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Quando acontece ser bom, reclama o lugar que, na verdade, nunca perdeu e volta a ser muito bom. Ao olharmos para a ilimitada vastidão de novos géneros musicais e respectivos sub-géneros musicais que os últimos quinze ou vinte anos nos têm oferecido, plenos em quantidade de artistas e bandas criadores e percursores de ambientes sonoros tão variados de inegável qualidade, de inovadora inventividade, de assertiva irreverência e relevante distinção em muitos casos, em outros tantos aos quais não negamos reconhecer o mérito artístico que lhes é devido mas que não conseguem evitar misturar-se numa monótona e unicolor mole de valiosa mas homogénea identidade sonora da qual não se distingue a respectiva individualidade, e a outros ainda para os quais se torna impossível não admitirmos não entender os conceitos e noções de estética artística e musical que abraçam na obcecada busca pela quebra de fronteiras levada demasiado longe ou em direcções mais questionáveis, pensamos que o rock de há três ou quatro décadas atrás, o verdadeiro rock, ele próprio com os seus sub-géneros e fundado nas raízes mais ancestrais de soul, funk, folk, jazz, rythm & blues e música clássica, por não se reinventar mantendo-se fiel à sua matiz ou por cair em alguns dos mesmos lapsos, perdeu o seu lugar no mercado ao não conseguir acompanhar esta recente e significante avalanche criativa da qual não consegue destacar-se e que o ofuscou e ultrapassou. Até que ocasionalmente, por entre aquela multidão ou nas margens dela, eis que surge um rock relevante, distinto, significativo, evocativo das suas origens mas ao mesmo tempo modernizado e actualizado, que nos mostra que renasce reinventado ou nos vem recordar que nunca desapareceu e que, acima de tudo, tão simplesmente nos toca no nervo, nos desequilibra, nos alegra e nos entristece, nos arrepia.
Eis “Tss Tss”, segundo LP da banda canadiana Chocolat de Montréal liderada por Jimmy Hunt na guitarra e voz e a quem se deve a principal veia criativa da banda, a quem se juntam Ysael Pépin no baixo, Emmanuel Ethier na guitarra, Brian Hildebrand na bateria e Martin Chouinard nos teclados, lançado no mercado em 21 de Outubro de 2014 pela editora Grosse Boîte, a secção francófona de Dare To Care Records, com duração total pouco superior a 30 minutos que, podendo parecer-nos curta num primeiro momento, revela-se-nos mais que satisfatória em resultado da recompensadora exigência que a sua audição demanda e da intensidade musical que nos oferece e não nos deixa entediar, garantindo-nos e recordando-nos que o rock, o verdadeiro rock, quando é bom e acontece ser bem servido como é por Chocolat, está de boa saúde, actual e longe do seu ocaso.
Ao longo dos quase seis hipnóticos minutos da magnífica “Fantôme”, que surge na sexta posição da tracklist, o arranjo musical de um rock elegante e grandioso é acompanhado por Hunt que repete sucessivamente a palavra que empresta o título à faixa num lamurio dilacerante, gritado e revoltado num conteúdo vocal que se limita a esta repetição cíclica intermediada por um gemido contido e resignado, transportando-nos para um ambiente incandescente e dramático de ritmos abrandados e densos aos quais é abruptamente anexado no final uma contrastante linha de ritmo vertiginoso de acordes de identidade marcadamente punk, enquanto “Burn Out”, na abertura do LP, nos captura desde o seu início num estado de ansiedade acelerada em que nos deixa o seu pesado e compacto rock que eficazmente combina o punk e o psicadélico em vocais enérgicos mas leves e macios e um refrão de sonoridade mais assombradora, acompanhados por uma secção rítmica de acordes contínuos e encadeados que alternam com riffs de guitarra incisivos de sonoridade mecânica que estilhaçam o refrão vocal distorcido.
Chocolat trazem-nos uma descarga diabolicamente viciante e narcótica de um rock enérgico e poderoso e ao mesmo tempo lo-fi, sem filtros nem travões mas elegante e sofisticado, de identidade pura no espírito e no agri-doce som psicadélico e progressivo que se demarca dos formatos mais convencionais e comerciais.
As oito faixas que compõem “Tss Tss” criam enfeitiçadoras atmosferas insufladas e expandidas, distintas entre si em resultado de um inconvencional dinamismo que se afasta das estruturas clássicas, com algumas faixas cuja duração ultrapassa os cinco minutos em arranjos musicais sustentados na marcada presença de longas passagens instrumentais de sequências de acordes de guitarra lineares e arrastados bruscamente interrompidos por abruptas alterações tonais e por erráticas mudanças rítmicas e alguns efeitos electrónicos progressivos que se fundem em sonoridades que nos evocam o rock-pop dos anos 60 de The Beatles e o rock psicadélico e progressivo da década de 70 de Led Zeppelin acrescentadas pela experimentação inspirada nos tempos actuais, nos quais se dissolve quase ausente um incontornável e extraordinário uso minimalista da voz em letras que não ambicionam o título de poesia e abordam temas como os segredos da civilização ou o fim do mundo limitando-se em vários casos à repetição de uma mesma palavra cantadas pela voz magnífica de Hunt em inglês ou no mais invulgar francês e que, em equilíbrio não sobreposto ao instrumental nem submetido a ele, oscila entre tons suaves de ilusão e devaneio ou ascende a estranhos patamares quase assustadores de volume elevado e gritos distorcidos que esticam os limites da música e que nos arrastam numa intensa viagem emocional e musical.
No final de 2013, e na sequência de um convite para participar num festival, Hunt e Pepin começam a preparar um conjunto de faixas novas e Hunt cria em casa algumas demos contendo ideias rudimentares compostas por alongadas linhas de acordes de guitarra, batidas rítmicas variadas e quebradas, sintetizadores e outros efeitos e voz. Curiosamente, o festival acabou por não acontecer, mas estava iniciada a fundação de “Tss Tss”.
Ao mostrar aos restantes membros as demos que já contavam com a genialidade criativa e performativa de Hunt na voz, letras e composição e que não deixaram de os surpreender com o caminho progressivo e mecânico que aparentavam querer tomar, Hunt contava com o talento da secção rítmica de Pépin e Hildebrand e com o corpo e volume que a guitarra e teclados de Emmanuel e Chouinard trazem ao conjunto sem que transformassem em demasia o espírito original desses primeiros esboços e mantivessem a espontaneidade sonora de quem produz música pelo prazer único de a produzir conforme ela brota da origem sem se interessar por resultados em tabelas de vendas de discos.
Fiéis a esta condição, a banda ensaiou muito brevemente e já estava em estúdio para iniciar gravações no início de 2014 sob a batuta de Hunt que, em oposição às práticas técnicas mais convencionais, reuniu os membros em torno de seis microfones que captavam voz e instrumental sem qualquer tipo de isolamento parcial com a intenção de juntar essa poeira residual contaminadora ao conteúdo sonoro, e que tanta diferença faz no resultado final distinguindo-o e dando-lhe carácter individual, e tocavam não mais que dois ou três takes directos de cada faixa, aqueles que cada músico ainda conseguia manter na memória a estrutura base de cada demo e a ela adicionar a sua espontaneidade individual que não era amputada por nenhum dos outros de forma a manter esta coerência com o que é natural, e gravavam directamente como um verdadeiro grupo de amigos apenas a divertir-se.
A par das outras faixas do LP, “Apocalypse” e “Interlude” ilustram o resultado deste processo. Na sua individualidade, Chocolat consegue equilibrar uma dualidade musical que é tão orgânica, ritmada, enérgica e efervescente como áspera, fria, amarga e vil.
Um regresso virtual a 2006 traria uma grande probabilidade de encontrarmos Jimmy Hunt na cena nocturna de bares de música ao vivo de Montreal onde era habitual canta-autor e trovador de punk-rock, folk-rock e country-rock em performances célebres de um carismático one-band man muito à moda de Bob Dylan, altura em que se encontrava em tardes esporádicas com o amigo Ysael Pepin, na altura encarregue do baixo na banda Demon’s Claws, para umas jam sessions que levavam a cabo por pura diversão.
Essas experiências casuísticas começaram a tomar forma mais consistente e aos dois amigos juntam-se Brian Hildebrandt, que também integrava a secção rítmica dos Demon’s Claws, Martin Chouinard, frequentador dos palcos nos bares de Montréal à semelhança de Hunt, e Dale Macdonald, à época membro da banda Cochroaches na qual a sua guitarra marcava presença com uma sonoridade peculiar e característica e que, após rumar à Europa, foi substituído na formação pelo não menos talentoso Emmanuel Ethier, dando origem à primeira formação de Chocolat para a qual a espontaneidade e fluidez do processo criativo eram mandatórias e que, em Março de 2007, edita através da editora Dry & Dead o seu primeiro EP intituldado “The EP“ cuja sonoridade de um retro garage-rock que se encontra com a chanson-française, como se Bob Dylan encontrasse Jacques Dutronc, revelava uma electrizante e muito dançável energia que trouxe notoriedade imediata ao grupo nos concertos que se seguiram ao lançamento do EP e que poderíamos interpretar como um possível embrião de “Tss Tss“ em resultado da sua identidade livre e algo selvagem apesar de ainda distante das características abstratas do trabalho de 2014.
Demarcando-se com sucesso da tendência indie e causando inevitável surpresa, “Charlotte“, terceira faixa na tracklist e à semelhança das sete que compõem o EP que pode ser escutado na íntegra em https://chocolatmtl.bandcamp.com/album/ep, é cantada em francês, decisão que a banda toma em consciência acreditando que, não conseguindo escapar ao sotaque francês de que as letras cantadas em inglês seriam impregnadas por serem cantadas numa atitude e linguagem soltas e descontraídas como requer o próprio espírito do género musical e que fariam Hunt cair nessa armadilha, deveriam em alternativa assumir abertamente a inspiração em Jacques Dutronc numa interpretação pessoal e actualizada. Ainda sem a presença e influência das sonoridades progressivas, psicadélicas e experimentalistas que se encontam em “Tss Tss“, em “The EP“ nota-se evidente a inspiração no rock dos anos 60 e a inventividade criativa e musical de Chocolat em arranjos musicais de estrutura mais convencional em que a hábil marca individual de MacDonald na guitarra se faz sentir sobre uma secção rítmica de baixos melodiosos e da tendência para as variações rítmicas tão presentes em “Tss Tss“que a bateria já começa a discretamente anunciar.
Um ano após o lançamento do notório “The EP”, e como uma das primeiras bandas a juntar-se à sua editora actual Grosse Boite, é editado o primeiro LP “Piano Élegant” disponível para escuta em https://chocolatmtl.bandcamp.com/album/piano-l-gant e que, apesar de bem recebido junto do mercado e crítica e ter mantido em destaque os cinco músicos, não deixa de nos deixar surpreendidos, confusos e algo desapontados em resultado do rumo musical seguido neste trabalho se olharmos à distância para o EP de estreia e para o álbum lançado em 2014 e tentarmos estabelecer uma ligação no percurso entre ambos.
Ao contrário das sonoridades garage-rock de “The EP” e psych-rock de “Tss Tss” entre as quais é-nos fácil ler uma ligação e uma evolução no processo criativo e identidade musical da banda, e tão pouco tempo após “The EP” ser lançado, “Piano Élegant” corresponde a uma viragem musical na direcção de um rock-pop mais suave e ligeiro que se limita a misturar a chanson-francaise e o rock britânico e americano dos anos 60 de tom mais poético e cores mais aguareladas em que as sonoridades mais cruas e “sujas” perdem terreno e quase desaparecem, sem nos trazer algo de efectivamente novo e relevante.
Os acordes de guitarra ganham limpidez e transparência, os arranjos são mais controlados e refinados nos quais se nota uma ausência total de devaneios em efeitos electrónicos e distorcidos e uma diminuição da liberdade e da rebeldia, e sobressai um conjunto de subtilezas em adornos de xilofones e piano mais elegantes que afastam Chocolat da sua natureza mais selvagem. Apesar da presença de algumas faixas ritmadas, várias outras são baladas melódicas e são evidentes as influências das facetas mais pop de The Beatles, de The Byrds, de The Kinks, de Cash ou de Gainsbourg que Hunt cresceu a ouvir e que contribuiu para a sua decisão de manter as letras cantadas em francês que abordam temas com pendor mais romântico e inocente. Com efeito, esta inesperada alteração corresponde a uma experiência que Hunt pretendia levar a cabo voluntariamente afastando-se do som garage com o objectivo de filtrar o som de Chocolat sem cometer o erro de cair demasiado no universo pop-music, levando-o a intitular a música e sonoridade de “Piano Élegant” de Rock Elegante. Não negamos o valor musical do álbum, mas acolheríamos de bom grado uma maior irreverência e inovação que nos levasse a novos territórios.
O período que se segue ao lançamento de “Piano Élegant” é preenchido com inúmeras actuações ao vivo mas, gradualmente, a banda vai abrandando a sua actividade até atingir um ponto em 2010 em que efectivamente a interrompe. É um facto que o sucesso dos dois trabalhos os estava a lançar numa rotina de ritmo demasiado acelerado que sentiam beliscar a verdade das suas motivações para com a música mas, maior motivo, Hunt começava a sentir necessidade de voltar a explorar outras vias e regressar aos seus projectos a solo, o que o levou a editar dois álbuns em 2010 e 2013 de cariz fortemente folk-country rock que lhe renderam sucesso e aos quais juntou participações ocasionais em outros projectos ao longo desse período e, sendo ele o líder natural e mente criativa do grupo, deixou Chocolat refém dessa liderança e criatividade com receio de se tornarem musicalmente monótonos caso se aventurassem em novos trabalhos sem a contribuição de Hunt na composição de novos conteúdos.
A interrupção, que foi uma pausa e não um fim, foi natural e benéfica face aos atribulados anos que sucederam a “Piano Élegant” desde 2008 a 2010 e não prejudicou a amizade que unia os membros do grupo que se mantiveram em contacto ao longo do período de hibernação sabendo que bastaria dar tempo ao tempo para sentirem quando seria o momento certo para trabalharem juntos novamente, da mesma forma que, sem planos pré-determinados, a sua reunião foi natural quando sentiram que continuava a ser estimulante trabalharem juntos assim que tal fizesse sentido, o que aconteceu quando Hunt se apercebeu que as demos que tinha criado em 2013 tinham predestinada a marca de Chocolat e da criatividade combinada dos seus cinco membros.
O animal livre e selvagem é solto do seu cativeiro e “Tss Tss”, com a sua força magnética à qual não podemos oferecer resistência em faixas como "Méfiez-vous du Boogaloo, representa uma outra inflexão no percurso musical novamente em contraste e ruptura com o antecessor e já distante “Piano Élegant” que não nos deixa memória.
As faixas “Tss Tss”, “Méche” e “Gobekli Tepe” completam o entusiasmante LP em que Chocolat parece redescobrir e sentir a necessidade de regressar à génese de “The EP” e de estabelecer com esse trabalho já distante um elo ao mesmo tempo coerente e evolutivo que não é um regresso da banda após uma separação que nunca existiu, mas sim a sua continuidade natural e solidamente fiel à sua forma de abordar a música que não se converte aos ditames da indústria.
“Tss Tss” é um arrojado e extraordinário trabalho de um rock simples mas não simplificado, do qual sobressai que tudo flui sem imposições, extravagante, exuberante e exótico de inspiração retro e psicadélica actualizado em intensos experimentalismos electrónicos, impregnado de uma diversidade musical suave ou poderosa, apresentado por um grupo de amigos que simplesmente gosta de tocar música, e que nos surpreende e nos vicia num consumo em que caímos sem controlo e medida, deixando-nos na expectativa de quando se virará a próxima página da história de Chocolat e o que nos revelará ela.