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Silêncio estreou na Sala Estúdio do Teatro Nacional D. Maria II dia 29 de Setembro. Esta peça resulta de vários encontros entre os dois artistas desde 2018, e conta com o apoio da iniciativa Temporada Cruzada Portugal-França. É escrita e encenada por Guilherme Gomes (que também actua) e Cédric Orain. O elenco é composto por João Lagarto, Marcello Urgeghe, Tânia Alves e Teresa Coutinho. Estivemos à conversa com Guilherme Gomes de modo a entender o processo de criação desta peça, as suas nuances e subtilezas, assim como o que representa.
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© Filipe Ferreira
Rodrigo Fonseca: O silêncio pode ser algo apaziguador mas também profundamente perturbador. A ausência de uma resposta é esse lado perturbador? Ou também existe no desejo de silêncio esse lado? Esse fetiche pela penumbra, pelo escuro…
Guilherme Gomes: A ausência de resposta tem várias dimensões. Há uma que elogio bastante e que procuro muitas vezes praticar na minha vida: uma espécie de elogio ao enigma. Nas alturas em que nos damos conta de que há coisas sobre as quais não temos reposta. Por vezes a resposta é precisamente o silêncio, ou a passagem do tempo… Por exemplo: se olhares o pôr do sol ou se estiveres a despedir-te de alguém muito importante, não há palavras. No espectáculo há momentos destes, momentos em que de repente o enigma ou o inominável são o protagonista da cena. Apesar de não serem momentos apaziguadores, de certa forma, transportam consigo uma espécie de tranquilidade. Não são momentos agitados, violentos, nem claramente hostis, são momentos de dúvida e de interrogação — uma espécie de interrogação tranquila. O silêncio associado ao discurso violento está também exposto na peça. Foi algo que fomos explorando à medida que íamos escrevendo sobre o silêncio: criando discurso ou colocando palavras no lugar da sua ausência. Escrever sobre o silêncio é logo à partida traí-lo. Durante a escrita íamos pensando muito sobre o poder das palavras: quem é que pode falar, em que circunstâncias se pode falar, que linguagem usamos… Reflectimos sobre o poder da fala e do silêncio. Por vezes o silêncio não é um gesto, nem qualquer coisa que resulta de uma opressão, mas é muitas vezes um gesto opressor, como por exemplo, não dar reposta a alguém, ou não dialogar com alguém. Dialogar com alguém é reconhecer o outro: só discutes com quem tens vontade de discutir.
© Filipe Ferreira
RF: Nesta peça pretendem abordar estas várias qualidades do silêncio?
GG: Esta peça não tem uma pretensão sociológica, não pretendemos com este espectáculo representar o silêncio no nosso mundo, ou fazer uma espécie dos silêncios sociais que habitamos. Uma coisa é evidente: aquelas cenas tomam forma no nosso mundo. Por outras palavras, reconheces aquelas situações e aquelas personagens. Podias ser tu, ou alguém que tu conheces. Quando eu e o Cédric nos conhecemos começamos logo a trocar ideias sobre teatro, a partilhar experiências que tínhamos ao nível da criação teatral. Fomos ver espectáculos um do outro e reconhecemo-nos mutuamente. O encontro com o outro possibilita conheceres-te a ti próprio. Os encontros com pessoas novas provocam isso mesmo. Uma das coisas que reconhecemos foi que o silêncio tinha muita importância para nós enquanto criadores. Se o silêncio tem esta importância, vamos começar por pensar sobre isto, e à medida que fomos avançado, elencávamos uma série de ideias construindo uma espécie de antologia de cenas onde o silêncio tem a qualidade de provocar, de conflito. O silêncio é o berço das cenas, mas não é a sua exposição. Silêncio não é sobre silêncio, surge talvez do silêncio, ou vai resultar no silêncio. Sinto muitas vezes que o grande protagonista do espectáculo é o oposto do silêncio… O ruído talvez. O ruído porque tem em si um discurso criado sobre o silêncio. Cenicamente, colocámos diferentes camadas de separação entre o espectador e o espectáculo, uma das camadas é por exemplo a língua. O espectáculo é falado em português e em francês. O ruído acaba por ser o grande protagonista e chama-se Silêncio para que possamos olhar para a peça como um convite à procura do silêncio. O título cria no espectador o desejo de silêncio, e quando vê o espectáculo, está já com essa expectativa — existem personagens desta peça que vão ao encontro dessa expectativa.
© Filipe Ferreira
RF: Podes falar um pouco de como foi o processo da escrita do texto em conjunto com o Cédric Orain?
GG: Chegámos a um ponto em que duas pessoas podem viver a milhares de quilómetros de distância e ainda assim escrever uma peça juntos. O Cédric estava em Paris e eu estava em Lisboa ou Viseu — divido-me entre as duas cidades. Fomos trocando correspondência por e-mail, trocando ideias. Liamos as coisas um do outro e respondíamos de seguida, este foi o modos operandi — que na verdade, para mim, não é suficiente para escrever uma peça. As residências artísticas foram fundamentais para o processo da escrita. Deram-se em Viseu — onde tenho o projecto Creta — em Lisboa, em Montemor-o-Novo no Espaço do Tempo, e em Paris. Foram residências de escrita, de abordagem ao texto. O encontro foi e é fundamental para a criação — costumo dizer que não é por acaso que um grupo de teatro se chama companhia! O teatro faz-se em companhia, na companhia uns dos outros. O processo foi muito intuitivo, não foi estudado à partida. Fomos descobrindo à medida que escrevíamos. Houve uma coisa que achei muito curiosa: eu escrevo em português e o Cédric escreve em francês. Às vezes conversamos em inglês, para nos entendermos, o meu francês não é bom e o português do Cédric é inexistente (risos). Os textos têm que ser lidos na língua que vão ser falados, e por isso tivemos mais do que uma tradutora connosco a fazer o trabalho de tradução. Durante esse trabalho, fui percebendo muita coisa sobre escrita! De repente, lês qualquer coisa tua traduzida e dizes: isto não foi o que eu escrevi! E não é que a tradução seja má, o facto é que a tua ideia não era muito clara à partida. Começas a perceber pequenas subtilezas na própria escrita, que neste caso, é a tradução de uma língua para uma outra. O teatro é um exercício de tradução, traduz-se da página para o espaço. Estes problemas de tradução deram-me uma outra perspectiva sobre a escrita e a dramaturgia.
© Filipe Ferreira
RF: Podes falar-nos um pouco das qualidades e do tipo de texto que surgiu do processo que acabaste de descrever?
GG: Eu e Cédric escrevemos de maneira muito diferente. Ambos temos já um percurso na escrita de dramaturgia; o Cédric tem um percurso com a companhia para a qual escreve faz já muito tempo, e eu tenho escrito desde 2018, ano em que escrevi Que boa ideia, virmos para as montanhas — a minha primeira peça de teatro. A partir daí comecei a escrever todos os espectáculos do Teatro da Cidade ou a fazer trabalho dramatúrgico. As criações do Teatro da Cidade são, na sua maioria, criações colectivas. Todos nós escrevemos e provocamo-nos uns aos outros para escrever. Muitas vezes o meu trabalho é costurar o texto: colar, coser, encontrar um fio condutor. A escrita do Cédric é muito pragmática, ao passo que a minha é tendencialmente poética. No espectáculo não se sente que uma parte do texto é minha ou do Cédric — até porque não somos propriamente muito conhecidos. Silêncio não é meu nem do Cédric, é um espectáculo de alguém entre nós, do nosso encontro, e da companhia de toda a equipa artística.
© Filipe Ferreira
RF: Quais são as próximas datas da digressão internacional do Silêncio?
GG: A digressão é relativamente curta. De 14 a 24 de Outubro estamos em Paris; em Fevereiro do próximo ano fazemos duas apresentações em Valenciennes; a meio de Março apresentamos em Coimbra, e no início de Abril em Amiens (datas a anunciar).
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Rodrigo Fonseca
Licenciado em História da Arte pela FCSH/UNL, e pós-Graduado em Artes Cénicas pela mesma faculdade. Viajou pela Europa central, pelos Balcãs, América do Sul, e viveu em Itália, Grécia e Brasil. O seu trabalho artístico desenvolve-se na música e no corpo. Organiza e programa os festivais culturais Dia Aberto às Artes (Mafra) e Sintra Con-Cê (Sintra) e é membro fundador da associação cultural A3 - Apertum Ars e da editora CusCus Discus.