ARTES PERFORMATIVAS
RECOLLECTION GRM: DAS MÁQUINAS E DOS HOMENS
RUI MIGUEL ABREU
2012-10-19
Num contexto pop, e pense-se no debate gerado desde o início pelos Kraftwerk, a discussão em torno da música eletrónica passou muito pela definição dos limites do humano e do maquinal. Mas nos domínios eruditos essa definição nunca deixou de existir de forma muito clara. Tristram Cary, um dos pioneiros da eletrónica em Inglaterra, distinto membro do Radiophonic Workshop e enquanto tal visionário criador de uma paisagem sonora para os Daleks, formulou desde cedo uma distinção clara para as suas práticas laboratoriais escrevendo que a música concreta lhe oferecia a possibilidade de “realizar música como uma gravação em vez de como uma performance”.
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O Radiophonic Workshop operou num cenário muito específico – a BBC – aplicando os ensinamentos da música concreta em bandas sonoras para teatro radiofónico, primeiro, e para televisão, depois, influenciando o subconsciente de várias gerações. Mas a primeira exposição do público britânico às novas realidades musicais eletrónicas aconteceu com a transmissão de Symphonie Pour Un Homme Seul de Pierre Schaeffer.
Schaeffer fundou o Groupe de Recherche de Musique Concrète (GRMC) em 1951, uma das primeiras células criativas criadas para investigar as possibilidades encerradas por uma tecnologia desenvolvida pela Alemanha Nazi: a fita magnética. Schaeffer abandonou o GRMC em 1953 e reformou o coletivo cinco anos mais tarde como Groupe de Recherche Musicale, o famoso GRM. Luc Ferrari, Iannis Xenakis, Bernard Parmegiani ou François-Bernard Mache são alguns dos compositores com quem Schaeffer trabalhou em profundas investigações conceptuais em torno de sonoridades concretas, eletrónicas e eletrocústicas tornando muito mais claras as divisões entre o que era do domínio da criação laboratorial e o que pertencia à mais física dimensão da performance.
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A Editions Mego de Peter Rehberg inaugurou já em 2012 o selo Recollection GRM dedicado a reeditar obras do vasto arquivo da GRM. Os dois primeiros lançamentos foram Le Trièdre Fertile (1975-76) de Pierre Schaeffer e Granulations-Sillages / Franges du Signe (1974-76) de Guy Reibel. Seguiram-se L’Oeil écoute / Dedans-Dehors (1970 – 77) de Bernard Parmegiani e a compilação de obras de vários compositores Traces One (que abarca um período entre 1960 e 1970). Sempre em vinil: “A ideia já gravitava na minha cabeça há algum tempo”, explicou Peter Rehberg à Fact, “mas começámos a discuti-la no fim de 2011. Limitei-me a perguntar porque não estavam estas obras disponíveis em vinil”.
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Na estratégia de diversificação da Editions Mego, esta abertura de um selo dedicado à memória da GRM faz todo o sentido, sobretudo tendo em conta a criação igualmente recente (2011) da Spectrum Spools, outra etiqueta apostada na investigação da música eletrónica, mas de um ângulo mais contemporâneo – o catálogo da Spectrum Spools que já leva duas dezenas de lançamentos é curado por John Elliot dos Emeralds e apesar de incluir sobretudo obras contemporâneas de nomes como Bee Mask ou Motion Sickness of Time Travel, também já alargou o raio de ação de forma a integrar algumas reedições, casos de discos assinados por Robert Turman ou Franco Falsini.
Investigação em torno de três pilares da medição acústica – frequência, duração, intensidade – que Schaeffer contornou durante boa parte da sua obra –, Le Trièdre Fertile é uma obra que se distingue no conjunto das criações deste compositor por ser o seu único trabalho puramente eletrónico, realizado com o apoio técnico de Bernard Dürr (e lançado originalmente como um título da notável coleção Prospective 21 Siècle da Philips). Com um som incrivelmente vibrante (as transferências digitais e os cortes de acetato foram realizados com extremo cuidado e envolvem o estúdio de referência Dubplates & Mastering, de Berlim), este trabalho tardio de Pierre Schaeffer tem a particularidade de soar tão cerebral como emotivo, com o mestre a ceder a um “arrependimento tardio” ao apoiar esta peça nas tais medições fundamentais do som.
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O álbum de Guy Reibel segue num outro sentido, mais cerebral e matemático, e trata de investigar os limites, nomeadamente os da perceção humana. Reibel era um quarto de século mais novo do que Schaeffer e este foi o seu primeiro trabalho de monta, lançado originalmente como parte da Collection INA-GRM. Adotando os princípios da acusmática, mediante os quais a origem dos sons é invisível e só o som puro importa – esta é música composta a pensar em execução através de colunas, e não em performance, e assim regressamos ao princípio enunciado por Tristram Cary –, Guy Reibel realizou aqui um trabalho intrigante que parece sugerir a banda sonora para uma viagem pelo interior dos chips na memória de um computador.
A terceira entrada no catálogo da Recollection GRM foi reservada para L’Oeil écoute / Deadans-Dehors de Bernard Parmegiani, um trabalho onde a definição de Tristram Cary da música como “som organizado” encontra perfeito eco. A imersão no universo deste compositor que iniciou carreira como técnico de som da televisão francesa é completa e L’Oeilécoutesoa exatamente como um filme sem imagens, com comboios, insetos e o que soam como disparos de raios laser a combinarem-se num universo tão estranho quanto exótico. Dedans-Dehors soa ainda mais incrível, impressionante exercício de edição, em que a fita magnética se torna ao mesmo tempo espaço de performance e partitura de imaginação.
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Finalmente, a mais recente edição da Recollection GRM da Editions Mego é uma compilação de título Traces One que reúne material que se estende entre 1960 e 1970 e que tem a assinatura de compositores como Beatriz Ferreyra, Philippe Carson, Edgardo Canton, Francis Régnier e Mireille Chamass-Kyrou, nomes menos celebrados da escola concreta, mas que, atentando aos trabalhos aqui incluídos, merecem igualmente atenção e certamente justificam mais este lançamento: dronmes acusmáticos, colagens abstratas, ritmos erguidos pela repetição de foundsounds, mergulhos no caos aparente do ruído de onde emergem sempre nítidas paisagens acústicas.
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No próximo mês de dezembro serão editados os quinto e sexto volumes nesta série de reedições com selo Recollection GRM: Presque Rien de Luc Ferrari e Triola ou Symphonie por moi-même de Ivo Malec. Tendo em conta a agitação profunda em torno da eletrónica mais experimental nos últimos anos – agitação essa ecoada nas edições da Spectrum Spools, mas muito mais ampla – reedições como a deste material dos arquivos da GRM são importantes pois oferecem contexto histórico a um diálogo – o dos homens e o das máquinas – que não dá sinais de esmorecer e que continua a gerar alguma da mais desafiante música do presente.
http://editionsmego.com/releases/recollection-grm/
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