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ARTES PERFORMATIVAS


SHAMIR: MULTI-CAMADA AOS 19

Ricardo Escarduça

2014-07-14



 

 


Confusos? Não. Shamir Bailey, Shamir, e o seu EP de estreia Northtown, editado pela nova-iorquina Godmode e lançado no mercado em 12 de Junho passado, não nos deixa confusos. Antes interessados, cativados, atraídos.

Em “Sometimes a Man”, Shamir apresenta-nos uma das suas múltiplas facetas e atinge-nos com os ritmos padronizados de EDM e house. As drum machines, os sintetizadores, os teclados electrónicos. As batidas sequenciadas, repetitivas, Incisivas, ásperas e minimalistas, sublinhadas por frases e refrões programados de background vocals em tons graves, que acentuam o ritmo. Prende-nos e faz gerar a expectativa pela boa faixa de dance music que se adivinha.

Quando entra em cena, percebemos que a sua voz é a sua marca pessoal. Surpreende pelo contraste. É aguda, aveludada, delicada. Tem algo de frágil, de vulnerável. Tem algo de feminino, de sedutor. Assemelha-se a um falsetto, sem o ser. Mas, em simultâneo, é variada, de alcance amplo e consegue atingir tons graves. Como que duas vozes distintas no mesmo corpo. Capta-nos, desvia-nos a atenção para a melodia e para o desempenho vocal. Parece sobrepor-se à música.

Mas, afinal, não. Nessa dualidade aparente entre a voz e a música, uma e outra constituem-se a luva certa para a mão certa, são duas partes que se completam, o todo que é maior que a soma das partes e que nos traz uma nova e inesperada unidade.

Em paralelo com a sua música, a sua imagem é uma mescla unificada de um adolescente claramente urbano com algo de delicado, quase feminino. Shamir revela-se visualmente e junta a esta mistura outros ingredientes que reforçam o magnetismo com que a música nos segura. Não contraditórios, mas complementares.


À presença dos sintetizadores que crescem turbulentamente juntam-se sirenes perfurantes. Sonoridades psicadélicas que quase nos atropelam num fervor extático e caótico, onde a voz é um tempero suave, uma boia que nos resgata desse remoinho.


A frase “sometimes a man is not what he says he is” sumariza o Shamir multi-camadas.

 

 

“If It Wasn´t True”, faixa de apresentação de Northown, possui a mesma impressão digital de “Sometimes a Man; foi a primeira música à qual efectivamente se dedicou com a obstinação de um auto-didata que aprendeu os acordes de guitarra sozinho.
Em frases como “Girl, I wouldn’t know about it”, parece carpir as mágoas de um coração destroçado por um amor não correspondido.


Poucos meses bastaram para ser descoberto pela sua actual editora e catapultado da sua nativa Las Vegas para NY, onde o EP foi gravado.

Shamir cresceu contra-corrente, “nas margens da multidão”, devorando avidamente soul, rock, jazz, R&B, hip-hop, punk-rock e qualquer outro género de música a que deitasse a mão, numa cidade virada para o consumo imediato e massificado, da qual é legítimo não se esperar que gere músicas, sonoridades e artistas como Shamir.

Fiel às origens na sua cidade-natal, nos vídeos que acompanham estas duas faixas, homenageia as ruas, o deserto e as suas grutas rochosas, os casinos, o encandear das luzes, o que julgamos ser o seu dia-a-dia entre amigos e a sua casa, os bairros residenciais insonsos da vida real longe da ribalta e as casas em ruínas.

 

 

 

“I Know It’s a Good Thing”, segunda faixa do EP, segue as pisadas das faixas atrás mencionadas, mas coloca em destaque a dance-music e sente-se ao longe a influência do rock e do soul, com harmonias mais trabalhadas e menos primitivas, menos cruas. Inegável é o quanto nos contagia, nos toca e faz vibrar num energético positive mood aconselhável ao despertar madrugador. Damos por nós, sentados ou em pé, parados ou em movimento, por dentro ou por fora, a dançar ao som de Shamir.

 

 

 

É em “I’ll Never Be Able to Love”, na 4ª faixa, após já termos recebido de Shamir tantas camadas, que encontramos toda a sua soul music. Aqui acerta-nos em cheio na emoção pura e dura, que nos faz parar e despertar do transe em que nos mergulhou até aqui chegar. Aqui apercebemos que todo o seu primeiro trabalho e a diversidade que o caracteriza é, porventura, uma confissão, mas, acima de tudo, uma revelação de si mesmo.

 

 

 

Este fantástico bouquet com que Shamir nos brinda fica completo com um cover de “Lived and Died Alone” da autoria da canadiana Lindi Ortega. Afastando-se da sonoridade computadorizada e electrónica das restantes faixas, faz-se acompanhar apenas por guitarra acústica, começando com “love never came easily to me”. Na sequência de “I’ll Never Be Able to Love”, parece autocondenar-se conformado à solidão e enterrar-se a si mesmo nela. E enterra-nos juntamente com ele. É surpreendente que, dos seus 19 anos, saia este tumulto interior intenso. É uma interpretação impregnada de fragilidade e vulnerabilidade reveladas. É uma versão emocional e musicalmente bela. Chegamos aqui e pensamos que “não poderia ser de outra forma”. Enterra-nos com ele, enterra-nos cheios, plenos.

Confusos? Não. Expectantes. Expectantes porque, se aos 19 anos, Shamir nos oferece Northown, então venha o LP e as live-perfomances que se anunciam.
 




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