A propósito da estreia hoje nos cinemas, do filme Onde está o Pessoa? de Leonor Areal, Richard Laurent recorda a projecção de ante-estreia que teve lugar na Cinemateca Portuguesa no dia 23 de Junho de 2023.
Onde está o Pessoa? (2023), still
A cidade estava cheia de carros a apitar, pessoas a correr de um lado para outro, turistas.
Atravessei a cidade por entre o barulho do tráfego, da azafama do final do dia. Observo todas estas pessoas apressadas para ir para algum sítio... provavelmente para casa, provavelmente um possível reencontro com o sofá da sala em frente à televisão.
Eu também sou obcecado por esta peça de mobília. Por vezes sinto que esse sofá me toma como refém. Sei também que nenhum momento memorável da minha vida foi passado nesse sofá. Por isso, decidi não ir para casa.
Rumei até a Cinemateca Portuguesa, também conhecida como “Clube secreto dos cinéfilos hardcore”.
Um lugar com uma aura de mistério e fantasia inigualáveis.
Ouvi dizer que houve alturas em que se podia fumar dentro das salas de cinema. Também me contaram que viram por lá o João Bernard da Costa. Há quem jure que o viu por lá depois de 2009. Num reflexo de um espelho, numa imagem difusa através de um vidro, uma sombra num corredor pouco iluminado.
Muitas histórias se contam sobre este local, decerto nem todas serão verdadeiras. Como o testemunho de um amigo que jura ter estado de conversar com o Fernando Lopes numa noite de verão em 2015.
Atravessar o pórtico da Cinemateca é como atravessar um portal para uma realidade espácio-temporal diferente.
Onde está o Pessoa? (2023), still
Dentro da sala de cinema, Leonor Areal começa por explicar o mote do filme Onde está o Pessoa?: encontrar uma imagem em movimento de Fernando Pessoa. Para isso, toma como ponto de partida um “filme mudo, de 1913, digitalizado pela Cinemateca Portuguesa, e no qual se veem pessoas a sair de um espetáculo no antigo Teatro República, hoje Teatro Municipal São Luiz, em Lisboa”.
Este filme mudo faz-nos lembrar: La Sortie de l'usine Lumière à Lyon, um dos primeiros filmes da história do cinema, foi produzido e distribuído em 1895 pelos irmãos Lumière. Mas aqui, em vez de operários de uma fábrica temos a elite cultural lisboeta a sair de um espetáculo.
A voz de Leonor vai-nos guiando pela viagem, ouvimos o som da moviola a andar para a frente e para trás. De cada vez que revê o plano, a realizadora foca-se em algum personagem que lhe chamou a atenção. Quase como se investigasse um crime, Leonor vai revelando os diferentes personagens que consegue encontrar. Muitos deles personalidades relevantes da sociedade lisboeta, outros, embora ainda não o sejam nesta altura, serão num futuro próximo... quer dizer, num passado menos distante.
Cada vez que revisitamos o mesmo plano, é-nos mostrado uma perspetiva diferente. O plano fixo filmado em 1913 transforma-se numa edição dinâmica. Leonor inventa planos de acompanhamento, travellings, tilts e outros movimentos de camara mais fluidos. A construção de uma linguagem cinematográfica complexa sobre o plano fixo original.
“É como se cada uma destas pessoas estabelecesse um diálogo íntimo com a camara, apesar de estarem imersas na multidão”
Onde está o Pessoa? (2023), still
Lisboa sempre efervescente. Todos usam chapéu.
Leonor vai cruzando os diários de Pessoa com fotografias da época, tentando descobrir quem estava ali naquele dia. Não sabemos se tudo isto é verdade, mas é na Cinemateca onde o documentário se encontra com a ficção, a história se mistura com fantasia, e pessoas reais convivem com personagens e fantasmas.
“De manhã a insistência da tia Anica sobre a questão do emprego a propósito de um anúncio no Século disse que responderia ao anúncio, mas não pensei em responder”
in diários de Fernando Pessoa
Esqueci-me que tinha visto um filme digital... parecia tudo película. Parecia que tinha viajado para outros tempos. Um mergulho numa Lisboa antiga que não existe mais.
No final da sessão dirigi-me até à cafetaria no primeiro andar. Apetecia-me fumar um cigarro, beber um café, enquanto assimilava tudo o que tinha visto. Infelizmente, todos os lugares estavam ocupados. Executivos, e outros engravatados que trabalham nas redondezas, tinham ocupado todos os lugares. Tenho a certeza que não lhes interessa o cinema, nem as sessões daquele dia. Foi a beleza magnética inerente a este lugar que os tinha atraído ali. Voltei a descer as escadas, observei mais uma vez a coluna de latas de película que se equilibra em direcção ao céu. Sentei-me no banco da entrada e acendi um cigarro.
“Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.”
Lembrei-me deste poema de Álvaro de Campos. Lembrei-me que eu, o Fernando Pessoa, O Marques de Sade, o Prince e a Nicole Kidman, fazemos parte de um clube secreto. Talvez nunca nos tenhamos cruzado na vida real, mas foi decidido à nascença que pertenceríamos a este clube restrito.
Um filme nada mais é do que uns metros de película, do que uns gigabytes de informação digital. Um livro nada mais é que um monte de folhas com letras impressas. Mas nestes filmes e livros está contido algo mais. Algo que não se pode pesar numa balança, nem medir pelo espaço que ocupa num disco rígido. Dentro destes filmes e livros está contido o grande segredo da razão humana.
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.”
Sonharemos os sonhos de Fernando Pessoa, sonharemos o sonho de Leonor Areal e acima de tudo, poderemos sonhar os nossos próprios sonhos, desde que o cinema e a literatura sejam livres para sonhar também.
Richard Laurent
Nasceu em Santa Mónica, Califórnia. Formou-se pela USC School of Cinematic Arts (Los Angels-EUA), mestre em antropologia (Culturas Visuais) pela NOVA FCSH (Lisboa – Portugal), actualmente vive em Lisboa.
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Onde está o Pessoa? (2023), 63'
de Leonor Areal
Em exibição no Cinema City Alvalade e Casa do Cinema de Coimbra