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Ema Thomas, dupla formada em 2019, situa-se algures entre um colectivo de performance, uma banda de rock e experiências artísticas avulsas, “contemplativas” mas “corrosivas”, fazendo uso dos adjectivos que Ana Marques e Francisca Sousa usam para se referir ao seu projecto. Colocar-lhes um rótulo quanto ao que são e para onde se movem é difícil e desnecessário; Ema Thomas é um rumor para ser averiguado e experienciado em locais próprios à sua energia.
Esta entrevista foi oportunamente realizada numa esplanada, e não numa versão virtual, como todas as anteriores, num momento em que o projecto Ema Thomas se encontra parado devido à pandemia: Ema Thomas exige público, exige corpos que vibram, e exige contacto e confronto com eles para que se despertem os “demónios adormecidos”.
Entrevista por Catarina Real
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Para começar a nossa conversa, podem-me falar sobre o vosso início. Como se formaram?
Francisca - A possibilidade de começar o projecto deu-se através de um amigo nosso que organiza eventos, e que na altura estava a organizar um festival no Barreiro, o Baixa Isso Fest. Quando ele estava a fechar o line up, eu liguei à Ana e acabei por lhe propor participarmos no festival com alguma coisa performativa, como já tínhamos falado noutras alturas. Como não tocamos nenhum instrumento, a ideia era apresentar uma coisa completamente nova, fora do registo do próprio festival, que é composto por bandas com uma estrutura tradicional.
Nesse registo, e de uma forma impetuosa, a gente avançou com as Ema Thomas.
Ana - Decidimos fazer uma performance. A mise-en-scène, mas também a componente musical, e o vídeo, para além do nosso registo de movimento. Percebemos logo que as Ema Thomas funcionam nesses espaços pequenos, onde há interacção directa com o público. Os palcos não funcionam. Esse festival, dada a sua dimensão, funcionou muito bem. Para nós, que ainda não tínhamos história, mas também para o público, que esperava um outro concerto e foi surpreendido. Mesmo nós, sendo frequentadoras assíduas do meio, nunca vimos nada que se assemelhasse.
Como foi essa reacção, de serem anunciadas como uma banda, e depois acabarem por ser um duo performativo?
A - Foi positiva.
F - As pessoas ficaram um bocadinho incrédulas. Houve muita curiosidade. Chamou muito as pessoas aquele espaço, que era intimista, pequeno. Algumas pessoas começaram a afastar-se quando começamos a performance, porque viram que era uma coisa física e que não era música e que não estávamos a ocupar o espaço do palco, mas sim o espaço onde o público via os concertos. Formou-se uma espécie de meia lua à nossa volta, fruto do receio do que se estava ali a passar.
A - Deram-nos espaço para nós expandirmos. Nós também fomos com uma postura muito agressiva, houve arremessos... De cerveja, de objectos... Foi uma forma de confrontar o público.
F - É muito cara a cara, o que fazemos, tudo em relação com o público.
Tudo o que fizemos nessa apresentação eram movimentos expansivos, de forma a conseguir ganhar espaço, uma vez que não estávamos no palco. O público seguiu as nossas dicas e acabou por entender...
A - Pela sua segurança [riso].
E foi fundamental, porque não era expectável! Criámos a nossa identidade, mas foi tudo um tiro no escuro e a reacção podia ter sido diferente. Não houve propriamente uma coreografia programada, concreta, havia apenas planeada a interacção entre as duas, e com os objectos. Não sabíamos o que ia acontecer.
Antes de avançarmos para esses objectos, e seu significado, duas coisas; vocês sabiam o que é que queriam com o que estavam a apresentar? E se vocês se vêm a estar inseridas apenas neste contexto, em que são apresentadas como uma banda e acabam por ser uma surpresa, ou se vêem como um projecto performativo que pode ser inserido em contextos em que é mais expectável.
A - É muito transversal. Correu muito bem neste evento porque houve uma energia brutal, o evento mudou completamente a partir da interacção que conseguimos criar com o público. Estavam as pessoas muito paradas, quase aborrecidas... e a partir dali houve uma mudança. Foi incrível. Mas acho que somos muito transversais, e podemos funcionar noutros ambientes.
F - E até pode resultar um dia com instrumentos e música ao vivo, desdobrando-nos em ramos artísticos, num certo sentido. Poderemos um dia ter outros performers a participar, com a nossa máscara, serem mais Ema Thomas.
A - [Ana avança com uma ideia para uma outra performance]
F - Pode ser algo que pode ser levado a vários outros níveis, e como estamos inseridas no contexto das bandas, e da música, podem surgir várias parcerias nesse sentido.
A - Mas será sempre um projecto experimentalista. Muito do it yourself, sem pretensões.
F - Posso também mencionar que acabámos por colaborar a nível vocal com os The Dirty Coal Train. Como eles estavam lá nessa nossa estreia, os dois projectos acabaram por caminhar sempre lado a lado. Eles têm-nos convidado para abrir os concertos que têm feito. Acreditam que para o que nós fazemos é algo que acrescenta uma energia extra.
De resto, até imaginaria a coisa a extrapolar para outros contextos.
A - Até galerias.
Até num contexto mais... limpo, sem tantas interferências?
A - Não necessariamente. Há muitos projectos de performance, desde a década de 70 até agora, que estão muito ligados a uma expansão sexual e que depois evoluíram para um cenário musical experimentalista. Vejo-nos mais a percorrer esse caminho. Nós notámos que faltava isso cá, sobretudo a partir desses convites que depois fomos recebendo. Havia uma lacuna deste tipo de interacção com o público.
F - Mesmo que não tenha esta conotação imediata de “performance art”. Se és um artista plástico que trabalha com performance há um lugar muito específico para ti, que são as galerias ou os museus. Não há muitos a escolher os modelos menos convencionais. E mesmo nas salas de concerto e no universo do rock, em que poderia haver mais facilmente essa liberdade, a verdade é que não existe nada. Os espaços fecham-se, são redundantes à sua área.
A - Podíamos até ter calhado de começar noutro contexto... embora às vezes pensemos que foi inevitável.
De onde surge o vosso nome enquanto dupla?
A - Foi fruto de um brainstorming... E pareceu-nos certo. Primeiro porque estas performances são muito duras fisicamente. Pela nossa agressividade para com o público, pela carga física que é para nós... durante quinze minutos ininterruptamente estamos a apropriar-nos de todo o espaço, chão, tudo!
F - E mesmo ser um nome feminino, faz sentido. Uma espécie de persona, um alter ego.
A - E suscita curiosidade, porque pode ser o nome de uma só pessoa ou de uma banda ou de um conjunto de pessoas. É ambíguo, e gostamos disso.
É também por isso, por essa curiosidade e ambiguidade que não temos nenhuma rede social, gostamos que as pessoas venham descobrir o que somos, o que é ou são as Ema Thomas. Não temos necessidade de nos esconder, mas gostamos desse contacto ao vivo.
Já nos perguntaram muitas vezes o que é que somos, e é uma pergunta bastante difícil de responder... Não sabemos responder porque estamos em construção. Venham só ver-nos.
F - E porque podemos ser muita coisa também, somos mutáveis.
Gostamos muito de música, de arte, e de várias áreas circundantes, e é a resposta à tua pergunta sobre o rumo... queremos ir para todo o lado.
A - Não há limites. Quando os há, as pessoas ficam restringidas e a capacidade criativa diminui.
Aproveitando o que estavas a dizer antes quanto aos arremessos... podem falar um pouco sobre o espaço simbólico que esses actos e objectos ocupam?
F - Um dos primeiros elementos a aparecer para nós foi a banana. A banana é fálica, mas também é um elemento divertido.
A - O arremesso é um riot. TOMEM! VEJAM! SINTAM!
F - E quem quiser também pode comer.
A - Da cerveja, à banana, passando pela salsicha. É um buffet. Acabamos com um arremesso de pénis de papel, que é a nossa sobremesa.
F - Temos sempre elementos novos a cada performance, mas há alguns que se mantêm.
O objecto-chave é a banana, é fálico, fala sobre o homem, é irónico. E nós gostamos de estar nesse limbo da ironia, do que é sexual e não é, do comestível...
A - Há também outro elemento que repetimos, que é um elemento mais político. Dada toda a emergência da extrema direita, fizemos uma espécie de figurinhas de certas figuras políticas que repudiamos e que vamos usando como máscara, com uma música reaccionária como fundo.
F - Uma música que diz não às invasões da tua liberdade, uma mensagem contra os ataques à nossa liberdade, que vamos sentido. Politicamente estamos conscientes de que o cerco está a apertar. E quisemos pegar nisso também.
Havia também umas imagens em que eles estavam enfeitados estilo glam rock onde a mensagem era sempre “destruam estas personalidades”, estes falsos ídolos. E esse foi também um dos elementos que se manteve.
A - E sobre os arremessos ... cada arremesso diz respeito a cada um dos temas específicos.
Musical?
A - Sim. A cada tema musical temos um objecto com que vamos interagir, e esse é o nosso guião. Numa música que fala sobre a especulação imobiliária vamos arremessando notas, e mesmo que o objecto não tenha uma relação directa com o que é dito, temos sempre esse guião como base. Essa narrativa.
Como se as músicas fossem a estrutura?
A - Sim. É um enredo. A primeira música é sempre uma música de entrada. Lembro-me que na primeira actuação começamos com uma banda sonora pornográfica. Na segunda actuação, como foi no Titanic Sur Mer, foi a música do Titanic, numa versão de flauta transversal.
F - Nunca começamos junto ao público, então temos sempre uma intro. Para nós faz todo o sentido, porque às vezes até demoramos algum tempo a aparecer.
A - E cria um certo suspense. Na terceira actuação, como tudo foi muito relacionado com o coronavírus, havia um pequeno tema apocalíptico inicial.
F - Essa setlist acaba por ser sempre alterada. Temos também sempre uma parte final onde arremessamos a nossa mascote, o nosso merchandise, a sobremesa. E essa parte sim, é sempre repetida. E uma última música com um beat mais electrónico que dá aquele último pico de energia ao público.
A - E depois fica tudo cheio de autocolantes em forma de pénis no chão, e o público agarra neles, e cola e interage.
F - Acabam por se divertir com isso, como uma espécie de confettis. Tudo isto é para as pessoas se divertirem, para haver energia.
A - O depois da nossa performance é o caos, há de tudo, tudo rasgado no chão.
F - Até podemos falar do que é que fica da performance, dos restos. Na verdade, logo a seguir fica uma confusão, o espaço fica alterado.
A - Transformamos os espaços, sem dúvida alguma.
F - Muita gente leva coisas para casa, porque arremessamos muita coisa, às vezes partes do figurino caem... Desmantelam-se. Há muita gente que encontra aquilo no chão e leva para casa como um recuerdo.
A - Isso é muito bonito. E também ver o que transmitimos às pessoas. Ficam completamente... cheias de adrenalina.
Queria que me falassem um bocadinho mais sobre esta relação entre o uso de objectos ou referências fálicas, com o facto de serem mulheres, e de se colocarem num lugar que ainda é muito masculino - o espaço das bandas de rock.
F - Isso é muito interessante, porque eu e a Ana conhecemo-nos por frequentarmos os mesmos concertos. E às vezes estávamos nós as duas a curtir na linha da frente, sozinhas. Sempre foi o nosso espaço. Éramos das poucas mulheres, mas as únicas a ocupar a front line. O nosso matriarcado sempre foi muito real. Tivemos sempre poder ao ocupar esse lugar. E essa ideia sempre se manteve. Quem nos conhece desse meio não viu muita mudança entre as nossas pessoas e as performances que apresentamos. E isso interessa-nos. Somos completamente contra o patriarcado, e em tudo isto há muito conceitos feministas que estão implícitos.
Os figurinos foram feitos de forma a ajustarem-se a todos os movimentos que fazemos e isso faz com que sejam justos, e que revelem muito do nosso corpo. Não foi pensado para ser sexual, mas libertador. Quanto mais justo, mais cambalhotas podemos dar. É uma coisa de ginástica. Acabamos por acabar quase sempre semi nuas, mas acontece-nos, entre todos os movimentos que fazemos. Houve sempre um público respeitoso, maioritariamente masculino, mas há também essa nossa imposição: somos iguais. É também uma forma de força termos um statement que é tão forte.
No meio de todo o caos que geram, qual foi a situação mais caricata em que se viram?
F - Uma das coisas mais engraçadas era que tínhamos uma tour marcada a partir de outubro, internacional, mas foi tudo por água abaixo.
O vosso trabalho, que envolve esse impacto com o público, é completamente inviável neste momento...
A - Sim. Sem contacto, não há hematomas. Fizemos um vídeo para um festival on line, durante a quarentena, mas não é a mesma coisa. O confronto com o público é a nossa forma de estar. E esperamos que em breve retome, e que as pessoas não percam a curiosidade. O facto de não abrirmos o jogo, de as pessoas não saberem o que é, e de nem nós próprias o sabermos bem, é que o nos dá pica a continuar.
F - É a parte mais interessante.
A - E não termos uma identidade fixa. Assim podemos deambular. Há muitos caminhos abertos para poder explorar outras coisas.
F - Somos mutantes.
A - Mas sempre assentes no experimentalismo.
Há todo um espectro a ser explorado, e como não temos limites... quer dizer, no nosso caso o chão é o limite. O desgaste físico é tão grande que no dia seguintes estou cheia de hematomas, por todo o lado. E no final da performance entramos sempre numa espécie de transe.
F - Liberta-se ali muita coisa.
O mais interessante neste projecto é, mesmo sendo duas, não termos uma coreografia. Cada uma está na sua catarse, e acabamos por coincidir. E para o público é interessante não estarmos no lugar da banda, do teatro ou da dança. Tudo é efémero e comestível, andamos a circular por tantos campos e acabamos por não nos inscrever em nenhum.
A - Nem queremos, nunca.
F - Essa é a parte mais curiosa.
A - Não queremos rótulos.
Estamos prontas para continuar a construir e criar mais caos, por esse mundo fora. E às vezes é isso que falta, esse confronto que nos abana. O que nós transmitimos é muito aquilo que gostávamos de receber, a energia que gostávamos de sentir.
F - E por aí é que também acabamos por nos juntar muito pela música, há uma identificação com aquelas front woman que dão tudo, no confronto com o público, e com a energia que passam.
A - A música para nós é energia.
F - Dá-te qualquer coisa, adrenalina. Agita um bocadinho. E às vezes é só isso, energia.