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A plasticidade cultural produzida pelas intensas dinâmicas contemporâneas tecnológicas, económicas e comunicacionais, promovedora de interacções de convergência e assimilação da heterogeneidade, gera na rede globalizada processos de hibridização identitária marcados pelo obcecado desejo da novidade. Questionar-se-á, contudo, se esta afirmação de diversidade e descoberta possibilitadas por estas dinâmicas não está afinal a priori confinada a um determinado caleidoscópio, a uma amplitude com limites, controladas e manobradas por uma invisible hand – recorrendo ao conceito proposto por Adam Smith já lá vai um par de séculos – de interesses e efeitos perversos e objectivos favorecedores de uns em detrimento de outros. Há vinte anos, interpretando e extrapolando a noção de dispositif de Foucault – um conjunto heterogéneo constituído por discursos, instituições, decisões regulatórias, leis, normas administrativas, princípios filosóficos e morais, axiomas e declarações científicas, interligados e a funcionar em rede –, Deleuze sugere a ideia da sociedade de controlo contemporânea. Esta obsessão pela diversidade e pela novidade, nas questões de identidade em constante comparação com o Outro para além da sua aceitação ou rejeição, induzida pelo dispositivo daquelas dinâmicas contemporâneas, acaba, porventura, por adormecer, por anestesiar – interesses, talvez, deste dispositivo de controlo – a primordialidade irrestrita da própria capacidade individual de questionar e de criticar porque permite, mas impondo limites e condições por infiltração.
Há, felizmente, umas cabeças peculiares e saudáveis por aí. Plenas de contrastes, profundidade e ar limpo, optam por concentrar a questão e a crítica em si próprios, seja no Eu ou na formação social em que estão inseridos.
Do California Institute of the Arts em Los Angeles, onde estudou Composição e Música Experimental, ganhou interesse por música medieval, renascentista e barroca, mas também pela pop por influência do colega de turma e amigo Ariel Rosenberg – que dá pelo nome de Ariel Pink, dispensando apresentações enquanto nome frontal da sonoridade lo-fi, retro, nostálgica e algo psicadélica do dream-pop e do chillwave –, e da Universidade do Hawaii onde se doutorou em Filosofia Política com uma tese sobre comunicação e controlo e “as tecnologias moleculares de poder”, que também o fez passar pela Suiça onde se cruza com o filósofo Alain Badiou, ao contraste do isolamento quase total, enfiado em casa no meio do nada da amplidão da paisagem agrícola e dos invernos glaciais e austeros que duram meses a fio no Minnesota natal, ligado ao mundo quase apenas pelo feed de notícias e pelo dono da mercearia local. Da generosidade e abundância de palavras e irrequietude e profundidade de ideias, conceitos e opiniões que concede em extensas e densas entrevistas onde facilmente uma questão sobre opções líricas e musicais descarrila, ou melhor, encarrila, numa reflexão crítica complexa e multidisciplinar levada cirurgicamente ao mais ínfimo detalhe de que não abdica analisar, descascar e discutir incansavelmente, sobre poder, a ideologia de Sillicon Valley, globalização, capitalismo, inteligência artificial e os Bot’s, media e comunicação social, consumismo, internet e redes sociais, privacidade e o comércio de Big Data, ou nacionalismos recentes, ao contraste do minimalismo das letras da sua música que, por convicção em expurgar e alhear a música da palavra e fixar-se na estrita dimensão musical da obra e, também, devido a uma assumida falta de vocação para a escrita poética, resume intencionalmente na presença secundária de esboços fonéticos em loops padronizados que se encrustam nos ouvidos como pregões ou mantras ao serviço da experiência sensorial e que, podendo parecer ineptos, inexpressivos e ocos de conteúdo, constituem-se na verdade como veículos que fazem germinar perturbantes imagens mentais, assim revelando, em resultado da sua percepção e interpretação emocional, psicológica e intelectual, os reais e complexos significados políticos que carregam dissimulados.
John Maus é uma dessas cabeças e deu nas vistas em 2011. Não foi um acaso que o seu álbum “We Must Become the Pitiless Censors of Ourselves” colheu o título de uma das “Fifteen Theses on Contemporary Art” de Alain Badiou: “Since it is sure of its ability to control the entire domain of the visible and the audible via the laws governing commercial circulation and democratic communication, Empire no longer censures anything. All art, and all thought, is ruined when we accept this permission to consume, to communicate and to enjoy. We should become the pitiless censors of ourselves.” Unindo a música e a criatividade à reflexão e à crítica, é a invulgaridade e excentricidade da sua magnética personalidade que tornam a sua música vibrante e arrebatadora. Basta assistir aos seus concertos.
Ao contrário do que seria de esperar - continuar a produzir, capitalizando o sucesso de 2011 que o retirou de um anonimato apenas contrariado por um punhado de escassos mas ávidos fãs que seguiam devotadamente a sua produção musical, e que produziu o efeito secundário da revisitação dos seus álbuns anteriores “Songs”, de 2006, e “Love is Real”, de 2007, até então quase despercebidos – Maus desapareceu quase sem deixar rasto até 27 de Outubro passado. Não é de espantar em Maus. A ausência foi apenas intermediada em 2012 pelo lançamento de uma compilação de temas compostos entre 1999 e 2010. O longo período de seis anos terminou com o lançamento de “Screen Memories”, o muito aguardado LP de originais sucedâneo de “We Must Become the Pitiless Censors of Ourselves”; quem passou pela Zé dos Bois ou pelos Maus Hábitos recentemente teve a oportunidade de assistir à apresentação de algumas das novas faixas, a par de outras antigas, em mais uma apresentação ao vivo com a singularidade da marca de Maus em palco: um transe em turbilhão extravagante, estridente, incontrolado.
Objecto de crítica e denúncia do dispositivo de controlo contemporâneo, o álbum traduz a visão pessoal do cataclismo social e cultural que Maus augura quando disseca as dinâmicas pós-modernas. A complexidade desta impressão ameaçadoramente distópica é habilmente sintetizada nas frases curtas e directas das letras, repetidas sucessivamente ao longo de cada faixa, que, mais do que literais, são metáforas da lâmina da sua bagagem teórica – veja-se, por exemplo, “The Combine” praticamente limitada aos versos “I see the combine coming / It´s gonna dust us all to nothing” ou “Walls of Silence” que não passa de “It´s written in the walls of silence”. O laconismo compulsivo destes versos são engates de encaixe perfeito à voz cavernosa das suas performances em palco e à viciante e hipnótica fixação mental da sua música. A irreverência conceptual de Maus também recorre à ironia na profecia da catástrofe em letras um pouco mais elaboradas. Em “Pets”, esmurra-nos com a crueldade do destino inevitável de que ninguém escapa “Your pets are gonna die!”, nem mesmo os animais de estimação, para depois se assumir mais metafísico ao referir-se à morte “Let this be the time of the end, standing between time and its end”. A morte é também aludida em “Over Phantom”, neste caso a sua própria às mãos das forças destruidoras “I am the phantom over the battlefield”, depois ironizando acusador e autoritário para a inércia e apatia generalizadas dos que se aprisionam e morrem eles-próprios na estupidez “The zebra stripe the zebra stripe of stupidity /…/ Take a look here, there take a look it´s always more of the same / Take a seat there in the electric chair”.
A recusa da comparação com que o rodeia e da perseguição obcecada da novidade é aplicada à música. Maus está a borrifar-se para o forjar do próximo género ou sub-género musical. Pelo contrário, não há truques nem embustes: “Screen Memories” segue exactamente a mesma palette sonora dos seus antecessores, preterindo reinvenções que muitas vezes dão em nada em favor de uma identidade de continuidade que revela a confiança e convicção enquanto artista. A voz ecoante de barítono, muito à moda de Ian Curtis, é acompanhada por uma instrumentação synth-pop e post-punk evocativa dos anos ´80 sustentada por teclados sintetizadores analógicos que derramam espessas e espaçosas progressões e padrões melódicos, por linhas de baixo impulsionadoras, precisas e vívidas e pelo ritmo programado das drum-machines em cadência persistente, uniforme e regular, costurados com dedicação aos detalhes numa sonoridade atmosférica gótica e enérgica cheia de echos e reverbs que enfatiza a tonalidade e o timbre em privilégio das tensões emocionais que é desejado provocar. Contudo, alguma prudência é necessária. Típico em Maus, nada é directamente simples e o que parece. A sua criatividade musical está longe de ser alimentada por uma evocação nostálgica dos anos ´80. Bem mais importante é a sua afirmada postura experimental que mistura as várias vertentes e influências do seu percurso musical e alia as harmonias barrocas da Renascença e o post-punk nas suas características camadas melódicas minimalistas e vocais profundos, ecoantes e distorcidos, embrulhados numa pop bizarra que se impõe ao resto do território da pop-music.
Em dinamismo constante entre faixas que rondam os três minutos, “Screen Memories” afirma a sua identidade musical do princípio ao fim no retro-futurismo intemporal que é a marca personalizada de Maus. Ao longo da tracklist, a atmosfera sonora e emocional alterna entre as mais sombrias, como “The Combine” e “The People Are Missing”, e outras menos carregadas, como “Sensitive Recollections” e “Walls of Silence”. Em sincronia com a sua observação do desmoronamento social e cultural e em compromisso de resistência e resiliência através da criação artística, “Screen Memories” é o celebrado regresso de uma complexa e vibrante personalidade em afirmação da relevância de um artista que, ainda que instalado no seu cunho identitário, permanece alerta e crítico ao que o rodeia.
Screen Memories Tracklist
1. The Combine
2. Teenage Witch
3. Touchdown
4. Walls of Silence
5. Find Out
6. Decide Decide
7. Edge Of Forever
8. The People Are Missing
9. Pets
10. Sensitive Recollections
11. Over Phantom
12. Bombs Away