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© Renato Cruz Santos
O Cinema Insuflável é uma sala de cinema itinerante com 30 lugares, destinada ao público infantil. É um projecto português da associação cultural Figura Nacional, criado em 2018, e que tem circulado por todo o país e também por alguns sítios além fronteira, fazendo parte da rede Europa Cinemas.
É uma sala de cinema que pode estar todos os dias em sítios diferentes. É um espaço que pretende levar o cinema de qualidade onde não existem ofertas na área, e constituir, muitas vezes, a primeira experiência das crianças com o cinema.
Em junho passado, o Cinema Insuflável ganhou o prémio Acesso Cultura nas vertentes acesso social, físico e intelectual. A Artecapital aproveitou para conversar com Sérgio Marques, autor, coordenador e produtor deste projecto e de vários outros ligados à promoção do cinema, sobre a génese do Cinema Insuflável e a sua missão de “insuflar cinema na cabeça das crianças”.
Por Liz Vahia
LV: Como se deu a génese da ideia de uma sala de cinema itinerante, especialmente dedicada a crianças? Foi uma resposta técnica e programática à falta de espaços de exibição de cinema em muitas zonas de Portugal?
SM: Partiu essencialmente da minha experiência com o cinema ao ar livre e com a construção de sessões que fossem adequadas a cada contexto. Foi assim com o Cinema Fora do Sítio no Porto e no Algarve, com o Fitas na Rua em Lisboa e outros projectos que tinham a intenção de criar encontros entre filmes e públicos. O cinema ao ar livre necessita da noite para acontecer e, por isso, o público infantil muitas vezes falha nestas sessões. Além disso, Portugal é um país muito desigual em termos de oferta cultural. As possibilidades em Lisboa e no Porto são muito diferentes da oferta no resto do país e isto é muito injusto para a população.
A intenção era construir um dispositivo que criasse a ideia de sala de cinema, digna e com excelência técnica, que pudesse oferecer a experiência do escuro durante o dia e que fosse itinerante, de fácil montagem/desmontagem e transporte. No princípio era uma ideia, depois fui fazendo estudos em fábricas de insufláveis, com técnicos de cinema e com um designer. Foi um processo longo.
Já existem muitas formas de ver filmes, inclusive em sala de aula, mas é mais estimulante num cinema, num espaço feito propositadamente para esses momentos. O Cinema Insuflável é mesmo uma sala de cinema, é a sala de cinema das crianças. Muitas vezes somos a primeira sala de cinema onde as crianças vão.
Já sabia que existia um enorme défice de programas de cinema para a infância no país, mas não contava que o Cinema Insuflável tivesse tanta pujança como revelou desde o seu início em 2018. Ainda agora, em 2023, continuamos a circular a partir de pedidos que nos chegam.
Alguns pedidos vêm de autarquias ou entidades que podem assumir os custos associados às sessões de cinema, mas muitos são de escolas, Juntas de Freguesia, Associações de Pais, que não conseguem suportar os custos. Nestes casos, fazemos candidaturas ao ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual) para pedir financiamento para responder a estas solicitações. Infelizmente nunca conseguimos apoios suficientes para cumprir todos os pedidos, nós somos uma associação sem fins lucrativos.
© Cultura em Expansão
LV: A missão do projecto é “insuflar cinema na cabeça das crianças”. O que querem dizer com isso?
SM: Em Inglaterra, nos anos 1990, havia uma campanha de promoção da leitura com o lema “blow your mind, read a book”. Acho que o cinema tem o mesmo poder de explodir a mente. De nos fazer pensar em novos assuntos, encontrar outros mundos ou até nos fazer encontrar connosco mesmos (isto parecem frases de livros de auto-ajuda, desculpa), mas é mesmo preciso multiplicar a vida, senão tudo parece pequeno e insuficiente. O Cinema, ou os livros, ou qualquer criação, pode ser muito potente e isso é tão importante como comer ou dormir, acho eu. Sem isso a vida é muito pouco, e toda a gente deveria ter disponível e poder usufruir desse lado da existência. Mas ainda não há um acesso igual para todos, em Portugal não há seguramente.
LV: Parece-te importante promover a “experiência de espectador de cinema” logo desde pequeno (em oposição a ver um filme em casa, por exemplo)?
SM: Não é opor uma experiência à outra. Acho que somos espectadores sempre, em todos os contextos, e é difícil medir os diferentes impactos. Acho que o trabalho é feito mais como uma hipótese. Ou seja, partimos do princípio que nunca sabemos quando acontece o momento em que alguém descobre, a partir do visionamento de um filme, que há muito para descobrir, aprender, crescer e se emocionar. Há uma frase do Serge Daney que diz o que eu quero dizer de uma forma perfeita: “O encontro baseia-se na certeza instantânea de que este filme, que me esperava, sabe algo da minha relação enigmática com o mundo, que eu próprio ignoro e que contém algo como que um segredo por decifrar”.
Gostava que toda a gente descobrisse isto, até porque eu o descobri em criança, numa sala de cinema, e a partir desse momento fiquei com disponibilidade mental para os filmes. Talvez seja a mesma coisa que a descoberta da literatura, houve seguramente um livro (não necessariamente o primeiro) que, depois da sua leitura, me informou que os livros trazem coisas que me podem fazer multiplicar a vida. Esse livro disse-me que posso continuar a procurar noutros livros coisas que nem sabia que precisava de descobrir. Isto faz com que olhe para cada livro como uma possibilidade de descoberta, como uma aventura a viver.
O que acho mesmo muito importante é que possamos ter um olhar mais vasto, que vá mais longe, que esteja mesmo disponível para novas aventuras. E, para isso acontecer, primeiro é preciso que se criem momentos de encontro com os filmes. Há mesmo imensas coisas criadas que são explosivas para a cabeça e é preciso mostrá-las. Criar o momento em que há esse encontro é mais a nossa missão, depois o que pode acontecer a seguir já não é connosco. Mas dou-te um exemplo, em alguns contextos no Cinema Insuflável mostramos uns excertos dos filmes de Chaplin e de Buster Keaton às crianças. Fazemos uma apresentação das personagens, explicamos que o Chaplin é uma personagem pobre, que o Keaton nunca sorri, que lhes acontecem muitas coisas engraçadas, que aquelas imagens têm mais de 100 anos e que naquela altura não havia efeitos especiais, nem computadores. Vemos as reações que as crianças trazem ao ver aquelas imagens e tentamos demonstrar como eram criativos e engenhosos ao fazerem aqueles filmes. Depois dizemos que podem ver os filmes completos em casa, que estão todos no YouTube.
Voltando à questão da experiência do espectador, acho que somos espectadores no cinema, no telemóvel, no sofá da sala, precisamos é de libertar o nosso olhar e ser espectadores de mais coisas do que aquilo que nos chega com muito marketing, muita manipulação. Estamos sempre a ver imagens em movimento, era muito melhor se estas fossem coisas boas, e há tantas a serem produzidas a todo o momento. Também podemos ir crescendo com o que vamos vendo.
Acho mesmo que estar em contacto com bom cinema nos faz exigir mais dos filmes. Sem preconceitos, porque acho que há bom cinema para crianças vindo da Pixar/Disney, da Manga e, também do Irão.
© Cinema Insuflável
LV: O Cinema Insuflável tem um Manifesto que termina dizendo que “Entrar no cinema insuflável é encontrar-se com a alteridade que os filmes trazem”. Hoje é quase subversivo alguém querer “encontrar-se” com o que é diferente, quando parece que a oferta que nos chega é sempre do que já conhecemos ou de opiniões semelhantes à nossa. Achas que a aproximação ao Outro (outras visões, outros espaços, tempos, comportamentos...) é um dos poderes do cinema?
SM: É um dos poderes do Cinema e da Arte em geral. Com o cinema talvez seja mais fácil porque consumimos muitas imagens e o cinema é um produto de fácil acesso, em casa, nos vários canais disponíveis, na internet, e até acho que a pirataria tem tido um papel fundamental nessa acessibilidade (falo da consequência em si, não estou a emitir uma opinião sobre a pirataria). Por exemplo, em Portugal, nos sites piratas é possível ver filmes e séries e há muita diversidade, incluindo cinema clássico e cinema português, e até estão disponíveis filmes de Bollywood. E pelo pouco que conheço do Cinema de Bollywood, este tem a mesma qualidade que o Cinema Americano, ou seja, boa técnica, tem as suas estrelas e filmes assinados por realizadores reconhecidos, porque não vemos também esse cinema? Em Portugal, no século XXI, ninguém consome cinema de Bollywood, só a comunidade imigrante, e isso tem a ver com o poder da máquina do Cinema americano que consegue dominar e seduzir todo o público. Até o Cinema europeu já tem uma estratégia para se impor no mercado, com as cotas nas salas de cinema em toda a Europa. A pirataria tem muito poder neste momento e gostava que se estudasse mais sobre isso, acho que está a mudar hábitos e gostava de saber se está a mudar a disponibilidade do olhar. Surpreende-me saber que alguns jovens assistem a séries completas, cerca de 10 horas seguidas. Será que não estão também a aprender com esse visionamento? A ser público mais exigente? Ou só estão a repetir um formato igual vezes sem conta?
Uma das coisas que nós temos apreendido com as crianças, desde que lançámos o projecto em 2018, é que as crianças são exigentes com os filmes e com as histórias. Podemos fazer uma escolha muito cuidada, uma seleção de curtas que achamos perfeita para um determinado grupo de crianças, mas o que lhes vai tocar é inesperado. Pode ser porque naquele dia, naquela hora, estavam mais disponíveis para um determinado assunto, ou porque estavam mais sérios ou mais leves, porque o espaço estava mais confortável, por terem um amigo que experienciou algo como no filme... Programar cinema é como uma experiência científica, partimos de uma hipótese, depois ao testar descobrimos que existem inúmeros factores que intervém na acção, a realidade. Se a hipótese não ficou provada, tentaremos outra.
© Cinema Insuflável
LV: O Cinema Insuflável já viajou para fora de Portugal. Como é que aconteceu (e acontece) a “internacionalização” do projeto?
SM: Quando lançámos o projecto, a equipa constatou que era preciso uma diversidade de curadorias para cumprir com a missão da pluralidade de filmes, intenções e temas. Foi feita uma aproximação a festivais de cinema de todo o mundo e a entidades que trabalham a programação de cinema para a infância, auscultando a possibilidade de partilharem connosco os seus programas de cinema para serem mostrados em Portugal, nas sessões do Cinema Insuflável. Foi muito profícua esta partilha e percebemos, por exemplo, que os filmes que são mostrados na Suécia são muito diferentes dos filmes mostrados no Brasil, e isso é muito rico.
Simultaneamente, entrámos na ECFA - European Children’s Film Association, que é uma rede onde estão todos os festivais e entidades que trabalham o cinema para a infância na Europa. A partir daqui o projecto foi logo acolhido como uma ideia original e uma solução para fazer circular mais o cinema de qualidade a mais crianças. Em 2022, surgiram os primeiros convites para circular por festivais europeus, fomos à Bélgica, Suécia, Noruega e Países Baixos. Em 2023 já estivemos na Roménia e vamos voltar aos Países Baixos em Outubro. Paralelamente, tenho sido convidado para participar em encontros internacionais para falar do projecto.
Neste momento estamos a construir um segundo Cinema Insuflável (em parceria com dois festivais de cinema) que vai servir dois países: a Bélgica e os Países Baixos. Dois festivas de Cinema, o JEF na Antuérpia e o Cinekid em Amesterdão, vão partilhar uma réplica do nosso Cinema Insuflável para circular com os seus programas por vários territórios.
Isto é um grande reconhecimento para nós, termos o nosso projecto replicado em dois países, sendo que o festival Cinekid é o principal festival de cinema para a infância da Europa.
Mas nós somos mais utópicos. Quando criámos o projecto, era para que o cinema de qualidade chegasse a sítios onde faz mais falta e, por isso, agora, queremos muito fazer chegar o Cinema Insuflável a países de África e aos campos de refugiados que existem na Europa. Para os países de África precisamos de arranjar alguém que financie a construção de um novo objecto que sirva alguns países e teríamos de dar formação a uma equipa local. Estamos a falar com entidades na Dinamarca que já desenvolvem alguns projectos de cinema na Tanzânia e no Ruanda.
Angola e Moçambique estão também na nossa mira, mas é muito difícil conseguir financiamento. Quanto à deslocação do Cinema Insuflável a campos de refugiados, já auscultamos várias pessoas que trabalham nos campos e que consideram essencial a ideia de levar cinema às crianças, criar momentos de lazer e esperança. O problema é mesmo o financiamento, já sondámos algumas fundações, não é fácil, mas não costumo desistir rapidamente. O Cinema Insuflável esteve em projecto 8 anos até se concretizar.
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Sérgio Marques (Porto, 1971)
Desde 2012 entre Lisboa e o Porto Frequentou, sem concluir, o curso de Professores de Educação Visual e Tecnológica da ESE, IPP, Porto. Frequentou várias formações, a destacar: FAZ IOP – Formação Empreendedores Sociais – Fundação CalousteGulbenkian -2011 ; What’s the sound of the borders in Porto? Workshop ULTRA-RED/Fundação Serralves – 2011; Estratégias de Programação Cultural, SETEPÉS 2004; Direitos dos Imigrantes, CES FACULDADE de ECONOMIA da Universidade de Coimbra 2004; Gestão Estratégica de Públicos, PORTO 2001 SA/AEP. É autor e coordenador dos projetos originais da Associação Cultural Figura Nacional, alguns exemplos: CINEMA INSUFLÁVEL; CLUBE DE CINEMA DE CAMPANHÃ - EEA Grants/ FCG; RISING CINEMA - Colaborate to Inovatte /Europa Cinemas; VIDEO LUCEM - Cineclube de Faro/ 365 Algarve; CAMPANHÃ É A MINHA CASA - ICA; NOVE E MEIA - CINECLUBE NÓMADA - Cultura em Expansão /CM Porto; FITAS NA RUA - EGEAC/CM Lisboa.
Autor, coordenador, diretor de produção, diretor técnico de vários projetos, próprios e de outras entidades. Colaborou com entidades em todo o país: INATEL, SERRALVES, CCB, CM PORTO, ICA, CM LISBOA, entre outras.