-um — o mesmo espaço.
É impactante, na medida em que, após caminharmos, é inevitável não consciencializar, por oposição, o quanto nos tornámos espectadores passivos do mundo, de como confortavelmente observamos o Outro — que somos nós mas esquecemos — nele tudo projetando. Criámos essa tal divisão, entre nós e o que chamamos de Natureza — cisão degenerativa, ferida aberta.
Zénite. © Bruno Simão
E, portanto, de como deste modo reencenamos a construção da “muralha de sangue”, por inconscientemente desejar a cura. Mas também (como os interpretes literalmente o fazem) a possibilidade de ‘co-transportar’ a nossa sensibilidade para a paisagem…Refiro-me à cortina de veludo encarnado, elemento cenográfico crucial que é deslocado e retorna no final, simbolicamente, ao palco, uma ruína, juntamente com a reencontrada sensibilidade dos interpretes…Não antes dos inquietantes instantes em que a cortina é devir “Paisagem-evento”…e-vento…Inefável é o modo como o vento — aquilo que permitiram que por vós não fosse pensado — nela é Sopro animando-a fulgurantemente…
A cortina de veludo vermelho, a “muralha de sangue”…Erótica inevitável; levanta pedras do chão, pendurada do céu — Sete por catorze metros. Revela o pó da escuridão. Uma força no peito.
Imagem do mistério, que perdura; beleza infinita, sem tempo.
Sempre igual, sempre diferente…
Beleza infinita, sem tempo. ‘Chorando’.
Ali Presença…Pediu-nos o Dom — O “Dom das Lágrimas”…E também eu entre alguns dos que assistiam doei. Fazes-me voltar a Walter Benjamin: “A verdade não é o desvelamento que destrói o mistério, mas antes a revelação que lhe faz justiça”. Por conseguinte, justiça à beleza infinita ou à beleza do infinito, com quem só o artista tem disponibilidade para conversar, segundo Agustina Bessa-Luís…Mas os artistas hoje não têm tempo para isso, o Incomputável…Parece que já é uma prática comum serem antes gratificados pelas instituições que os acolhem em residência artística pela sua capacidade de divulgação nas redes sociais, colocando-os em competição e não cooperação…Eis o dataísmo (de data, i.e., informação) e a sua abordagem pornográfica, como aponta Byung Chul-Han.
A inversão é esse Eros que é puro vínculo, inseparabilidade, tão presente em Maria Gabriela Llansol, fixado por imagens e não causas e efeitos; isso, que “levanta as pedras do chão” como referiste, é no texto da escritora invertido e revertido. (E porque não, pervertido?). Bem a propósito, um “V”, não mais atributo do Outro, tornando-se sim o “Feminino de Ninguém” — Abstenho-me de partilhar a passagem do livro para não ser cúmplice de uma veloz ‘divulgarização’ do texto, numa série de memes; ou ‘moi-mêmes’, sem experiência conhecida.
Como, aliás, convém a todo o terraplanista dos sentimentos, cuja estranha cosmogonia, como falámos, não observa o zénite dos materiais afetivos; esse modo radicalmente singular de como surgem as imagens e como se desdobram noutras singularidades; noutros afetos e desejos. São tempos de esterilizar para não contaminar…Será melhor ficar pelo meme, a que todos têm livre acesso, com prova comprovada de afetação em likes. Crêem — e querem fazer crer separando-nos — que um afeto é uma experiência isolada da sua e nossa consciência…
Zénite. © Bruno Simão
O preciso contrário é a personagem interpretada por Gaya. É assim como se passássemos para a escala dessa proximidade engravidando o “1” (a nossa atenção aumenta o que é observado), passando a 2:1 — dois para um — em que o grande eleva o pequeno à sua preciosa pequenez de semente, de potência, em Aberto. Ainda a propósito da agressividade, é na personagem operada uma alquimia…Após a luta, isola-se no tanque, não de guerra, mas de água (simbolicamente dos sentimentos, diria) e luta com o que sente. Depois disso, gloriosamente vencida, fica plena, como a lua e a sua influencia magnética sobre as águas que também somos…Tão plena quanto vazia…
É tocante — e a palavra é mesmo essa — como…
…Segura cada um da maneira que cada um precisa de ser segurado.
Sim! Isso mesmo! O 'segurado sagrado', dá à luz através das suas sombras...Vê-os por inteiro.
Com a precisão de quem (re)conhece e se instala atentamente — e estou a continuar a deslocar expressões do texto Jean-Marc Besse — nos seus “pontos sensíveis”, i.e., nos seus “pontos de vida”. Gaya é esse “Feminino de Ninguém”; os seus gestos, são também eles gestados. Amplia-os generosamente; desdobra-lhes a escala para que possamos ver. Compele cada um dos interpretes à sua “contramorte” e portanto à Vida. É um acontecimento da ordem do biográfico e não do bio-lógico — A magia suspendeu o lógico, naquele tanque, amni-ótico, que assim não pode pré-ver; só a magia nos desprepara para o terrível “encontro fulminante com o que vem em nossa direção: o vivo”.
...E eis o advento para todos ali presentes: O advento da consciencialização ao direito à Mãesagem.
Zénite. © Bruno Simão
Ainda não sei como tudo isto foi possível…
...Não sei...
Terminamos com o início — usámos da liberdade de remontar o tempo. As imagens rememoradas não conhecem o tempo linear; espacializam-se, criam lugares dentro e fora. As primeiras são as que ficam para sempre, sejam elas do nosso quotidiano ou da ficção — melhor quando se confundem, como o cinema de Victor Erice nos dá a ver. A performatividade (devir) e a montagem são as linguagens da arte contemporânea. Zénite é um espetáculo contemporâneo…Constelações são acontecimentos figurativos do Ser — e mais não digo, sobre seu final, porque adoraria ver este espetáculo novamente. Nem eu nem o meu amigo Cláudio que assistiu e cresceu na Bobadela sabemos o que fazer com este “Corpo Cem Memórias de Paisagem” (Llansol) — Amni-ótico
Fala-nos da constelação de imagens dos teus afetos, que participou do seu início, no tocante à decisão de fazer chegar os interpretes de barco pelo Rio. Ficaremos por descobrir os outros afetos dos demais elementos que cocriaram o espetáculo…Importa dizer que a sua presença é igualmente sentida, porque generosa, aberta ao quem vem ao encontro. Obrigada a todos.
Desenhos # 2 © Rafael dos Santos
Em Zénite, tivemos que encontrar uma forma de atravessar o rio. Pensávamos em pontes e em cordas.
O meu avô tinha um barco velho guardado. A Catarina e eu restauramo-lo, arrancámos parte do fundo que estava podre, substituímos várias madeiras e protegemo-las com camadas de fibra para poder abarcar os actores e actrizes e, aguentar o tempo; a água, as cordas e os arrastões.
Bas Jan Ader, artista que me atropela na faculdade, desaparece num barco, que restaurou, em 1975, quando tentava navegar da costa leste dos Estados Unidos até à Europa. No meu quarto, no GTA: Vice City, assaltava um barco e desaparecia da cidade de Miami, em direcção ao pôr-do-sol, a ouvir a "Self Control" da Laura Branigan, na Playstation 2. Em 2021, fiz um pequeno filme com a minha amiga Laura; esbarrámo-nos com uma aiola em Sesimbra que se chamava "Mudar de Vida". Transportámo-la para um estúdio do ArCo, onde filmamos um encontro de um marinheiro com uma sereia.
Uma vez, a andar de barco, encontrei um peixe-lua, a boiar, de lado, em Sesimbra. Durante anos passei pelo sítio onde eu e a Laura encontrámos o "Mudar de Vida". Durante anos apanhei nozes caídas da nogueira que escudava o barco que usámos em Zénite. O barco estava cheio de nozes dentro. Na Bobadela, dentro do barco, as cordas enrolavam-se em si próprias.
Oroboros.
Zénite. © Bruno Simão
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Notas:
[1] Cf. Jean-Marc Besse, "Nas Dobras do Mundo. Paisagem e Filosofia segundo Péguy" in Ver a Terra: Seis Ensaios sobre a Paisagem e a Geografia, São Paulo, Perspectiva, 2006, p. 97-108.