Links


ARTES PERFORMATIVAS


UMA TERRA QUE TREME E UM MAR QUE GEME

RENATO CRUZ SANTOS E DUARTE FERREIRA

2023-05-03



 

© Renato Cruz Santos

 

Uma viagem de Renato Cruz Santos e Duarte Ferreira:
Uma terra que treme e um mar que geme.

 

Sístole, exposição que pode ser visitada no Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas, na Ribeira Grande, até 14 de maio, é o resultado de uma viagem ao longo de duas residências, realizadas no âmbito do festival Tremor, pelas várias ilhas que constituem o arquipélago dos Açores. Ao longo de algumas semanas, entre 2018 e 2023, captámos sons e imagens por locais recônditos em busca do menos óbvio, tentando explorar aquilo que está para além do visível e do audível.

No caminho lento, atento, parámos várias vezes para escutar, observar, ou simplesmente permanecer ali. Em algumas alturas nem o equipamento tirámos do saco. Microfones, câmaras, e cabos não foram ligados. Tripés não foram montados. Era mais importante sentir o movimento oscilante da terra e do mar, e explorar um outro lugar.

Uma condição de registar qualquer som natural, entendido como uma forma de estar a que associamos ao da terra a respirar. O vento como resultado das diferenças de pressão, o vento sem som, camadas de ar que batem na matéria, nos objetos. O respirar da terra. Um batimento cardíaco associado ao movimento, às ondas, aos sismos, à actividade vulcânica, ao respirar. Uma terra que respira.

 

© Renato Cruz Santos

 

Planámos por superfícies rochosas, tropeçámos em espécies não endémicas, vivemos ambiências celestiais, estelares e sci-fi, vimos plantas que poderiam assemelhar-se a seres alienígenas, entrámos em florestas encantadas, explorámos sons não atingíveis pelo ouvido humano.

Seguimos um batimento murmurante e fomo-nos aproximando de falésias, afastando as urzes e, agachados nas pedras do calhau, vimos crescer vida nas poças da maré vazia. Subimos aos montes, embrenhámo-nos na floresta e desaparecemos em buracos das rochas. Como se à procura de alguma coisa perdida. Na verdade, não procurávamos senão aquilo que ainda não conhecíamos.

 

© Renato Cruz Santos 

 

Nestas reentrâncias desalumiadas, os olhos são-nos inúteis e guiamo-nos pela toada percorrendo trilhos sem garantia de ligação ou fim. Essa reverberação constante revela-nos um subsolo, lembrando uma estética de caos, prisão subterrânea ‘tão abaixo de Hades quanto a terra do céu’, que pode levar-nos a espaços tão próximos do coração da ilha onde, a toda a hora, bombeiam outras cores, a lava, o sangue. A iminência da escoada lávica e da matéria cuspida que outrora já avassalou a paisagem com obscuridade, eclipsando-a do sol, moldando-a e esculpindo-a, contraria a ideia idílica e predominante da natureza primitiva, do verde. Existem outras cores, outras texturas, outros limites, que circulam por túneis arteriais em constante mutação, e que a Humanidade, desde que aqui chegou, tentou explorar para além do que é visível.

Quando decidimos gravar estes momentos, o vento e a chuva eram ainda crianças, mas cedo rasgaram forte, fazendo gritar as gigantes criptomérias e batendo palmas nas copas dos inhames e das bananilhas. Como se de um espetáculo se tratasse, vejam só! Mas antes de ter sequer começado.

Éramos sempre chamados para um próximo caminho, alimentámos a curiosidade, sempre tentando, no final, proteger algum mistério, não interessando apresentar um postal.

Parámos, ouvimos, escutámos, observámos e sentimos o pulsar na terra e tomámos também consciência da problemática do que é a nossa pegada.

 

© Renato Cruz Santos

 

Abrigámo-nos por uns momentos. Dentro daqueles buracos na rocha húmida pingante, os gritos chegavam tarde e repetiam-se em forma de estalos perpétuos. Uns longos e fundos, outros ténues e quase calados. Nenhuma pinga seria igual à outra e todas elas caem da mesma maneira. Sem medo! Lá no meio do mar imenso. Vivo! Calmo e cantante.

 

 

 

Renato Cruz Santos é um artista multidisciplinar natural das Caxinas, Portugal. No seu trabalho, Cruz Santos explora maioritariamente as temáticas da memória, imaginário ficcionado e desconstrução do real. Grande parte do seu trabalho é produzido na sua terra natal onde tem vários projectos, de longo termo, em desenvolvimento.Trabalha activamente em várias vertentes de fotografia como jornalismo, música, teatro, dança, cinema - dividindo-se maioritariamente entre o Porto e Lisboa. Tem feito regularmente fotografias para discos e publicado em diversos livros da Galeria Municipal do Porto e Coletivos Pláka.

Duarte Ferreira nasceu no Funchal. É director de som, designer de som e artista sonoro. A sua actividade tem sido desenvolvida com maior expressão na área do som para cinema documental e de animação. É membro da equipa de audiovisual da unidade de Inovação Educativa da Universidade do Porto. É licenciado em Tecnologia da Comunicação Audiovisual pela ESMAE - Politécnico do Porto, em 2008. Vive e trabalha no Porto.

 

 

:::

 

 

© Álvaro Miranda/Arquipélago, Renato Cruz Santos, Vera Marmelo

 

Sístole
de Renato Cruz Santos e Duarte Ferreira

 

30 de Março – 14 de Maio
Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas

 




Outros artigos:

2024-10-21


AO SER NINGUÉM, DUVALL TORNOU-SE TODAS. I AM NO ONE, DE NÁDIA DUVALL, NOS GIARDINI, BIENAL DE VENEZA 2024
 

2024-09-18


JOSÈFA NTJAM : SWELL OF SPÆC(I)ES
 

2024-08-13


A PROPÓSITO DE ZÉNITE
 

2024-06-20


ONDE ESTÁ O PESSOA?
 

2024-05-17


ΛƬSUMOЯI, DE CATARINA MIRANDA
 

2024-03-24


PARADIGMAS DA CONTÍNUA METAMORFOSE NA CONSTRUÇÃO DO TEMPO EM MOVIMENTO // A CONQUISTA DE UMA PAISAGEM AUTORAL HÍBRIDA EM CONTÍNUA CAMINHADA
 

2024-02-26


A RESISTÊNCIA TEMPORAL, A PRODUÇÃO CORPORAL E AS DINÂMICAS DE LUTA NA ARTE CONTEMPORÂNEA
 

2023-12-15


CAFE ZERO BY SOREN AAGAARD, PERFORMA - BIENAL DE ARTES PERFORMATIVAS
 

2023-11-13


SOBRE O PROTEGER E O SUPLICAR – “OS PROTEGIDOS” DE ELFRIEDE JELINEK
 

2023-10-31


O REGRESSO DE CLÁUDIA DIAS. UM CICLO DE CRIAÇÃO DE 10 ANOS A EMERGIR DA COLEÇÃO DE LIVROS DO SEU PAI
 

2023-09-12


FESTIVAL MATERIAIS DIVERSOS - ENTREVISTA A ELISABETE PAIVA
 

2023-08-10


CINEMA INSUFLÁVEL: ENTREVISTA A SÉRGIO MARQUES
 

2023-07-10


DEPOIS DE METADE DOS MINUTOS - ENTREVISTA A ÂNGELA ROCHA
 

2023-05-20


FEIOS, PORCOS E MAUS: UMA CONVERSA SOBRE A FAMÍLIA
 

2023-05-03


UMA TERRA QUE TREME E UM MAR QUE GEME
 

2023-03-23


SOBRE A PARTILHA DO PROCESSO CRIATIVO
 

2023-02-22


ALVALADE CINECLUBE: A PROGRAMAÇÃO QUE FALTAVA À CIDADE
 

2023-01-11


'CONTRA O MEDO' EM 2023 - ENTREVISTA COM TEATROMOSCA
 

2022-12-06


SAIR DE CENA – UMA REFLEXÃO SOBRE VINTE ANOS DE TRABALHO
 

2022-11-06


SAMOTRACIAS: ENTREVISTA A CAROLINA SANTOS, LETÍCIA BLANC E ULIMA ORTIZ
 

2022-10-07


ENTREVISTA A EUNICE GONÇALVES DUARTE
 

2022-09-07


PORÉM AINDA. — SOBRE QUASE UM PRAZER DE GONÇALO DUARTE
 

2022-08-01


O FUTURO EM MODO SILENCIOSO. SOBRE HUMANIDADE E TECNOLOGIA EM SILENT RUNNING (1972)
 

2022-06-29


A IMPORTÂNCIA DE SER VELVET GOLDMINE
 

2022-05-31


OS ESQUILOS PARA AS NOZES
 

2022-04-28


À VOLTA DA 'META-PERSONAGEM' DE ORGIA DE PASOLINI. ENTREVISTA A IVANA SEHIC
 

2022-03-31


PAISAGENS TRANSDISCIPLINARES: ENTREVISTA A GRAÇA P. CORRÊA
 

2022-02-27


POÉTICA E POLÍTICA (VÍDEOS DE FRANCIS ALƾS)
 

2022-01-27


ESTAR QUIETA - A PEQUENA DANÇA DE STEVE PAXTON
 

2021-12-28


KILIG: UMA NARRATIVA INSPIRADA PELO LOST IN TRANSLATION DE ANDRÉ CARVALHO
 

2021-11-25


FESTIVAL EUFÉMIA: MULHERES, TEATRO E IDENTIDADES
 

2021-10-25


ENTREVISTA A GUILHERME GOMES, CO-CRIADOR DO ESPECTÁCULO SILÊNCIO
 

2021-09-19


ALBUQUERQUE MENDES: CORPO DE PERFORMANCE
 

2021-08-08


ONLINE DISTORTION / BORDER LINE(S)
 

2021-07-06


AURORA NEGRA
 

2021-05-26


A CONFUSÃO DE SE SER NÓMADA EM NOMADLAND
 

2021-04-30


LODO
 

2021-03-24


A INSUSTENTÁVEL ORIGINALIDADE DOS GROWLERS
 

2021-02-22


O ESTRANHO CASO DE DEVLIN
 

2021-01-20


O MONSTRO DOS PUSCIFER
 

2020-12-20


LOURENÇO CRESPO
 

2020-11-18


O RETORNO DE UM DYLAN À PARTE
 

2020-10-15


EMA THOMAS
 

2020-09-14


DREAMIN’ WILD
 

2020-08-07


GABRIEL FERRANDINI
 

2020-07-15


UMA LIVRE ASSOCIAÇÃO DO HERE COME THE WARM JETS
 

2020-06-17


O CLASSICISMO DE NORMAN FUCKING ROCKWELL!
 

2019-07-31


R.I.P HAYMAN: DREAMS OF INDIA AND CHINA
 

2019-06-12


O PUNK QUER-SE FEIO - G.G. ALLIN: UMA ABJECÇÃO ANÁRQUICA
 

2019-02-19


COSEY FANNI TUTTI – “TUTTI”
 

2019-01-17


LIGHTS ON MOSCOW – Aorta Songs Part I
 

2018-11-30


LLAMA VIRGEM – “desconseguiste?”
 

2018-10-29


SRSQ – “UNREALITY”
 

2018-09-25


LIARS – “1/1”
 

2018-07-25


LEBANON HANOVER - “LET THEM BE ALIEN”
 

2018-06-24


LOMA – “LOMA”
 

2018-05-23


SUUNS – “FELT”
 

2018-04-22


LOLINA – THE SMOKE
 

2018-03-17


ANNA VON HAUSSWOLFF - DEAD MAGIC
 

2018-01-28


COUCOU CHLOÉ
 

2017-12-22


JOHN MAUS – “SCREEN MEMORIES”
 

2017-11-12


HAARVÖL | ENTREVISTA
 

2017-10-07


GHOSTPOET – “DARK DAYS + CANAPÉS”
 

2017-09-02


TATRAN – “EYES, “NO SIDES” E O RESTO
 

2017-07-20


SUGESTÕES ADICIONAIS A MEIO DE 2017
 

2017-06-20


TIMBER TIMBRE – A HIBRIDIZAÇÃO MUSICAL
 

2017-05-17


KARRIEM RIGGINS: EXPERIÊNCIAS E IDEIAS SOBRE RITMO E HARMONIAS
 

2017-04-17


PONTIAK – UM PASSO EM FRENTE
 

2017-03-13


TRISTESSE CONTEMPORAINE – SEM ILUSÕES NEM DESILUSÕES
 

2017-02-10


A PROJECTION – OBJECTOS DE HOJE, SÍMBOLOS DE ONTEM
 

2017-01-13


AGORA QUE 2016 TERMINOU
 

2016-12-13


THE PARKINSONS – QUINZE ANOS PUNK
 

2016-11-02


patten – A EXPERIÊNCIA DOS SENTIDOS, A ALTERAÇÃO DA PERCEPÇÃO
 

2016-10-03


GONJASUFI – DESCIDA À CAVE REAL E PSICOLÓGICA
 

2016-08-29


AGORA QUE 2016 VAI A MEIO
 

2016-07-27


ODONIS ODONIS – A QUESTÃO TECNOLÓGICA
 

2016-06-27


GAIKA – ENTRE POLÍTICA E MÚSICA
 

2016-05-25


PUBLIC MEMORY – A TRANSFORMAÇÃO PASSO A PASSO
 

2016-04-23


JOHN CALE – O REECONTRO COM O PASSADO EM MAIS UMA FACE DO POLIMORFISMO
 

2016-03-22


SAUL WILLIAMS – A FORÇA E A ARTE DA PALAVRA ALIADA À MÚSICA
 

2016-02-11


BIANCA CASADY & THE C.I.A – SINGULARES EXPERIMENTALISMO E IMAGINÁRIO
 

2015-12-29


AGORA QUE 2015 TERMINOU
 

2015-12-15


LANTERNS ON THE LAKE – SOBRE FORÇA E FRAGILIDADE
 

2015-11-11


BLUE DAISY – UM VÓRTEX DE OBSCURA REALIDADE E HONESTA REVOLTA
 

2015-10-06


MORLY – EM REDOR DE REVOLUÇÕES, REFORMULAÇÕES E REINVENÇÕES
 

2015-09-04


ABRA – PONTO DE EXCLAMAÇÃO, PONTO DE EXCLAMAÇÃO!! PONTO DE INTERROGAÇÃO?...
 

2015-08-05


BILAL – A BANDEIRA EMPUNHADA POR QUEM SABE QUEM É
 

2015-07-05


ANNABEL (LEE) – NA PRESENÇA SUPERIOR DA PROFUNDIDADE E DA EXCELÊNCIA
 

2015-06-03


ZIMOWA – A SURPREENDENTE ORIGEM DO FUTURO
 

2015-05-04


FRANCESCA BELMONTE – A EMERGÊNCIA DE UMA ALMA VELHA JOVEM
 

2015-04-06


CHOCOLAT – A RELEVANTE EXTRAVAGÂNCIA DO VERDADEIRO ROCK
 

2015-03-03


DELHIA DE FRANCE, PENTATONES E O LIRISMO NA ERA ELECTRÓNICA
 

2015-02-02


TĀLĀ – VOLTA AO MUNDO EM DOIS EP’S
 

2014-12-30


SILK RHODES - Viagem no Tempo
 

2014-12-02


ARCA – O SURREALISMO FUTURISTA
 

2014-10-30


MONEY – É TEMPO DE PARAR
 

2014-09-30


MOTHXR – O PRAZER DA SIMPLICIDADE
 

2014-08-21


CARLA BOZULICH E NÓS, SOZINHOS NUMA SALA SOTURNA
 

2014-07-14


SHAMIR: MULTI-CAMADA AOS 19
 

2014-06-18


COURTNEY BARNETT
 

2014-05-19


KENDRA MORRIS
 

2014-04-15


!VON CALHAU!
 

2014-03-18


VANCE JOY
 

2014-02-17


FKA Twigs
 

2014-01-15


SKY FERREIRA – MORE THAN MY IMAGE
 

2013-09-24


ENTRE O MAL E A INOCÊNCIA: RUTH WHITE E AS SUAS FLOWERS OF EVIL
 

2013-07-05


GENESIS P-ORRIDGE: ALMA PANDRÓGINA (PARTE 2)
 

2013-06-03


GENESIS P-ORRIDGE: ALMA PANDRÓGINA (PARTE 1)
 

2013-04-03


BERNARDO DEVLIN: SEGREDO EXÓTICO
 

2013-02-05


TOD DOCKSTADER: O HOMEM QUE VIA O SOM
 

2012-11-27


TROPA MACACA: O SOM DO MISTÉRIO
 

2012-10-19


RECOLLECTION GRM: DAS MÁQUINAS E DOS HOMENS
 

2012-09-10


BRANCHES: DOS AFECTOS E DAS MEMÓRIAS
 

2012-07-19


DEVON FOLKLORE TAPES (II): SEGUNDA PARTE DA ENTREVISTA COM DAVID CHATTON BARKER
 

2012-06-11


DEVON FOLKLORE TAPES - PESQUISAS DE CAMPO, FANTASMAS FOLCLÓRICOS E LANÇAMENTOS EM CASSETE
 

2012-04-11


FC JUDD: AMADOR DA ELETRÓNICA
 

2012-02-06


SPETTRO FAMILY: OCULTISMO PSICADÉLICO ITALIANO
 

2011-11-25


ONEOHTRIX POINT NEVER: DA IMPLOSÃO DOS FANTASMAS
 

2011-10-06


O SOM E O SENTIDO – PÁGINAS DA MEMÓRIA DO RADIOPHONIC WORKSHOP
 

2011-09-01


ZOMBY. PARA LÁ DO DUBSTEP
 

2011-07-08


ASTROBOY: SONHOS ANALÓGICOS MADE IN PORTUGAL
 

2011-06-02


DELIA DERBYSHIRE: O SOM E A MATEMÁTICA
 

2011-05-06


DAPHNE ORAM: PIONEIRA ELECTRÓNICA E INVENTORA DO FUTURO
 

2011-03-29


TERREIRO DAS BRUXAS: ELECTRÓNICA FANTASMAGÓRICA, WITCH HOUSE E MATER SUSPIRIA VISION
 

2010-09-04


ARTE E INOVAÇÃO: A ELECTRODIVA PAMELA Z
 

2010-06-28


YOKO PLASTIC ONO BAND – BETWEEN MY HEAD AND THE SKY: MÚLTIPLA FANTASIA EM MÚLTIPLOS ESTILOS