Se a exaltação pode conduzir à banalização, a possibilidade surge aqui afastada. Até mesmo na época em que a representação da máquina homogeneizadora antecede e tritura o algo de verdade no real que é anulado nessa representação, Liars evita(m) a banalização pois permanecem indefectíveis no seu próprio paradoxo: quando já não são reais, continuam a sê-lo.
“1/1”, a mais recente edição de um percurso de nove álbuns e dezoito anos, ainda que criado em 2014, vê a luz do dia em 20 de Julho passado, quando o duo formado pelo guitarrista e programador Aaron Hemphill e pelo vocalista Angus Andrew já se havia esfumado no início de 2017, reduzindo Liars à formação única de Andrew que, mais tarde no ano passado e neste formato singular, colocaria na rua “TFCF”, o antecessor de “1/1”. A sangria humana na formação da banda não foi inédita, como é sabido; foi marcada em 2014 pela partida do percussionista Julian Gross que, por sua vez, veio contrapor o abandono já distante nos anos do baixista Pat Noecker e do baterista Ron Albertson.
Será este entra-e-sai que, também, instiga a irrequietude camaleónica de Liars. O mais acentuado classicismo do quarteto rock inicial privilegiava a grandiosidade sonora das distorções e feedback da guitarra e vocais do post-punk interpolado por sintetizadores do new-wave dos anos ‘80, enquanto as produções mais recentes tenderam para o synth-rock em que a guitarra, sempre em vai-e-vem, ora se destacava em riffs à antiga ou abria espaço às camadas mais texturadas dos sintetizadores com sonoridades estruturadas e afiadas do noise e industrial à mistura. Porém, as várias inflexões formais deste percurso somam-se numa essência original que impede que caiam em mais do mesmo.
As suas composições conseguem ser tão oblíquas quão melódicas; seja no registo rectilíneo e incandescente ou no emocional e introspectivo, há sempre algo de violento, pois parecem vir de um algures remoto e sombrio para implacavelmente nos perturbar. Em “1/1”, compelem a purga da representação ao arrancar a pele que se julga real.
A composição descarna-se como ainda não antes – apesar dos trabalhos anteriores com pendor mais electrónico – para pisar o território abstracto e conceptual da electrónica experimental e ambient em que a programação da maquinaria musical e a ausência quase absoluta de vocais – a tímida excepção é “Helsingor Lane” – marcam lugar. Mas da perturbação não há escapatória.
Em “Caused By Glitch”, a base uniforme do beat e percussão é acrescentada por um continuum sombrio sintetizado que entorpece, sem que esse torpor escuro demore muito a ser abruptamente cortado por um som metálico frio e afiado, tal qual uma lâmina na mão do carniceiro na morgue a cortar-nos os ossos, que se repete na sua impassibilidade tirânica sem nos deixar sossegados. São, contudo, as ligeiras nuances tonais desta lâmina que conferem o pouco de melodia da faixa que, curiosamente, traz de regresso o torpor que começou por cortar. Logo de seguida, “Helsing Lane” abre com uma progressão melódica de um sintetizador – a lâmina é agora o arco a cortar as cordas de violoncelo – que rapidamente resvala para um ciclo depressivo e, novamente, nos persegue até a faixa encerrar, enquanto a percussão dita, através do seu eco, a distância a que estamos do que quer que seja. A salvação desse isolamento claustrofóbico, se alguma, é o murmúrio espectral de Andrew que traz ao cantar “Since I’ve came to my hollow / I found a can to explode / When eyes are closed / That’s when we come / Let flowers grow / To the ceiling”. No seu minimalismo abstracto “Drastic Tactic” contrasta de "Telepathic Interrogation" e "Nøkke"; se a primeira nos desperta bruscamente para o desespero do vazio árido em que nos faz vaguear, as restantes criam uma paisagem sonora abstracta capaz de serenar o tormento, num intervalo redentor em que o tempo fica suspenso. “Liquorice” é a única aproximação a um registo pop, evocativo da imagética sonora sci-fi que há quarenta anos fazia imaginar os anos de hoje, e hoje não parece mais que uma caricatura.
Exemplar na criação de tão variadas paisagens emocionais, não será de estranhar que “1/1” seja, na realidade, a banda sonora de um filme homónimo – o que explica que apenas agora seja lançado, acompanhando o filme. O enredo aborda a decadência quotidiana numa América rural – nada de novo, mas relevante, em função da mestria em tocar no tema. Mas “1/1” não se reduz à categoria de acompanhante. Não só se sublinha a sua capacidade enquanto obra autónoma em gerar e perturbar como, por esse mesmo motivo, se adivinha que agregue valor.
“1/1” oferece uma colecção de rápidas mas intensas experiências através de um conjunto de faixas que, na sua maioria, vivem entre minuto e meio e três minutos – apenas “Helsingor Lane” e “”Beyond” escapam a esse carácter compacto – que nos atiram para um vórtice caótico emocional, no qual a organização da tracklist amplifica o caos alternante dos estados de espírito que faz atravessar, fazendo sobressair a globalidade do trabalho face às suas parcelas. É esta capacidade em arrancar a pele, anular a representação e deixar a carne e os ossos à vista que concedem a Liars a antítese da banalização.
“1/1” tracklist
1. No Now Not Your Face
2. Cottagevej
3. Caused By the Glitch
4. Helsingor Lane
5. Lesson in Threes
6. Telepathic Interrogation
7. Gesta Danorum
8. Caused by the Pitch
9. The Jelling Ship
10. Shitraver
11. Drastic Tactic
12. Liquorice
13. Nøkke
14. The Finger Plan
15. Beyond