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Strip Me, Dress Me (2003)
esta é, mais uma vez, uma reflexão sobre a mesma história – a minha –, na qual crio espaço para dizer algumas coisas que já disse e outras que nunca cheguei a dizer.
agora que termina um ciclo – chega ao fim a série a importância de ser – e que me convidaram a fazer uma reflexão sobre o trabalho que estive a desenvolver durante os últimos vinte anos, não posso deixar de retraçar aspectos óbvios, para quem tem algum conhecimento sobre o meu trabalho, numa tentativa de conseguir ir, pela insistência e pela repetição, um bocadinho mais fundo na investigação que tenho estado a fazer.
tenho vindo a compreender, cada vez melhor, que a arte foi o meio que me permitiu começar a explorar as causas do meu sofrimento. primeiro sem que as compreendesse de forma racional e depois, com o passar do tempo, começando a vislumbrar pormenores que as foram tornando mais inteligíveis.
o que aconteceu, logo desde o princípio, foi que tive de criar interesse sobre mim mesmo – de mim para mim – porque ninguém estava interessado.
é verdade que não me deixaram morrer à fome, que me levavam ao médico se estava doente, que tive sempre o que vestir e com o que brincar, mas não havia interesse – não havia interesse em olhar efectivamente para aquela criança, para aquele adolescente –e eventualmente este adulto –, para ver quem era.
vivi num ambiente de fantasmas alienados, totalmente absorvidos pelos seus próprios dramas e pelas suas próprias mágoas – vítimas de um mundo exterior que não coincidia com o dos sonhos. também eles quiseram escapar à violência da realidade.
no entanto, puseram crianças no mundo – nada há de mais real – e não sabiam que cuidar não significa apenas proporcionar condições materiais para que se mantenham vivas.
tenho vindo a deixar crescer a minha admiração pela tenacidade dessa criança emocionalmente negligenciada que planeou uma saída, que conjurou um futuro no qual estaria finalmente livre do narcisismo dos adultos que o puseram no mundo, e no qual tentaria nunca se esquecer de procurar compreender a origem do seu sofrimento e, consequentemente, estender as mãos em direcção ao sofrimento dos outros.
decidir que queria ser actor foi uma forma de escapar a uma realidade asfixiante, através da tentativa de ser outrxs, através da tentativa de me colocar no lugar de outrxs, de xs incorporar, de xs estudar e conhecer a fundo. e foi também uma forma de pedir que olhassem para mim. uma forma de invocar, por um momento que fosse, esse olhar. uma forma de ter a certeza de que estava a ser visto, de que me estavam a ouvir.
talvez se eu fosse outro – diferente daquele que eu era – quisessem saber de mim, tivessem interesse por mim.
talvez se eu fosse outro, através da distância, conseguissem ver ou compreender alguma coisa sobre mim. talvez conseguissem compreender alguma coisa sobre si mesmos, sobre o quão fechados estavam sobre si próprios, o quão encurralados estavam nos seus curto-circuitos. através da mediação do actor, talvez se abrisse dentro deles um novo espaço. talvez assim pudesse evitar recorrer ao confronto directo, que, lamentavelmente, nunca levou a lugar nenhum a não ser ao desespero.
a minha forma de aparecer, de me mostrar, foi feita através do desaparecimento. foi feita de sucessivas mortes. da extirpação de algo de mim. (a rasura do meu nome é um claro indício disso). acredito que é necessária uma ausência para que uma/a verdade se possa revelar, e que é impossível chegar a ela se houver interferência da vaidade.
todos estes anos, a minha actividade artística esteve centrada na desconstrução de uma coisa chamada identidade – porque desde muito cedo me confrontei com o facto de os outros presumirem que eu era (ou devia ser) algo que eu não era, e que, para além do mais, devia agir em conformidade com isso.
todo o meu trabalho gira em torno da pergunta: o que é que significa dizer eu?
porque passamos a vida a dizer eu.
esse eu parece tomar conta de tudo.
mas nenhuma resposta que se possa dar a essa pergunta irá dizer nada de verdadeiramente consistente acerca desse tal eu.
pergunto ainda: e se deixarmos de dizer eu, o que é que acontece?
o que é que vem antes desse eu?
talvez um desejo de intimidade com todas as coisas, uma vontade de ir ao encontro de uma inocência perdida.
eis, resumidamente, a raiz do meu trabalho.
Mom & Dad Slideshow (2007)
projecção vídeo, 15 min. loop de 15 fotografias, dimensões variáveis.
© Miguel Bonneville
os primeiros três anos em que comecei a apresentar performances em nome próprio, foram o suficiente para perceber que o melhor seria desistir. mas eu ainda estava cheio de coisas para dizer. ainda tinha a ideia de que a justiça existia de facto e que saberia, eventualmente, acompanhar o meu ritmo.
apresentar performances apenas uma vez, sem ensaios, com poucos meios, em que reivindicava a igualdade de género, a diversidade identitária, a liberdade sexual – ainda sem ter conhecimento dos termos académicos que proliferam hoje –, a abolição dos códigos conservadores, fossem eles no teatro ou na vida, e do infantilismo com que, como seres humanos, cidadãos, público, etc. éramos (continuamos a ser) tratados, rapidamente se tornou um beco sem saída.
apesar de ter havido, desde logo, um interesse flutuante e minoritário sobre o meu trabalho, havia também, simultaneamente, uma investida que ia largando o seu veneno: a autobiografia era vista como um género narcisista; que interesse tinha, para os outros, a minha vida? porque é que não me limitava a fazer terapia?
entre outras coisas, também fui informado de que as questões de género tinham deixado de ser relevantes, que o meu trabalho era estranho, hermético, imaturo, autofágico, que não fazia sentido, que me estava a armar em enfant terrible... enfim, a lista podia continuar. o paternalismo foi tão longe que, por breves instantes, até cheguei a ser um artista em quem certos entendidos das artes performativas estavam a apostar.
entendidos esses que, rapidamente, perderam o interesse assim que perceberam que não estava interessado em colaborar. ou seja, que não estava disposto a fazer o que queriam ou esperavam. (desde os tempos dos rituais sacrificiais – e que deram origem ao teatro – que se sabe que é um mau augúrio quando o bode se recusa a ser sacrificado de boa vontade.) e não só perderam o interesse como fizeram questão de me apagar dos seus mapas e consequentes suportes de difusão de informação.
senti que não me ajustava ao meio das artes performativas. depois de ter rejeitado o teatro a favor da dança, que me parecia mais livre, mas que afinal também não o era, procurei aliar-me às artes visuais, aos museus, às galerias, já que a ligação mais forte com a performance, em termos históricos, vinha daí – talvez pudesse encontrar um entendimento mais apurado, uma visão mais aberta, sobre as experiências que andava a fazer. sendo que nunca me interessei pela ideia de fidelidade a um só género, fosse em que área fosse.
no meio de todos estes desajustes e confluências, comecei a série “miguel bonneville” (2006-2012) que, por sua vez, começou com o fim de uma relação. começou quando me apercebi que, também nessa relação, eu não era visto. eu era apenas um meio para atingir um fim. então recomeçou o meu processo de parar de dirigir o olhar apenas para o outro e voltar a olhar para mim.
a série começou com uma necessidade intuitiva de me impor, de deixar claro – sobretudo para mim mesmo – que eu existia. (o título da série não deixa margem para dúvidas nesse sentido). eu tinha de criar espaço para a minha história poder existir. e, a partir desse momento, abracei, definitivamente, e sem qualquer margem para dúvida, a autobiografia como motor do meu trabalho.
mudei de estratégia e comecei a desenvolver performances que não me importasse de repetir; o que me incomodava na repetição era a tentativa de corrigir uma acção, a tentativa de a aperfeiçoar, retirando-lhe a crueza, o erro, a hesitação, a verdade. o que eu tinha rejeitado numa determinada forma de fazer teatro – como depois vim a fazer com uma determinada forma de fazer dança – era o exercício de estilo, era a técnica desprovida de qualquer emoção, a imagem sem conteúdo. era o ter de cumprir uma acção da forma mais perfeita possível, como se se tratasse de um desporto de competição. tornava-se uma tarefa; qualquer outro a podia fazer – porquê é que tinha de ser eu, então, a fazê-la?
consequentemente, comecei a delinear acções que teria de cumprir, mas com margem para improviso, com abertura o suficiente para agir como fizesse mais sentido no momento. (embora depois a estratégia tenha começado a mudar, passado um tempo.)
as críticas ao trabalho continuaram a ser mais ou menos as mesmas, mas a curiosidade foi-se mantendo, o que fez com que conseguisse encontrar alguns aliados que me permitiram levar as minhas experiências para a frente.
quando a série “miguel bonneville” chegou ao fim, decidi que tinha de fazer novas mudanças e recomeçar de forma diferente.
MB#9 (2012) © Sofia Arriscado
com “a importância de ser” (2013-2022) tomei, aparentemente, outro caminho.
fazendo uma revisão a todas as críticas que me foram sendo feitas ao longo dos anos, pensei que seria interessante continuar a seguir a mesma essência do trabalho que tinha apresentado até então, mas mudar-lhe os contornos. ou seja, a aparência.
no fundo, quis fazer um teste – não só a mim mesmo, para ver como seria trabalhar de outra forma, mas também ao meio artístico em que estava inserido, para ver se, seguindo eu os seus “conselhos”, as suas ideias sobre o meu trabalho se manteriam.
resolvi então apropriar-me de formatos performativos mais convencionais: mudei a designação de performance para espectáculo, comecei a apresentar as minhas obras sobretudo em teatros (em vez de bares, galerias ou outros espaços designados como alternativos ou não-convencionais), comecei a colaborar com outros artistas (músicos, desenhadores de luz, figurinistas, cenógrafos) em vez de fazer tudo sozinho, contratei alguém para fazer a comunicação com a imprensa em vez de o fazer directamente, contratei alguém para tratar da produção executiva em vez de fazê-la eu, e inverti o discurso: agora já não faço mais obras sobre mim, só me dedico à vida dos outros.
em parte, pude comprovar que alguma coisa mudou, de facto. embora houvesse sempre desconfiança relativamente ao que andava a fazer, constava que este projecto revelava mais maturidade.
para além do mais, a partir do segundo projecto – a importância de ser simone de beauvoir – comecei a receber apoios do estado, o que também acabou por ajudar a legitimar o trabalho.
estas mudanças fizeram com que se fossem abrindo algumas portas. porque, de certa forma, esta série apresentava um formato mais “sério”. mas, no fundo, as opiniões não tinham mudado muito; a estranheza, o hermetismo, o não fazer sentido, mantiveram-se sempre presentes. adicionando a isso o facto de estar a debruçar-me sobre figuras públicas conhecidas (umas mais do que outras), e de isso fazer com que as expectativas fossem maiores, e que, consequentemente, o tal sentido que alguns procuravam parecesse estar cada vez menos presente – uma vez que a minha abordagem parecia não corresponder às expectativas.
A Importância de Ser Simone de Beauvoir (2014)
ao longo do tempo fui apenas confirmando aquilo que já sabia: que o meio cultural em portugal parece estar maioritariamente interessado naquilo que já conhece, naquilo que já sabe, e que é isso que procura. de pouco servem os experimentalismos e as revoluções se aquilo que sustenta a cultura de um país continua a ser o conservadorismo.
o que tem vindo a importar cada vez mais são os relatórios, os números de público, de visitantes, de seguidores, a criação de “conteúdo”.
o amor continua a ser julgado por consciências que não têm lugar para ele – o sistema é a razão que o nega. e por isso o sistema continuará a encurralar os artistas, refugiando-se na reinvenção das normas, ao abrigo de uma pretensa justiça.
uns acabaram por ceder, outros nem por isso. nada de novo. literalmente, nada de novo.
agora, eu não quero ter de ser simpático com quem não está minimamente interessado em manter um diálogo. não quero ter de agradar. e também não quero ser ingrato: é claro que no meio de todo este cenário em constante ruína, houve sempre quem me permitisse ser o que eu queria ser, fazer o que tinha de fazer, sem condescendências, sem necessidade de me diminuir ou de me usar – de outro modo não tinha aguentado fazer nem metade do caminho. essas são aquelas que ainda não desistiram, e que sei que, tal como eu, também estão exaustas, fartas, e sem vontade de continuar. mas que, apesar de tudo, maioritariamente, continuam.
não haveria António de Macedo, Simone de Beauvoir, Agustina Bessa-Luís, Paul B Preciado, Georges Bataille, Alan Turing, Marguerite Duras, e outros tantos, se assim não fosse. não haveria histórias de resistentes.
porque é que se resiste? parece que há uma força que nos move que é maior do que nós. que somos incumbidos de uma espécie de missão. e que para a cumprirmos temos de passar pelos sacrifícios.
este é o subtexto – e o próprio texto – que corre por toda “a importância de ser” e por toda a minha obra.
foram vinte anos a dizer “sim” e a fazer “não”, a tentar não fazer concessões, a tentar que os “outros” também pudessem ter direito a ser vistos, ouvidos, também tivessem direito a um lugar, aos mesmos lugares.
e embora tenha mantido sempre a minha paixão pela criação artística, pelas pessoas maravilhosas que trabalharam comigo e que me apoiaram, pelos artistas e pensadores sobre os quais me debrucei, o excesso de burocracia e a sensação de estar a ser constantemente humilhado por um sistema que opera kafkianamente, foram-me destruindo a vontade.
não será por acaso que vou à procura de outras paisagens, da companhia de outros animais, e de figuras que transpuseram as fronteiras do seu próprio género, e que olharam de frente para o sofrimento: os santos.
a conclusão a que chego, é que a ignorância das causas do nosso próprio sofrimento é o que leva ao sacrifício do outro. e eu não estou disposto a fazer com os outros o que fizeram comigo.
aquele que efectivamente ama, aprende a morrer. e é assim que saio de cena – pelo menos por enquanto.
Miguel Bonneville
Miguel Bonneville introduz-nos a histórias autoficcionais, centradas na desconstrução e reconstrução da identidade, através de obras que cruzam múltiplas áreas artísticas. Desde 2003, tem apresentado o seu trabalho nacional e internacionalmente, sobretudo os projectos seriados Miguel Bonneville, Family Project, e A Importância de Ser. Recebeu o Prémio da Rede Ex Aequo (2015) pelos espectáculos Medo e Feminismos (co-criação com Maria Gil), e A Importância de Ser Simone de Beauvoir. É director artístico do Teatro do Silêncio.
miguelbonneville.com | teatrodosilencio.pt
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um agradecimento especial à Magda Henriques que tem tido, desde o princípio, disponibilidade para meditar sobre os meus textos, assim como para nutrir o meu crescimento imaterial.