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ARTES PERFORMATIVAS


ΛƬSUMOЯI, DE CATARINA MIRANDA

LIZ VAHIA E CATARINA MIRANDA

2024-05-17



 

© João Octávio Peixoto / DDD

 

 

ΛƬSUMOЯI, de Catarina Miranda, é um espetáculo de dança que parte da peça de teatro japonesa noh escrita do século XV e que teve a sua estreia a 27 de Abril no Teatro Académico de Gil Vicente, em Coimbra, no âmbito do Festival Abril Dança Coimbra.

 

Em ΛƬSUMOЯI, Catarina Miranda, uma das nomeadas para o Salavisa European Dance Award, parte da peça de teatro japonesa noh ΛƬSUMOЯI, escrita por Zeami Motokiyo no século XV, para criar um espetáculo ancorado no movimento, na luz e no som, onde se cruzam espectros e memórias, passado e presente, técnicas ancestrais e linguagens futuristas. ΛƬSUMOЯI é um jovem samurai que morre em combate e cujo espírito regressa ao campo de batalha, onde acaba por encontrar apaziguamento em vez de vingança.

Depois de ter passado uma temporada a estudar a tradição gestual e musical do teatro noh, no Centro de Arte de Quioto, no Japão, Catarina Miranda pegou nesta história para desenvolver a sua própria narrativa em torno de uma dança fantasmagórica apotropaica, abordando as relações com o mal, o desconhecido, o invisível. O quinteto de bailarinos recorre a palmas, apitos, faíscas, sussurros e chamamentos vocais, enquanto explora o território - ora em solos, ora em grupos - através de uma coreografia intersticial e pontilhista, mas ao mesmo tempo fluida, num jogo de espectros e sombras, metamorfoses e ritmos. Há ecos e vestígios do gestuário de danças ancestrais e danças sociais contemporâneas, aqui torcidas e reconfiguradas, como se os corpos e o tempo fossem desdobráveis, desmembráveis, transitáveis. Atravessados por fantasmas, mas também por novas possibilidades, relações e dinâmicas sociais mais conciliadoras.

Dando continuidade ao ambicioso trabalho de luz das suas criações anteriores, Catarina Miranda constrói, com Leticia Skrycky e Joana Mário, um espaço cénico vivo, com um piso e um teto luminosos, amplificados pela composição sonora original de Lechuga Zafiro. A cenografia desempenha um papel ativo neste jogo de espectros, revelando os corpos que se dissolvem, que se transformam, que procuram emergir e coexistir.


Entrevista por Liz Vahia

 

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© João Octávio Peixoto / DDD

 

Como se deu a tua aproximação ao teatro noh?

Nos anos 90 tive a oportunidade de visionar no cinema, o filme Dandy de Peter Sempel, onde eram seguidos vários artistas como a Nina Hagen, o Blixa Bargeld, o Nick Cave. Nas minhas memórias, a meio do filme, a câmara deixou de retratar espaços interiores e meio tediosos e passou para a cidade de Berlim. No topo de um edifício apareceu uma personagem descabelada, toda pintada de branco e a mover-se de forma rara… rara. Era o Kazuo Ôno.
Que estranho! Esta sensação visceral que se apoderou de mim. Mesmo que não compreendesse a totalidade daquela personagem, conseguia perceber que havia ali um “Ikigai” (razão de ser ou missão) e uma estética intensa e inerente que me atraía sem dúvida.

Curiosamente em 2008 fui viver para Berlim.
Entre estudos de dança, voz e teatro físico, fui-me aproximando do Butoh e aí me apercebi que a minha epifania estética (ou uma das…) era realmente as artes clássicas nipónicas, entre elas o Teatro Noh, a Dança Buyo, a música Gagaku e as marionetas do Bunraku.

O Teatro Noh e o Bunraku traduzem de forma muito cuidada a relação emocional e histórica entre a condição humana e a dimensão dos espíritos, por meio de veladuras e símbolos, máscaras e objectos passíveis de serem resignificados. As soluções cénicas que encontram para criar jogos de percepção e projecção são de uma simplicidade avassaladora.
Estes sistemas altamente codificados e a dimensão arquetípica das estruturas dramatúrgicas são operados com um contorno formal que transforma a narrativa abstrata e desumana numa estetização máxima do real. A consciência do tempo enquanto elemento estrutural permite o catapultar do corpo numa escrita de gesto e alteridade incrível.

Entretanto em 2014, estive numa residência de criação de 3 meses entre Kobe, Maizuru e Kyoto, num programa intitulado DanceBox, onde continuei a aprofundar estas questões. Aqui tive a oportunidade de realizar um pequeno documentário sobre rituais de passagem da província de Kyoto. Entrevistei antropólogos, grupos de Taiko Drum, tive aulas de Buyo e de Noh. Durante esta residência também desenvolvi um solo de dança (RAM MAN) e um pequeno filme ficcional (House Above the Clouds) que mais tarde apresentei na Europa também.

Em 2018, fui objectivamente estudar Teatro Noh, para o programa Tradicional Theatre Training no Kyoto Art Center. Toda a dedicação ao gesto dançado, à palavra cantada e à simbologia das cores e indumentárias foi para mim extremamente precioso.
Durante este curso, foi-me atribuído um excerto da peça ATSUMORI, para estudar e apresentar ao público. E na altura senti que tinha interesse em traduzir estas cosmologias, através da minha própria linguagem.

 

© João Octávio Peixoto / DDD

 

Que elementos da peça de Zeami te fizeram querer desenvolver este espectáculo de dança?

Atsumori é uma figura popular, ficcionalizada e retratada nos Contos de Heike de onde derivam várias obras traduzidas em peças cénicas e sónicas.
Penso que os traços que o tornaram mais célebre foram o facto de este ter sido um jovem aristocrata, artista e poeta que não estava de todo preparado para integrar uma guerra. Descreve-se que ele transportava uma flauta para a batalha (Ichi-no-Tani), caracterizando-o com uma certa ingenuidade e arrogância.
Quando o seu clan (Taira) foi forçado a fugir por terra, Atsumori voltou atrás para recuperar a mesma flauta, momento em que dois soldados inimigos o avistaram. O general do clan oposto Kumagai Naozane (Minamoto) interviu e degolou o adolescente, proporcionando-lhe uma morte honrada.
Por sua vez, tendo morto uma criança da mesma idade do seu próprio filho, o general Kumagai renunciou à vida material e converteu-se em monge budista, para rezar por Atsumori e para que a sua alma pudesse repousar depois da linha do horizonte.

Este é o contexto da peça de teatro Noh.
Confesso que me chocou e me continua a chocar o facto de uma criança ser apanhada entre um conflito político, entre territórios, entre poder, entre marcas. A rápida transposição para os vários conflitos atuais é imediata. (Não só atuais, mas desde o início da humanidade.) E foi de certa forma o primeiro ímpeto que me levou a desejar debruçar-me sobre esta criação. Fui abrindo diferentes portas que se foram inter- dialogando:

 

espectro-geografia.
O facto de os territórios ficarem para sempre carregados pelos eventos que ali se sucedem, levou-me a reflectir sobre qual a arquitectura desta peça. Qual a cosmogonia do espaço e a sua estrutura?
Pensei que seria interessante construir um espaço intersticial, com dimensões idênticas às do Teatro Noh. Um local suspenso como a sala vermelha do Twin Peaks do David Linch, com uma vontade própria, marcada pela passagem de vários corpos, onde nem tudo se compreende;
Um posto de comunicações, ocupado por linhas de horizonte, rebatendo para duas superfícies, diferentes dimensões em simultâneo;
Uma dobra da luz do sol, onde a iluminação é projectada por cima e por baixo, com o intuito de se ir revelando o que está na sombra.

 

devir espectro.
A volta eterna, ser um espectro em repetição para a frente e para trás, numa obsessão de voltar a um ponto no tempo e no espaço eternamente.
Ser transparência, sobreposição, ser a espera de uma sombra num canto. Como tornar um bloqueio em movimento?
Olhar para o corpo desmembrado do passado e reconstruí-lo numa nova identidade, gerando presente e ocupando os espaços de forma densa, afirmando a existência numa nova capacidade.

 

apotropaico.
E ainda, este conceito, apotropaico, isto é, todas as acções, comportamentos e objectos que servem, em diferentes culturas (e no Teatro Noh também) para afastar o mal, a morte, a doença, o desconhecido.

Nesta criação ΛƬSUMOЯI, tanto a coreografia como a banda sonora são dramaturgicamente povoadas de ações e sons de palmas, madeiras e metais a bater, apitos, faíscas, sussurros, vocalizes, bem como construções rítmicas que geram por sua vez, permanência, hipnose e rupturas, como se a peça em si, tivesse a função de sussurrar um feitiço de atração e expulsão simultâneas, ao longo da sua duração total.

 

© João Octávio Peixoto / DDD

 


Nas tuas obras, o som, a iluminação e toda a concepção plástica têm uma presença comparável à dos elementos dramatúrgicos. Deve-se isso à tua formação em artes visuais, à colaboração com uma equipa específica nessa área, ou queres apontar outras razões?

O meu percurso tem-me levado a estudar diferentes formatos e temáticas, bem como a ativar, limites de atenção e percepção, sejam físicos, visuais, sónicos… Tenho tido a sorte de colaborar com artistas muito sensíveis e conscientes da tradução da experiência do presente, como a Letícia Sckrycky, a Ece Canli, o Jonathan Saldanha, o Marco da Silva Ferreira, a Cristina Planas Leitão, o Lechuga Zaphiro.
Neste espetáculo em específico, ΛƬSUMOЯI, dois dos elementos denominadores comuns do gesto, da música e da luz são o estudo do ritmo, pela inspiração no Teatro Noh e também na relação física ancestral entre a dança e a música, bem como, a relação entre silêncio e sombra — o que é transparente ao ouvido e ao olho.
O facto de estes elementos estarem presentes, de se desenvolverem e comunicarem de uma forma ora autónoma ora dialogante, tem a ver com a potenciação da arquitectura de um espetáculo, na sua capacidade sensorial e temporal. O desenho dramatúrgico estabelece um sistema, que dita as leis de existência no jogo, bem como, os níveis de atenção e valores que os vários elementos vão ocupando ao longo do espetáculo.
O prazer de dotar um sistema cénico de níveis de percepção, tanto conscientes como até mais hipnagógicos, é um desafio para vários olhos sensíveis e várias cabeças atentas, que necessita de tempo para colaboração e maturação, de forma a nutrir a arquitectura que se ergue à nossa frente e até, deixá-la falar de volta connosco.

 

:::

 

 

© João Octávio Peixoto / DDD

 

Próximas apresentações

17 - 18 mai | 20h00
Centre Pompidou, Paris/FR

31 mai | 19h30
One Dance Festival, Plovdiv/BG
Boris Hristov House of Culture

8 jun | 21h30
Teatro Aveirense, Aveiro/PT

10 - 11 jan '25 | 20h00
São Luiz Teatro Municipal, Lisboa/PT

  

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Catarina Miranda tem vindo a desenvolver e a apresentar projetos de criação maioritariamente para palco, a partir de discursos ficcionais, cujas linguagens intercetam dança, voz, cenografia e luz, abordando o corpo como um veículo de transformação hipnagógica e de consciência do presente. Do seu percurso destaca as peças Cabraqimera, Dream is the Dreamer, Boca Muralha, Mazezam e Reiposto Reimorto, apresentadas entre o Centre Pompidou/Paris, Palais de Tokyo/ Paris, Fundação Calouste Gulbenkian/Lisboa, Fundação de Serralves/ Porto, Teatro M.Rivoli/ Porto, DanceBox/ Kobe Japão e nos Festivais Dias da Dança, Materiais Diversos, Pays de Danses/ Liège Bélgica, Short Theatre/ Roma, Africologne/ Colónia , Mindelact/ Mindelo, Cabo Verde. Apresentou a exposição POROMECHANICS no Centre Georges Pompidou/Paris, nos Maus Hábitos/90o aniversário Teatro Rivoli (Porto/PT) no Festival Walk&Talk (Açores/PT) e no Teatro São Luiz (Lisboa/Pt); bem como, as instalações visuais DIAGONAL ANIMAL/2019 no Festival Fabrik (Fall River/ EUA); e MOUNTAIN MOUTH /2014 no Dance Box e no Maizuru RB (Kobe/ Maizuru/ JP). Concluiu o mestrado EXERCE no ICI-CCN (Montpellier/Fr) e a licenciatura em Artes Visuais pela Faculdade de Belas Artes do Porto; estudou Teatro NOH, no Kyoto Art Center, Japão. Atualmente frequenta a Pós-Graduação em Media&Performance na ESTC Lisboa/PT.

 




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