Eu gosto da Lana. Tenho-lhe dedicado um voyeurismo despudorado desde que ouvi a «Summertime Sadness». Foi numa certa tarde de Agosto. O uivo de uns violinos elevou-se para lá do choro de uma contralto e ricocheteou nas paredes do meu carro. Foi tão forte como um Werther. Purgou-me, puxou-me a tristeza para fora. Lembro-me até de ter pisado o traço contínuo e de quase ter batido de frente num desgraçado que parou o carro para me dizer que eu não presto. Eu tinha lágrimas nos olhos, ele tinha coisas a dizer-me, e quando nos confrontámos, de janelas abertas e mãos nos respectivos volantes, nenhum de nós disse nada. Foi ridículo. Ele seguiu e eu segui, e o vento foi-me secando as lágrimas enquanto tristeza que a música puxou foi ganhando contornos abstractos e generalistas. Aquela tristeza de um metafísico: É o mundo, o mundo é assim.
Mas não vale a pena mistificar, a Lana Del Rey não me abriu uma janela metafísica. Metafísicos somos todos, especialmente quando estamos tristes. E os casos particulares que nos fazem pensar nos universais de «amor» ou de «dor» são injustamente elevados a milagres, santos e musas. O que me parece inevitável, porque talvez seja mesmo milagroso que determinadas coisas consigam libertar-nos do solipsismo do sentimento. Sejam as estatísticas sobre a depressão, a filosofia do Schopenhauer ou um álbum Lana Del Rey, o efeito é beatífico: Isto não acontece só comigo.
Foi empatia que me levou a gostar da Lana. Uma estrela pop com uma devoção à Sylvia Plath e ao Nabokov, que presta tributos de corte e colagem ao classicismo hollywoodesco e aos deuses dourados do rock, que no Born to Die nos cantou a tragédia de uma lolita perdida, que, no Ultraviolence, nos fez sentir a alienação de uma groupie masoquista, e que no Honeymoon, no brilhantíssimo Honeymoon, nos fez ouvir os choros de uma velha starlet, num saudosismo de quaaludes que contemplou as palmeiras de Sunset Boulevard e as primaveras da esperança. Foram três álbuns milagrosos, sem dúvida. Mas que conduziram, eventualmente, ao caso problemático do Lust for Life.
Lançado em 2017, o Lust for Life mostrou-nos uma desintegração de personalidade. Foi um álbum acerca de tudo e para ninguém, onde o amor se assume como uma utopia política, onde o trap, o rock clássico e o folk se juntaram para uma fotografia de sorriso amarelo. Pura diplomacia numa ansiedade por contrastes e por originalidade, que trocou a uniformidade sónica dos trabalhos anteriores por convidados do Top 40 e por poesia preguiçosa.
Por dois anos, a Lana Del Rey mereceu todo o meu cepticismo. Mas, em Agosto de 2019, uma estranha e súbita redenção chamada Norman Fucking Rockwell! veio compensar por todas as transgressões. Em 2018, tinham já sido lançados os singles «Venice Bitch» e «Mariners Apartment Complex»: o primeiro são dez minutos de psicadelismo oceânico; o segundo é uma rotunda de poesia chorosa erguida por um piano dramático. Ambas as faixas eram contrastantes, o que me fez recear um novo Lust for Life. Contudo, o álbum, o tão receado álbum, que abre com a «Norman Fucking Rockwell», revelou-me uma fórmula de violinos, piano e poesia que flui em ondas de saudade e de resiliência. Uma fórmula que pinta o mundo em tons de azul, invocando uma vida filmada com uma super 8, desbobinando fragmentos de amores perdidos e da Califórnia dos Beach Boys.
O Norman Fucking Rockwell! não contém qualquer indício de esforço. Não há qualquer excentricidade que o caracterize. As melodias são simples e os arranjos são tímidos – uma ocasional harpa ou teremim por cima dos violinos e do piano e não muito mais –, as letras são despretensiosas e saudosistas, talvez dignas de serem chamadas de poesia. E a voz do álbum, surdida das entranhas de uma viúva de Laurel Canyon, presta um luto à morte do rock ‘n’ roll. Que é na verdade a morte de uma certa América, da América das gangas azuis, do surf e do romance de postal.
Quando a viúva nos canta «Kaney West is blond and gone», no «The Greatest», é impossível escapar-nos uma desistência de fazer parte do mundo. A viúva retira-se para a saudade, preferindo o passado ao presente, recusando o futuro – «The culture is lit and I had a ball/ I guess I’m signin’ off after all». O futuro é uma pop dividida entre o hedonismo e a política dos extremos, onde a arte pela arte não tem lugar, onde a beleza é um valor anacrónico e substituído pela procura da novidade. Uma distopia estética, no fundo. E o que resta é um apelo ao classicismo, a um novo classicismo que a Lana encontra no zénite cultural que nos trouxe os Doors e os Led Zeppelin, e que afirma o poder transformador do sol, da dança e do amor. A ideia é a de que há algo a conservar, uma ideia simples e pouco original. Uma ideia que, talvez, a Lana não tenha intencionado transmitir, mas que perfila aquele que é o seu melhor trabalho até à data. O Norman Fucking Rockwell! não é um álbum original, é só uma obra-prima.
André Fontes
Licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e pós-graduado em Artes da Escrita, pela Universidade Nova de Lisboa, André publicou, em 2019, o seu primeiro romance, Saturnália, editado pela Guerra e Paz Editores.