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Há o envolvimento no compromisso das causas subscritas. Há a irrequietude no questionamento da mente crítica. Há a avidez na energia de novas descobertas. Há a irreverência na inovação do olhar curioso. Há a marginalidade na postura das diferenças provocadoras. Há o caos na revolta das convicções rebeldes. Há o frenetismo na demência das mentes atormentadas. Há o traumatismo nas experiências pessoais experimentadas. A genuína criação artística usa tudo, e mais ainda. A genuína criação artística nunca é estática na sua prática. Nem previsível na sua obra. Não consegue ser indiferente ao passado, que desconstrói. Não consegue ser passiva perante o presente, que confronta. E não consegue deixar de olhar para o futuro, que desvenda. Tão genuína quanto intensamente pessoal e emocional. Tão genuína quanto imune à sua corrupção pela aceitação maciça ou pela satisfação dos interesses.
O mundo vê-se privado de personalidades geniais. Geniais, por essa e nessa autenticidade. David Bowie, Lou Reed, por exemplo, agora recentemente. Mas temos, felizmente, alguns ainda. Aos quase 74 anos de idade, activo como sempre e longe de acomodado, em permanente diálogo consigo e com o mundo, o permanentemente jovem, irrequieto, desafiante, insatisfeito, imprevisível – e quantos mais adjectivos para descrever a sua postura pessoal e artística – John Cale: um ícone. Poderíamos perguntar-lhe o que lhe falta fazer e viver ainda? Provavelmente, talvez nos respondesse que lhe falta tudo ainda – John Cale não passa um dia sem compor, sem criar, sem explorar, e, dizem os rumores, está em estúdio novamente, de onde não passa muito tempo afastado, com um conjunto de (apenas!) vinte e sete novas faixas.
Uma carreira de quase meio século como a de John Cale não se resume ou emoldura num par de páginas ou de músicas. Ainda assim, poder-se-á afirmar, sem incorrermos em lapsos ou lacunas demasiado significativos, que a mais recente dupla edição “M: Fans / Music For A New Society” do lendário compositor, músico e produtor galês, lançada em 22 de Janeiro último pela Domino Records – os álbuns são lançados individualmente na sua edição em vinil e como álbum duplo na edição em CD –, é uma ilustração tão nuclear quanto o possível (se possível) da sua vida pessoal, tão emocionante mas sofrida, da sua personalidade artística, tão profunda e relevante, e da sua carreira musical, tão extensa e multifacetada.
O fenomenal “M: Fans” é filho de “Music For A New Society”, uma relíquia quase impossível de encontrar disponível no mercado, lançada em 1982 em vinil e alvo de uma reedição em CD no início da década de 1990 rapidamente descontinuada, é um dos anteriores quinze álbuns a solo de John Cale, o seu oitavo. Um dos mais emblemáticos junto dos seus seguidores, considerado em alguns círculos como um dos “grandes álbuns perdidos” do universo musical rock, ainda que não tenha conhecido sucesso comercial (se é que Cale alguma vez efectivamente o encontrou). Mas os acasos e os ciclos do tempo fazem o seu trabalho, se permitido tempo a esse tempo. A dupla edição agora lançada contém, em “M: Fans”, uma integral reinvenção do original em novos e surpreendentes arranjos musicais e, em “Music For A New Society”, as versões do original com uma nova, e também significativamente evolutiva, mistura e masterização.
Que melhor forma para radiografarmos tantas transformações e desafios artísticos que Cale continuamente busca em caminhos que não tenha ainda pisado, que não nas reinterpretações de um mesmo álbum separadas por 30 anos de ininterrupto desassossego criativo? Que melhor forma de percorrermos a linha condutora de Cale em permanente evolução, avaliação, invenção, uma sua necessidade vital pessoal e artística?
O que para muitos não é sequer atingível ou importante, para Cale não é suficiente. Às mãos de tantos músicos, talvez nem artistas, demitidos por si mesmos de qualquer integridade artística, mais interessados no volume da conta bancária ou no impacto da visibilidade publicitária, alguns em tentativas desesperadas de revitalização de carreiras moribundas, ou sob o comando de algumas editoras, conduzidas pelos mesmos vãos interesses, as reedições dos álbuns passados não passam de pálidas cópias tão fiéis aos respectivos originais quanto o possível, recuperadas de prateleiras empoeiradas, ou, quando pior, falaciosas remixes questionavelmente produzidas “a martelo” à luz de artificiais fundamentos, ambos os casos vazios de qualquer mérito criativo e cinicamente encapados numa encadernação exagerada.
Não contente, como um real artista, John Cale marca a diferença. Marca sempre. Em “M: Fans”, Cale não se limita a confiar nos firmados créditos adquiridos de um álbum anterior. Ele descasca-o até à medula, até que apenas resta, de facto, o seu ADN. E, partindo desse ADN, oferece uma nova abordagem ao mesmo álbum, absolutamente contemporânea, como se, na verdade, quase um novo trabalho seja. Quem sabe quantas conversas consigo mesmo, com o seu “eu” de há trinta anos, terá esta parceria, tão unipessoal quão pluripessoal, gerado? “M: Fans” nasce em “Music For A New Society”, uma referência que não foi diluída pelo intervalo destes trinta anos. Mas, de forma brilhante, sem revivalismos nostálgicos do passado, afasta-se pronunciadamente da sua sonoridade original, reinventa-se e actualiza-se intencionalmente em acompanhamento dos tempos actuais. Ainda que preservando a sua essência genética, “M: Fans” adquire a sua personalidade independente. Duas abordagens distintas ao mesmo álbum – “M: Fans” e “Music For A New Society”, como se de autoria de dois artistas surpreendentemente distintos – Cale, o actual, distinto do Cale de há trinta anos, ambos excepcionais porque, na verdade, são apenas um.
Essa linha condutora, que une o passado e o presente de Cale ao mesmo tempo que os distingue, está incontornavelmente gravada em “M: Fans / Music For A New Society”. Em canal aberto online, estão ainda apenas disponíveis duas faixas de “M: Fans”, mas o álbum está disponível sem custos em plataformas como o Spotify. Além das duas faixas que aqui apresentamos, “Close Watch” e ”If You Were Still Around (Choir Reprise)”, recomendamos vivamente a visita às realmente extraordinárias faixas “Sanctus (Sanities Mix)”, “Chinese Envoy” e “Changes Made”.
Em 1982, Cale está em farrapos. Drogas em excesso desde há muito – um hábito gerado ainda enquanto criança em Gales, quando o ópio era o tratamento para uma bronquite crónica, e em Nova Iorque, potenciado pelo ambiente no mundo paralelo da Factory de Warhol –, álcool em abundância, um divórcio, uma série de outras relações pessoais em ruptura, artisticamente à deriva, sem dinheiro para sustentar a sua banda, questionando os seus trabalhos anteriores e sem saber como criar os seguintes. À beira do colapso, Cale está só, revoltado e desesperado. Angustiado no presente e perdido num futuro para o qual não encontrava rumo. “Music For A New Society”, em 1982, é um álbum esvaziado de luz e de esperança.
Afastado da sua banda numa série de concertos a solo, Michael Zilkha, proprietário da ZE Records, propõe-lhe um novo álbum neste registo. Na amargura em que se encontra, o desafio é aceite. Cale encontra nele uma desesperada fuga que o permita sobreviver ao buraco negro e profundo em que se sente enterrado. Em paranoia e obsessão, disposto a tudo, não sabe sequer para onde o conduzirá. Uma fuga para a frente, movido pela necessidade imperiosa de salvação, de escapar ao presente. Esperando conseguir libertar-se desse presente precisamente por fazer algo com ele onde possa encontrar algum valor e sentido. Mas não interessa, desde que fuja.
Nos poemas do americano Sam Shepard (também actor, realizador e argumentista – Paris, Texas; Zabriskie Point, entre outros), Cale encontra personagens e histórias trágicas de violência, de vergonha, de dúvidas, de arrependimentos, de derrotas, de descrença, que traz para as letras do álbum, o reflexo niilístico da sua tormenta. Em renúncia da música predominante, até mesmo da dos seus álbuns anteriores, e da de vários outros artistas para quem foi uma inspiração, Cale aposta tudo ou nada. A artificialidade do trabalho de estúdio excessivo em voga afoga a verdade emocional dos álbuns. Cale quer algo novo. Assumindo um alto risco, sem corda de vida, Cale entra nos estúdios Sky Line em Nova Iorque sem uma única nota escrita, e impõem a si mesmo dez dias de improvisação solitária, comprometido a gravar apenas quando se sinta pronto para deitar para fora de uma só vez tudo o que traz dentro, e, seja o que for, é o que será. Gravando sozinho cada instrumento, Cale submete-se à pressão de ter que criar música para cada letra na corda bamba do momento. Num estado último de agonia, “Music For a New Society” é, nas palavras de Cale, a fealdade do mundo derramada na fealdade da música e das letras. Um processo descrito pelo próprio como autêntica tortura.
O resultado é tão devastador quão imprevisível. Cale verte toda a sua intimidade para “Music For a New Society”. Em melodias e letras erráticas entre extremos, que tanto são frágeis e comovedoras, como dramáticas e angustiantes, como introspectivas e melancólicas, Cale, em solidão, acaba por exorcizar um dos seus mais difíceis momentos pessoais e artísticos. Para sua surpresa, “Music For A New Society” revela-se, afinal, a terapia que o arranca dos escombros – o turbilhão emocional produz uma das maiores e mais poderosas obras da sua carreira. Orgulhoso dela, mas à qual, resgatado do buraco que cobre e sela, não regressa durante décadas.
Um salto no tempo daquela linha condutora traz-nos para 2014 e 2015, e faz Cale regressar a 1982, e aos anos anteriores. Por um lado, mantém em cena “Life Along The Borderline” o seu tributo a Nico, a co-vocalista dos seus The Velvet Underground, uma performance experimental áudio-visual com a duração de seis horas no Whitney Museum of Art inspirada no filme “Empire” de Andy Warhol, e outras iniciativas que o transportam de regresso ao final da década de 1960. Por outro lado, vários promotores na Europa sustentam o conceito dos seus festivais actuais na reprodução integral e fiel dos álbuns mais históricos, e Cale é presença habitual com “Fear” (1974) ou “Paris 1919” (1973). As faixas “Taking Your Life In Your Hands” e “Close Watch” de “Music For a New Society” são merecedoras de visitas esporádicas e abrem o apetite dos promotores. Cale vê-se confrontado com pedidos múltiplos de “Music For a New Society” na íntegra – o regresso ao passado e o reviver dos seus demónios que renunciou quando fechou a porta dos Sky Line trinta anos atrás. Contudo, como não poderia deixar de ser com Cale, o elemento surpresa não anda longe e, na verdade, ideias de reeditar o álbum e lançar em versão digital já vagueiam a sua mente. Apenas não vislumbra ainda como o fazer.
Cale abraça o projecto novamente: é tempo de enfrentar os demónios passados, expurgar o desespero antigo e reescrever a história. Mas entende que a sonoridade de há trinta anos não cabe numa apresentação ao vivo: a força e o poder do original são imensos para Cale, e não quer abdicar deles; mas o original transborda do desespero de 1982, ao qual Cale não pretende regressar, e tão-pouco pretende que as pessoas se limitem a senti-lo como a única emoção que o álbum ofereça – como pode Cale limitar-se a fazer o esperado? Impondo também a condição de colocar de lado algumas das faixas que piores memórias lhe trazem, Cale agarra-se às bobinas antigas e redescobre-as. Ouvir novamente todas aquelas faixas e reviver à distância as histórias da sua vida, e as histórias dos personagens que habitam “Music For A New Society”, o álbum que renegou durante décadas, foi, segundo Cale, como abrir feridas profundas e antigas. A rolar na sua velocidade vertiginosa de criatividade e reinvenção, Cale e a sua banda recriam a pegada sonora original, até mesmo em aspectos que agora sentem inacabados, em arranjos inspirados pelo seu fascínio pela música electrónica, e ampliam as melodias para novos territórios actualizados e contemporâneos. No vasculhar das bobinas, surgem até surpresas como “Back To The End”, uma faixa de que já nem memória tem, e outras descobertas como os takes directos das sessões de gravação do original e inéditos de “Chinese Envoy” e “Thoughtless Kind”, ou a nunca antes editada “Library Of Force” (relativamente, já que consta sob o título “In The Library Of Force” da edição de 1993 rapidamente interrompida), incluídas nas edições de 2016, como mais uma relação entre o presente e passado. Novamente caminhando em frente, mas desta feita sem fugas, Cale vê-se surpreendido com o quão bem lhe soam as novas composições e com quanto sentido fazem para si. Em paz com a sua luta, que sempre foi pessoal e interior, e em ligação directa com as dores do passado proscrito durante décadas, nas quais consegue até encontrar hoje alguma beleza poética, surge a aceitação tranquila de que é impossível mudar certas coisas; o exorcismo está agora completo – a dor está lá, mas a convivência com ela é menos desesperada.
Na verdade, o final de 2014 já coloca Cale em contacto com as perdas e arrependimentos do final da década de 1970 e início de 1980. O primeiro aniversário da morte de Lou Reed leva Cale a reviver a história dos dois, tão intensa e vibrante quanto envenenada e devastadora. Apesar de toda a mágoa, a perda do companheiro é demasiado grande, e traz novas perspectivas amadurecidas a Cale sobre aquele período. O círculo começa a fechar-se. Cale olha para dentro, olha para Reed, e lança uma nova versão de “If You Were Still Around”, que integra a tracklist de “M: Fans”. A emoção contida na letra corresponde às emoções de Cale para com Reed e, repentinamente, a reedição desta faixa, com todo um arranjo instrumental diferente e actual, faz todo o sentido para Cale – a forma que encontra de homenagear o amigo e companheiro e de lidar com a sua morte. A transformação musical desta faixa e o encarar de frente a história entre os dois geniais artistas acabam por revelar o caminho num chão fértil no qual, segundo Cale, “da tristeza semeada nasce a força do fogo”. “If You Were Still Around” é o gatilho provocador para, não só aceitar as propostas dos festivais europeus, mas ir além dessa proposta quase meramente reprodutiva. “M: Fans” toma corpo, aos 73 anos, Cale não consegue ficar quieto.
Já não está mergulhado no abismo solitário de 1980, transcrito no realismo doloroso dos personagens que encorpam as letras e no minimalismo árido, atonal e dissonante dos arranjos originais, ainda muito pegados à sua formação em música clássica e às suas explorações do modernismo clássico. Esse elegante minimalismo clássico e expressivo, que toma forma nas baladas trágicas e melancólicas de piano, gaitas de foles, órgãos eclesiásticos, harpas e instrumentos de cordas diversos e inúmeros outros instrumentos acústicos, abre enormes espaços vazios para a sua proeminente evolução vocal desoladora e aterrorizante, que ressoa diretamente das e nas suas, e nas nossas, mais profundas entranhas íntimas.
Deslocadas agora para o extremo musical radicalmente oposto e enquadradas na era electrónica actual de que é fã confesso, as instrumentações originais, agora electrizantes, corpulentas, espinhosas e sombrias, de um peso esmagador, estão longe de ser estafadas recauchutagens sonoras. Perfeitamente sintonizadas nos tempos actuais, e até mesmo alargando-os à maneira de Cale para territórios do electro-pop, noise e post-punk, largamente sustentadas em inúmeras texturas de produção electrónica instrumental e vocal de efeitos, loops, samples e sonoridades digitais, teclados sintetizados, guitarras eléctricas rock plenas de efeitos, baixos gravíssimos e pesados ritmos de bateria e percussão, preenchem todos os espaços vazios de outrora, sem deixar de respeitar, manter intacta, e elevar a potência emocional das letras, que fotografam ainda os recantos mais escuros da vida de Cale. E a sua voz, essa, essa mantém-se incomparavelmente vigorosa, enigmática, abrasiva e obscura.
“M. Fans” nasce em “Music For a New Society”, mas vai musicalmente para tão longe deste que, sem prejuízo das inúmeras ligações que existem entre ambos, parece, por vezes, que têm em comum apenas o título das faixas. Melhor ainda, “M. Fans” é tão contemporâneo quão relevante e quão acessível. Todo o Cale actual consegue a façanha de se manter, de facto, notavelmente impressionante.
Comecemos por “Changes Made”. Cale anuncia “There gonna be some changes” e essa declaração é tão válida em 1982 como em 2016, e em 2016 em “M. Fans” ou na versão remisturada de “Music For A New Society”. Em 2016, quando Cale está no séc XXI seduzido pela produção electrónica, a arrebatadora “Changes Made” surge estridente, esmurrando-nos na cara como um regresso ao punk-rock. Sim, sentimos a produção electrónica subjacente que torna essa sonoridade actual, mas as diferenças entre a sua atmosfera musical e a do resto do álbum são evidentes. Estaremos a ouvir Joy Division nos tempos de hoje? Curiosamente, no sentido inverso, a versão remisturada de 2016, também excepcional, e os seus arranjos de banda punk-rock, mais musicais e menos ásperos e pesados face à versão de “M.Fans”, assinalam igualmente uma identidade distinta da das restantes faixas, mais inclinadas para as vertentes clássicas e acústicas de Cale. Intrigante. Até mesmo porque esta é uma faixa que Cale hesitou em incluir na tracklist original. Em qualquer dos casos, além das diferenças no enquadramento individual de cada álbum, Cale parece usar a faixa como símbolo ou prenúncio das mudanças posteriores a cada um dos álbuns: em 1982, mudanças que nem Cale poderia imaginar, mas por que implorava; em 2016, essa será uma história que teremos que aguardar que Cale conte, ele certamente vai mudar. Tão espantoso é o contraste entre as duas versões de “Sanctus (Sanities)”. Em “M. Fans”, plena de produção electrónica gótica e industrial e da voz de Cale ameaçadoramente distorcida, diríamos irreconhecível face à versão remisturada do original, algo como uma prece eclesiástica autoritária que a voz de Cale sentencia à ruína – tal é a expansão musical de Cale. Nem tudo é negro em “M: Fans”. “Chinese Envoy”, com um arranjo groovy e funky de guitarra, toma uma identidade electro-rock bem mais leve. É interessante e agradável. Mas, ao contrário do que Cale já afirmou, parece-nos que o carisma das letras passa despercebido. Neste caso, o nosso voto cai claramente na versão remisturada, um hino à miserabilidade. É mais difícil de digerir, mas muito mais memorável no seu valor artístico. “If You Were Stll Around” é merecedora de duas versões distintas em “M: Fans”. A primeira mais próxima da original remisturada, um lastimo arrancado a uma intimidade frágil e devastada sobre as linhas de órgãos clericais gélidos e sombrios a que praticamente se resume a instrumentação, é transformada na segunda, mais graciosa e optimista no tom e no arranjo de teclados sintetizados, guitarra, percussão e um coro – as diferenças entre um cântico fúnebre desolado e a celebração de uma ausência saudada em paz. Cale conta com a participação vocal de Amber Coffman, dos Dirty Projectors, em “Close Watch” para “M: Fans”. É fácil imaginar Cale afundado numa espiral de depressão e de delírio, sozinho, ao som do piano e das gaitas de foles da balada grave e comovente original. Em “M:Fans”, ainda que mantendo a gravidade do conteúdo lírico através do desempenho vocal de Cale, toma o ambiente mais aligeirado de um electro-pop em downtempo.
Em quase todas as faixas, é-nos difícil escolher entre “M: Fans” e “Music For A New Society / Remastered”. Não é, aliás, suposto termos que o fazer – são dois álbuns absolutamente distintos na sua identidade musical, que reflectem dois momentos pessoais e artísticos absolutamente distintos de Cale – um não substitui o outro. São, sim, dois dos inúmeros instantâneos possíveis sobre os trinta anos que os separam de 1982, numa extensíssima carreira de constantes reinvenções.
Uma carreira cuja semente é plantada em Gales aos sete anos de idade. Uma professora de escola como mãe, que o empurra a apenas falar dialecto galês até aos sete anos de idade, fragilizando a sua integração com outras crianças, e um mineiro que apenas fala inglês como pai, com quem, portanto, não comunica oralmente até essa idade. Vítima de abusos por parte do professor de órgão da igreja local. Recluso na sua segurança e na sua identidade pessoais deficientes, no ambiente agressor de uma vila mineira e industrial galesa dos anos 1950 estéril de criatividade, é na formação em música clássica que Cale cedo encontra um abrigo potenciador da sua confiança e um veículo substituto da linguagem. Dotado em guitarra, baixo, piano, órgão e uma série de outros instrumentos desde os sete anos de idade, ouvinte fiel do programa New Music da BBC dedicado a compositores contemporâneos experimentalistas, Cale compõe a sua primeira peça musical “Tocatta in the Style of Khachaturian” ainda antes de adolescente. A sua professora consegue que se apresente no mesmo programa de rádio. Momento marcante: Cale toma consciência e decide que a música será parte fundamental do resto da sua vida. Na orquestra da escola, ocupa a posição de guitarrista, a única disponível. Aos treze anos, integra a Welsh Youth Orchestra. No entanto, os seus maiores interesses dirigem-se para as fracturantes explorações modernistas e avant-garde de incontornáveis estudiosos e compositores americanos da música clássica moderna e experimental da segunda metade do séc. XX, como John Cage (o inovador e renomeado compositor, autor da famosa peça e performance 4’33’’ - https://www.youtube.com/watch?v=gN2zcLBr_VM –, passível de representação por um músico apenas ou por uma inteira orquestra, na qual os músicos não produzem qualquer som e nada mais fazem além de alguns movimentos que fariam caso estivessem efectivamente a tocar, muitas vezes equivocadamente assumida como uma evocação do silêncio quando, na verdade, evoca os sons e os ruídos ambientes do palco e da plateia, fazendo com que cada performance seja individual e única em si mesma), as composições minimalistas e atonais de La Monte Thornton Young e o seu colectivo nova-iorquino Theater Of Eternal Music, ou as improvisações e as manipulações compositivas de Terry Riley sustentadas em loops e outros efeitos. Enquanto um dinâmico estudante universitário de música em Londres no início da década de 1960, Cale toma diversas iniciativas cuja intenção velada é estabelecer-se em Nova Iorque: inicia e mantém correspondência com John Cage e Aaron Copland, apresenta-se em concertos e performances de autoria dos seus compositores de referência, organiza palestras e conferência sobre música contemporânea convidando personalidades relevantes da área, promove a primeira exibição em Londres do Concert for Piano and Orchestra (uma outra das emblemáticas composições de John Cage, que explora as possibilidades fortuitas e acidentais de um desempenho musical incorporado na imperfeição do acaso), e torna-se a âncora londrina do movimento Fluxus, a conhecida comunidade internacional de artistas gerada nessa década por George Maciunas, um dos pioneiros e visionários da dinâmica artística do Soho nova-iorquino, cujos integrantes – performers, artistas plásticos, músicos, designers, arquitectos, escritores –, inspirados pelos conceitos, atitudes e expressões dadaístas anti-comerciais e anti-art dos readymades de Duchamp e pelos princípios e ideais de criação artística praticada sem definição prévia do seu resultado específico de John Cage, defendem o processo criativo da obra como o objectivo em si mesmo elevado acima do seu produto final, da própria obra. No mesmo período, Cale é também atraído por uma franja musical do mesmo movimento Fluxus cujas sonoridades estabelecerão dez anos mais tarde o conceito do punk-rock. Em 1963, com o apoio de Aaron Copland, Leonard Bernstein e John Cage, Cale muda-se para Nova Iorque, onde prossegue os seus estudos de música mas, acima de tudo, penetra na comunidade avant-garde: é um dos onze performers convidados por John Cage para uma apresentação da peça “Vexations”, uma composição para piano de autoria de Eric Satie repetida oitocentas e quarenta vezes perfazendo a duração de dezoito horas e quarenta minutos e, tão ou mais marcante no seu percurso, integra o colectivo de La Monte Young. No final de 1964, Cale conhece Lou Reed, na altura envolvido na banda rock The Primitives a que Cale se junta como guitarrista, ainda que o projecto não tenha sido consequente. Morando juntos no excitante Lower East Side dos anos 1960, os dois geniais artistas partilham ideias e conceitos musicais quanto à fusão das sonoridades rock e avant-garde. Juntam-se o guitarrista Sterling Morrison, amigo de Reed e de La Monte Young, e o baterista Angus MacLise, vizinho de prédio. Adoptando o nome The Warlocks e, posteriormente, The Falling Spikes, o apartamento onde apenas têm uns colchões espalhados, onde a água quente e o aquecimento são meras ilusões, e onde o proprietário recebe a renda de arma empunhada, torna-se viveiro da dinâmica livre e criativa dos quatro artistas (Cale grava os ensaios das primeiras composições, publicadas anos mais tarde, integrados na edição Peel Slowly And See de 1995). The Velvet Underground surge, por fim, devido ao título do livro de autoria do jornalista Michael Leigh que MacLise encontra por acaso e agrada aos quatro, não só no nome em si mesmo, mas também no paralelismo que a banda encontra entre o seu conteúdo relacionado com comportamentos sexuais bizarros e extravagantes e a temática da letra de “Venus in Furs”, por mera coincidência acabada de ser composta. No final de 1965, o primeiro concerto da banda, ainda como opening-act, dita a saída repentina de MacLise, invocando a corrupção da verdade artística da banda pelo artist fee e pelos horários condicionados desse concerto. Surge o baterista Mo Tucker, inicialmente apenas comprometido para esse concerto, mas que acaba por permanecer na formação. Na mesma altura, uma curta residência no Cafe Bizarre de Greenwich Village desperta a atenção de Warhol, que, por acaso, assiste a uma das apresentações do quarteto. O convite para uma visita à Factory é deixado. No primeiro encontro, o negócio é firmado: ambientes inspiradores, instrumentos e equipamentos, contratos para concertos e gravações, em troca de uma percentagem (substancial, por sinal) dos rendimentos que a banda viesse a obter; no segundo dia, a primeira surpresa: Warhol quer Nico como vocalista da banda. Nos três anos seguintes, entre inúmeras experiências visuais e sonoras no ambiente da Factory, surgem os dois álbuns – “The Velvet Undergound and Nico” (1967) e “White Light / White Heat” (1968) – em que Cale e Reed colaboram sob a formação dos The Velvet Underground; Cale está encarregue da viola acústica, baixo, teclados de piano e de órgãos, e ocasionais backing vocals, sendo evidente a sua influência nas vertentes mais experimentais de várias das faixas mais emblemáticas dos dois álbuns. A formação original implode, destruída desde o seu interior por vários gatilhos convergentes para esse desfecho. Após os dois primeiros álbuns, o compromisso estabelecido entre os quatro membros – The Velvet Underground é um conjunto de artistas em que os créditos da autoria da obra pertencem igualitariamente a cada um – não é cumprido por eles mesmos, ou por Reed em particular. Ainda que a autoria das letras e da estrutura melódica nasça do génio de Reed, os brilhantes arranjos musicais de bateria, de guitarra, de baixo ou de teclados são criados, aprofundados e explorados desde esse ponto de partida por cada um dos músicos respectivos como um efectivo colectivo. Mas Reed não doma o ego face a Cale, o outro protagonista da banda, e face aos outros companheiros, movido por questões de créditos autorais que reclama para si mesmo em exclusividade. Ainda que gentil na relação pessoal, o mesmo ego quer controlo total no campo profissional. Surgem efectivas clivagens entre Reed e Cale quanto ao rumo artístico que a banda deve tomar. Sob as influências do seu percurso anterior, Cale quer experimentar ideias tão radicais quanto o possível em torno da música clássica moderna e avant-garde, misturadas com o rock, algo que vá ao encontro das excentricidades do art-rock; Reed pretende uma sonoridade rock e punk, o rock de garagem, que, ainda que afiada e relevante como tão bem sabia fazer, seja acessível. Cale, praticamente expulso num motim com o qual Morrison e Tucker são complacentes, abandona a banda em 1968 e os álbuns seguintes, inquestionavelmente e merecidamente célebres pelo rock e pelas letras de Reed, perdem a vanguarda sonora de Cale. A frenética e alucinada vivência na Factory certamente não ajudou a manter a cabeça limpa e arrumada para tomar as decisões mais ponderadas. Imaginar o que, juntos, Cale e Reed teriam criado é um daqueles casos “E se?...”, para sempre órfãos de resposta.
Perante a ruptura inevitável, caminhos separados. Reed dá continuidade aos The Velvet Underground em formações com algumas sucessivas adaptações, e segue depois a solo, sempre no caminho estilístico do rock que lhe é sobejamente conhecido. “Berlin” será um dos seus pontos mais altos e aventureiros. O ímpeto explorador e experimentalista de Cale sempre o leva a tomar riscos ao longo de toda a carreira, alterando sistematicamente as direcções sonoras. A carreira de Cale a solo não tem a mesma visibilidade da de Reed, talvez. Mas nem por isso é menos genial, e nem por isso o nome de Cale está afastado de alguns dos principais nomes e momentos da história do rock. Após a separação, dedica-se à produção e instrumentação de álbuns de outros artistas. Artistas punk de ponta como Patti Smith, Nico, Jonathan Richman e Iggy Pop e os seus The Stooges, não são nomes quaisquer. Juntam-se-lhe os seus quinze álbuns a solo anteriores a “M: Fans”, alguns outros em colaborações com Brian Eno, com Terry Ryley, ou, (anos mais tarde e com as feridas ainda abertas) novamente com Lou Reed, e várias bandas sonoras para filmes, nas quais regressa ao registo clássico.
A permanente coragem e curiosidade de Cale fazem renascer agora “Music For a New Society” e nascer “M: Fans” – exemplos admiráveis de que Cale não repete trabalho, mas recria-o. Trabalhos que coexistem lado-a-lado, e não um em oposição ao outro, para satisfação dos fãs do Cale mais acústico e clássico, e dos fãs do Cale mais electrónico deste fantástico “M: Fans”. É esta sublime sociedade entre o passado e o presente que, aparentemente, num processo libertador das suas masmorras emocionais, terá trazido a Cale alguma paz que, esperamos, nos continue a oferecer o seu talento por muitos anos vindouros. Se a paz é completa, é assunto de Cale. Arriscamo-nos a dizer que nunca é. Será, provavelmente, a paz possível.
Tracklist :
M:Fans
1. Prelude
2. If You Were Still Around
3. Taking Your Life In Your Hands
4. Thoughtless Kind
5. Sanctus (Sanities Mix)
6. Broken Bird
7. Chinese Envoy
8. Changes Made
9. Library Of Force ft. Man In The Book excerpt
10. Close Watch
11. If You Were Still Around (Choir Reprise)
12. Back To The End
Music For a New Society (remastered):
1. Taking Your Life In Your Hands
2. Thoughtless Kind
3. Sanctus (Sanities)
4. If You Were Still Around
5. Close Watch
6. Broken Bird
7. Chinese Envoy
8. Changes Made
9. Damn Life
10. Risé, Sam And Rimsky Korsakov
11. Library Of Force (Unreleased)
12. Chinese Envoy (Outtakes)
13. Thoughtless kind (Outtakes)