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ARTES PERFORMATIVAS


AO SER NINGUÉM, DUVALL TORNOU-SE TODAS. I AM NO ONE, DE NÁDIA DUVALL, NOS GIARDINI, BIENAL DE VENEZA 2024

FRANCISCA GIGANTE

2024-10-21



 

Fotografias da performance I AM NO ONE de Nádia Duvall, pertencentes ao vídeo filmado por Francisca Gigante e Francisco Teles da Gama. Todos os direitos reservados.

 

 

Veneza foi construída por migrantes, para fugir de invasores bárbaros em terra firme. O ataque fez com que as mãos de centenas de migrantes construíssem as suas novas casas no meio de uma lagoa do Mar Adriático. Bastaram grandes troncos de árvores transportados através do curso do rio Pó para serem submersos entre a lama e água existentes e sustentar as edificações. As estacas petrificaram, sem contacto direto com ar, oxigénio ou bactérias, o que fez com que a madeira não apodrecesse. Estas fundações permaneceram para que também outros se pudessem abrigar neste lugar. Uma engenharia que ainda hoje é aclamada devido à sua criatividade e astúcia.

Atualmente, de abril a novembro, La Serenissima convoca o circuito artístico a marcar presença na Bienal de Veneza, evento periódico bienal de gigante envergadura, que tem ocorrido quase sem interrupções – excetuando guerras mundiais e pandemia – desde 1895. Recorde-se que desde 1968 as obras expostas deixaram de ser comercializadas na bienal. “Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere” (Estrangeiros em todo o lado) foi o mote delineado pelo curador Adriano Pedrosa, diretor do Museu de Arte de São Paulo, para a 60.ª Exposição Internacional de Arte Contemporânea da Bienal de Veneza 2024, que pretendeu dar espaço a artistas considerados estrangeiros, imigrantes, expatriados, diaspóricos, emigrados, exilados ou refugiados, exibindo mais de 300 obras de arte. Ora, numa cidade construída por migrantes há muito que se esperava este destaque.

 

Fotografias da performance I AM NO ONE de Nádia Duvall, pertencentes ao vídeo filmado por Francisca Gigante e Francisco Teles da Gama. Todos os direitos reservados.

 

Concebida como happening, a performance I AM NO ONE (2024) de Nádia Duvall foi apresentada no dia 25 de julho, tanto fora como dentro das fronteiras físicas dos Giardini na Bienal de Veneza. Selecionando uma das sequências mais emblemáticas do seu filme “GREEN SCREAM” (2024), anunciado este Verão, a artista vestiu-se de laranja, colocando um lenço por cima do seu vestido, e descalça desenhou o título que dá nome à obra dentro das cinco malas envelhecidas, visivelmente abertas, vazias, presas umas às outras. Duvall carregou-as até à entrada do espaço que os seguranças diziam ser “um museu a céu aberto”. Ao mesmo tempo que se cobria de tinta vermelha de sangue, sussurrava cânticos maternais. Foram escutadas por todos aqueles que entravam e visitavam a exposição. Passou diretamente pelos torniquetes de acesso à bienal, passou as fronteiras delineadas, explorando com o seu corpo – feito dos muitos corpos de mulheres refugiadas a quem dedicou a performance –, o caminho de gravilha que circunda os pavilhões nacionais, presentes nos Giardini da bienal desde 1907, e conduziu ao pavilhão central, com a fachada pintada pelo coletivo de artistas indígenas de etnia Huni Kuin (Mahku) da região do Alto Rio Juruá, no Acre, reforçando o papel da arte como meio de resistência e de laços entre povos.

 

Fotografias da performance I AM NO ONE de Nádia Duvall, pertencentes ao vídeo filmado por Francisca Gigante e Francisco Teles da Gama. Todos os direitos reservados.

 

I AM NO ONE (Eu não sou ninguém) manifesta-se como uma imersão profunda nas complexidades de identidade e de memória, tecendo de forma incomparável a condição migrante e a relação com o espaço físico. A artista, ao puxar um conjunto de malas atadas umas às outras, incorpora as histórias por contar, carregando os fardos invisíveis, dando voz e presença às mulheres refugiadas, que atravessam fronteiras e lidam com a marginalização e exclusão (Julia Kristeva, Powers of Horror: An Essay on Abjection, 1980), metamorfosiando-se nas suas lutas, nas suas esperanças. Marcadas a tinta preta com o título da obra, primeiro I M ONE (sou uma: de muitas, acrescentaria), no fim a tinta vermelha acrescentou NO, para escrever I M NO ONE (não sou ninguém), com ausência do A. As malas adquirem uma função extra-objeto, são, por isso, extensões de Duvall, carregando consigo as histórias de sofrimento e de resistência na bagagem. Propõe, desta forma, a transformação das malas em ampliações do corpo, ao explorar a identidade como fragmentos de um corpo híbrido pós-humano, desafiando as linhas de fronteira entre humano e não-humano, como apontado por Donna Haraway no seu Manifesto Ciborgue (1985).

 

Fotografias da performance I AM NO ONE de Nádia Duvall, pertencentes ao vídeo filmado por Francisca Gigante e Francisco Teles da Gama. Todos os direitos reservados.

 

Nádia Duvall, nascida em Espanha e de origem luso-argelina, torna presente uma intersecção de identidades. O seu país é o mundo (Virginia Woolf, Três Guinéus, 1938). O seu corpo de trabalho parte da sua biografia e frequentemente explora temas de construção da subjetividade através de performance, instalação, filme, escultura e desenho, que evocam uma renovada introspeção. Na sua performance, incorpora todas as mulheres migrantes forçadas a deixar a sua casa de origem, refugiadas. Transfere os seus corpos e membros. Canta a dor de mãe, a resistência a perseguições ou conflitos. Homenageia a força inerente à condição humana. Enfatiza a resiliência que emerge numa harmonia cadenciada.

Ao inscrever I M NO ONE nas malas, Duvall subverte a noção de identidade fixa, sugerindo uma existência fluída e mutável, numa ótica de devir-migrante, devir-outro, conceito central em Deleuze e Guattari (Mille Plateaux, 1980). Este ato performativo evoca a presença das vozes silenciadas, das memórias coletivas, das histórias de vida marcadas pelo deslocamento. Incorpora múltiplas identidades, não fosse essa a essência das suas múltiplas personalidades inventadas, fragmentando o seu corpo de trabalho em dezasseis heterónimos. Reflete, por isso, sobre a construção social das identidades e o conceito butleriano de identidade como performance contínua (Judith Butler, Gender Trouble, 1990). Proponho, ainda, que este trabalho político-social é em si mesmo um veículo de empoderamento feminino, de corpo ativo invisibilizado na sociedade, que questiona narrativas dominantes (Griselda Pollock, Vision and Difference: Feminism, Femininity and Histories of Art, 1988).

 

Fotografias da performance I AM NO ONE de Nádia Duvall, pertencentes ao vídeo filmado por Francisca Gigante e Francisco Teles da Gama. Todos os direitos reservados.

 

A escolha dos Giardini como palco da performance é simbólica, pois este é um espaço carregado de história, onde as narrativas de inúmeros artistas se entrelaçam, ao longo de 129 anos. Além de que, as relações de poder institucionalizado exercem controlo sobre os corpos, moldando a sua subjetividade e identidade (Michel Foucault, Vigiar e Punir, 1975). A performance, transcende assim o espaço físico, criando uma atmosfera de inquietação e profunda reflexão sobre as fronteiras do ser e do espaço. As malas vazias, simbolizando as histórias e memórias coletivas, desafiam a compreensão convencional da identidade e do pertencimento, procurando libertar-se das amarras da nacionalidade e conectar-se com as camadas de histórias, vivências e memórias pessoais em constante mudança. As identidades são renegociadas e reinventadas num espaço liminar (Homi Bhabha, The Location of Culture, 1994).

É, sobretudo, um ato de transformação, onde o corpo da artista se torna um veículo de contestação, reimaginação do espaço e uma reflexão poética e visceral sobre a fragmentação da identidade corporal e da relação do eu com o outro. Em I AM NO ONE, Nádia Duvall cria uma experiência performativa que provoca uma compreensão do ser no mundo, a pertença e a resistência, convidando o público a repensar quem somos em relação aos espaços que habitamos e às histórias que carregamos, a reconsiderar as noções de identidade(s). Duvall transforma a bienal de Veneza num espaço de introspeção e reflexão profunda, onde cada mala, cada canção e cada movimento se tornam uma poderosa declaração sobre a condição migrante, refugiada, e a procura incessante por identidade e pertença.

 

 


Nádia Duvall, nascida em 1986 em Alicante (Espanha) mas de origem luso-argelina, é uma artista e investigadora cujo trabalho reflete múltiplas questões auto-biográficas, sociais e políticas com profundas reflexões filosóficas através da utilização de múltiplos media, como a escultura, a pintura, o vídeo, a performance, a literatura e o cinema. Duvall é doutorada em Belas Artes (2024) pela Faculdade de Belas Artes de Lisboa, Universidade de Lisboa, com a prestigiada bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e a classificação final de Summa Cum Laude (distinção e louvor). A artista investiga a mitologia, a guerra e a fragmentação e desmultiplicação da personalidade como um sintoma da nossa contemporaneidade a que chama “EPILEPTIC MACHINES”. Duvall recebeu vários prémios como o Prémio Revelação de Pintura BANIF (2008), Prémio/Bolsa de Arte, Ciência e Tecnologia com a sua técnica inovadora de fazer Pinturas de Pele dentro de piscinas, Prémio Jovens Criadores do Centro Nacional de Cultura de Portugal (2016), Prémio Jovem Criação Europeia do Museu Amadeo de Souza-Cardoso (2019), Bolsa de Doutoramento FCT da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (2019-2023) e Mérito do Prémio de Arte do Luxemburgo (2022). Duvall tem vários livros publicados e participa em diversas conferências internacionais. A artista é atualmente representada pela Galeria FOCO em Lisboa, Portugal. [website]


Francisca Gigante é Historiadora de Arte e Curadora. Atualmente é Doutoranda em História da Arte na Universidade Nova de Lisboa, com uma bolsa de investigação do Instituto de História da Arte e da Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P., realizando visitas de investigação aos Arquivos da Bienal de Veneza, em Itália, e Documenta em Kassel, na Alemanha, na Università Ca’ Foscari e Kassel Universität. É membro do Grupo de Investigação Contemporary Art Studies (CASt) do Instituto de História da Arte. Completou o seu Mestrado em Gestão de Arte pelo Sotheby’s Institute of Art, em Nova Iorque, nos Estados Unidos da América, com um semestre em Histórias da Arte Contemporânea em Londres, Reino Unido. Licenciou-se em Comunicação Social e Cultural pela Universidade Católica Portuguesa. Durante os últimos anos, tem trabalhado entre Veneza e Lisboa para organizações de arte sem fins lucrativos, como a Fundação La Biennale di Venezia, a Coleção Peggy Guggenheim (Fundação Solomon R. Guggenheim) e o MAAT – Museu de Arte, Arquitetura e Tecnologia (Fundação EDP), coordenando mais de 250 estagiários internacionais, redigindo catálogos e realizando centenas de entrevistas a artistas contemporâneos e curadores. Foi consultora cultural e de comunicação em projetos como Urbs Travel e PARTE Portugal Art Encounters. Publicou o livro Retrato do Artista Quando Escreve pela Book Cover Editora. Recebeu recentemente o Prémio Seal of the Speaker of the United States House of Representatives por Nancy Pelosi. Francisca é Diretora da FITA - Friends In The Arts e Editora da FITA Magazine, com o Alto Patrocínio do Presidente da República Portuguesa. [franciscagigante@fcsh.unl.pt / CIÊNCIA ID: 8815-0CC9-91E8 / ORCiD: 0000-0002-2462-2758]




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