|
Será possível pensarmos que as novas sonoridades criadas por tantos e tão valiosos inovadores artistas e que nos inspiram por estender os horizontes musicais que conhecemos, que as outras formas de expressão artística que nos fazem questionar conceitos instituídos ou nos estimulam abrindo novos ângulos de visão sobre a realidade das coisas ou, numa perspectiva menos individualizada, conduzidos por essa natureza curiosa, questionadora e aventureira, que o nosso quotidiano circunstancial e os seus ambientes em que convivemos, as suas pessoas com quem trocamos histórias, os seus episódios em que nos envolvemos e que procuramos que nos surpreendam e encantem com mais uma descoberta, possam ser comparados aos tão importantes adereços e adornos da nossa mente e do nosso espírito com que decoramos e vamos completando diariamente as paredes-mestras que são a estrutura do que somos enquanto indivíduos.
Será possível pensarmos também que não é menos importante dedicarmos a indispensável atenção que impeça que esses mesmos adereços e adornos, numa reversão da sua natureza agregadora de valor, se transformem afinal numa segunda fachada artificial que oculta eventuais fracturas dessas paredes-mestras da nossa estrutura enquanto pessoas, que cobre parcelas delas que afinal se revelam inacabadas se descobertas dessa máscara, ou que até mesmo toma o lugar de paredes-mestras que não existem. Será ainda possível pensarmos que nos podemos revelar inábeis na nossa intenção verdadeira de completar essas lacunas ou, se ávidos, deslumbrados e viciados, a ela recorremos numa busca obstinada de aventuras porventura efémeras que julgamos poderem preencher os reais vazios que tentamos esconder sem nos apercebermos que (quem sabe?), carentes de uma abordagem ocasional mais introspectiva sobre quem e o que somos, poderemos até abrir novos espaços que poderão vir a trazer bem mais sólidas recompensas porque nos estimulam tanto ou mais em resultado da progressão da nossa da essência humana.
Ainda que contendo assinaláveis singularidades que a tornam inegavelmente distinta e individual, não é unicamente a personalidade sonora do álbum de estreia “By The Sea… And Other Solitary Places” do duo Annabel (Lee), como se de álbum de inédita e inventiva sonoridade com faixas de identidade musical diversa e variada entre si compostas por um visionário artista de reconhecido mérito artístico e musical que rompe os padrões e ritmos e harmonias estabelecidos que nos entusiasma e anima se tratasse, que mais nos captura e nos conquista, como, de facto, nos encontramos, pois ele oferece-nos o prazer dessa personalidade sonora individual e muito mais.
Esta extraordinária estreia que nos despe, nos arrepia, nos enregela, nos atinge directa no âmago da nossa intimidade mas ao mesmo tempo nos acalma e pacifica e a sua densa, pesada, quase claustrofóbica e opressiva mas ao mesmo tempo sedutora atmosfera sonora que nos envolve e na qual nos perdemos ao longo das dez faixas que a compõem e nos faz vaguear como que embrenhados numa aventura misteriosa de desfecho desconhecido e imprevisível entre os nossos sonhos, as nossas memórias, os nossos obstáculos, as nossas confissões e os nossos segredos são um mecanismo despoletador, um convite, um desafio ao mesmo tempo aliciante e intimidante para uma viagem introspectiva às regiões mais profundas da nossa essência e da nossa estrutura humana e à forma como traduzimos e aplicamos as forças e as fragilidades da nossa intimidade na prática e nas expectativas do dia-a-dia. Basta que para isso não caiamos na distracção involuntária ou na dependência viciada do conjunto decorativo suspenso de alguma fachada artificial que esconda as eventuais vulnerabilidades da nossa individualidade se aquelas forem levadas para lá do ponto de equilíbrio em que se revelam ser-lhe o complemento saudável.
O álbum nasce da colaboração de Annabel, a quem devemos o fascinante desempenho vocal, e de Richard E, responsável pela brilhante composição, produção e arranjo musical, à qual ambos se dedicaram intensamente por se encontrarem incompletos, deslocados e desconfortáveis nas suas peles artísticas antes dos seus percursos se atravessarem e ligarem, vazios nos conteúdos em que se viam envolvidos que não os preenchiam e nos quais sentiam a ausência do contacto com valores e ideais mais conceptuais e mais elevados relacionados com as vicissitudes, as vulnerabilidades e as violências da condição da existência humana, e por depressa sentirem que nela encontrariam a resposta e a solução para as suas frustrações. Annabel, uma vocalista entre muitas em Nova Iorque, cantava covers de jazz em pequenos clubes de forma monótona e rotineira, mecânica e automatizada, sentindo ser-lhe esvaída a sua antiga e duradoura paixão pelo Romantismo da prosa e poesia inglesas e americanas que a acompanhava desde criança, quando se embrenhava em livros e mergulhava em horas de leitura, memorizava obras clássicas para seu prazer individual e as recitava para ela mesma ou quem a quisesse escutar, que a inspirou a encontrar a sua forma própria de expressão e a conduziu aos primeiros escritos originais de que não mais abdicou e nos quais, mais tarde acrescentando a sua capacidade e mestria vocal, encontrava o privilégio raro do puro sentimento de liberdade criativa que, antes de materializados em Annabel (Lee), se via forçada a guardar para si. Por seu lado, os dias do britânico Robert E escoavam-se e fugiam-se-lhe enquanto líder da editora londrina Further Out Recordings dedicada ao jazz, à bossa e à música de produção electrónica e também como produtor multi-instrumentalista e compositor de arranjos musicais que, embora respeitado entre pares pelo seu trabalho e pela posição conquistada no mercado, sentia o mesmo descontentamento e a mesma insipidez da ausência da aventura por territórios criativos mais desconhecidos mas mais empolgantes e preenchedores que respondessem ao mesmo apelo que sentia pelas correntes artísticas do Romantismo clássico.
Ambos frequentadores assíduos do fervilhar das ruas do Soho londrino e das suas icónicas lojas de discos e música independente que outrora consistiam num verdadeiro caldeirão borbulhante de criatividade e diversidade cultural e artística, antes do encerramento de vários desses marcos que se tem vindo a verificar recentemente a um ritmo terrivelmente acelerado e que é considerando como um verdadeiro assalto ao verdadeiro património histórico e cultural do bairro pela associação Save Soho entre outras entidades e personalidades dedicadas à sua protecção e reanimação, foi no final da primeira década de 2000 numa das suas deambulações que o acaso fez cruzar os seus caminhos e os conduziu à ainda resiliente e lendária If Music onde, como dois desconhecidos que trocam uma conversa fortuita, iniciaram uma interacção e uma partilha de pensamentos sobre música, literatura e outras formas artísticas através das quais o seu espírito, a sua natureza e os seus ideais se pudessem expressar e à qual deram continuidade através dos respectivos perfis do MySpace quando afastados pelo oceano e que rapidamente os fez identificar o gosto comum pelos valores expressos pelos poetas, pintores e compositores do Romantismo clássico e os sentimentos de amores fatais e as noções dramáticas e misteriosas das causas perdidas, enunciando nomes literários inspiradores mútuos como Edgar Allen Poe, Emily Dickinson, William Blake, aos quais juntaram referências musicais partilhadas no Classicismo de Claude Debussy, na tranquilidade folk de Joni Mitchell e nas tonalidades jazz de Miles Davis e Billie Holliday e ainda a admiração pela expressão visual de Degas, Man Ray ou Matisse.
Pressentindo que tal comunhão de interesses e inspirações poderia transformar-se num projecto de equipa que corresponderia ao resgate do marasmo criativo e expressivo em que ambos sentiam encontrar-se, a parceria profissional, pessoal e artística começou pontuada com contribuições vocais de Annabel em alguns dos vários projectos de produção de Robert E que tomaram forma nas fantásticas faixas “I Heard”, “Down In Mystic”, “Circles” e “My Mistake”, em que o soberbo lirismo da voz de Annabel já sobressai e se destaca acrescentando uma solenidade e uma nobreza magnificente aos territórios musicais de Nu-Jazz e de Lounge Music constituídos por ritmos downtempo e bases instrumentais easy listening habituais na produção de Robert E, que anunciavam a elegância e a distinção superior a que a união dos seus talentos ascende e constituindo-se como o tubo de ensaio que reforçou a solidez necessária para assumirem a decisão de compor e produzir o seu primeiro trabalho de longa duração. Bastaram apenas 18 meses para enviar o resultado transcrito neste primeiro álbum à If Music e ao seu proprietário Jean-Claude Thompson, um dos últimos guardiões e bastiões do universo das lojas de discos do Soho e reconhecido pelo seu olho atento a novos talentos após trinta anos de dinâmica actividade ligado à indústria e envolvido em inúmeras iniciativas ao longo dos quais recomendou artistas como SBTRKT a produtores renomeados como Mark Ronson ou Theo Parrish, que de imediato reconheceu a profundidade do significado e do significante e o valor artístico e musical do duo e o enviou para a editora Ninja Tune, uma entre muitas de quem é próximo e com a qual tinha lançado em 2013 e 2014 a série If composta por duas edições de vários artistas curadas por si, que lhe seguiu as pisadas na valorização e entusiamo em torno do trabalho de Annabel (Lee) e editou o álbum no mercado no passado dia 18 de Abril, coincidindo com o mais recente Record Store Day numa iniciativa conjunta de apoio à Save Soho.
As dez faixas de “By The Sea… And Other Solitary Places”, cuja tracklist está indicada no final, assinadas com letras da autoria de Annabel, excepto o poema “My Homeland” escrito por Kayla Lamarr e na faixa homónima do poema “Alone” de Edgar Allen Poe, e com música criada exclusivamente por Robert E, excepto nas faixas “Invisible Barriers” em que se juntou a Asier Leatxe, Ibañez d'Opakoa e Mikel Andonegi e “Believe” na qual contou com a participação de Henry Mancini, não nos trazem facilidades e, aliás, nem o quereríamos pois o álbum perderia grande parte do interesse que nele encontramos. Estranhamo-lo ao início quando, sem aviso prévio, ele arranca os nossos adereços das nossas paredes e nos confronta encapsulados perante a sua, a nossa, crueza e nudez mas ele depressa se nos entranha após esse primeiro embate quando aceitamos a vulnerabilidade dessa nudez e, abanando e testando o equilíbrio da nossa estrutura e a condição da nossa existência humana mais profunda, nos desafia numa retrospectiva escrutinadora da qual elas saem renovadas, reforçadas e, sem dúvida, inovadas.
A inspiração nas artes Românticas impregnadas de amor, vida, energia, mitologia, fantasia, tragédia, desgraça e terror que ambos os artistas partilham e a devoção à obra de Poe que Annabel dedica desde criança são claras e manifestam-se-nos de diversas maneiras: Annabel Lee é o título do famoso poema sobre o amor extremo e intenso que a personagem central homónima vive num reino “… by the sea…” com o seu amado desde há muitos anos e sobre invejas e maldades que causam a morte súbita e intempestiva daquela deixando o seu amante eternamente fiel a esse amor, solitário e só no seu coração, junto ao mar e em vários outros locais desse reino, e foi a última obra a ser escrita pelo poeta antes da sua morte em 1849, ano emprestado para título de uma das faixas do álbum, ao qual se juntam o poema “Alone” já mencionado. Mas, indo além destes paralelismos objectivos, da mesma forma que podemos considerar Poe como um escritor que ultrapassava as fronteiras visuais das páginas escritas com as suas palavras fazendo nascer na nossa imaginação um verdadeiro vocabulário pictórico e espiritual composto por personagens, ambientes e estados mentais descontextualizados e intemporais em cenários e enredos ao mesmo tempo pacíficos e assustadores, fragéis e hostis, belos e sombrios, e contudo sem neles encontrarmos sofrimento e mágoa, também os sons e as palavras de Annabel (Lee) nos atingem em territórios bem mais profundos que o nosso estrito sentido da audição e, começando por nos despojar de adornos triviais ou superficiais, deixam a descoberto estratos mais subterrâneos e enigmáticos da nossa consciência com os quais nos faz dialogar numa linguagem imagética atemporal que nos transporta simultaneamente aos tempos longínquos das nossas memórias e aos futuros desconhecidos das nossas expectativas colocados em cenários surreais deslocados da realidade como os que experimentamos em sonhos ou pesadelos que nos captam numa atmosfera etérea e nebulosa, encantada e melancólica, calma e hipnotizante mas também intoxicante, intimidante e ameaçadora, que nos faz dialogar connosco próprios, levantar-nos questões, respondermo-nos, debatermo-nos, e progredirmos enquanto seres humanos no contexto dos valores dessa estética Romântica.
Aos primeiros acordes e primeiros vocais de Annabel (Lee) recordamos as facetas mais negras de Nina Simone e os clássicos antigos do jazz mas rapidamente nos apercebemos que a soma e a mera reprodução das diversas influências do jazz que era tocado na penumbra de pequenos clubes nocturnos, da música clássica e do folk nos autores de “By The Sea.. And Other Solitary Places” são largamente extrapoladas numa individualidade sonora apenas sua, original e única, traduzida numa composição musical requintada e exuberante, que notamos inspirada na sonoridade da designada Terceira Corrente, ainda que com pouca presença da improvisação que a caracteriza, e nos conceitos de composição tonal do Jazz Modal da década de 50 e de 60, estruturada por uma orquestração de violinos nobre e imperial da qual escorrem períodos musicais que se movimentam livremente em fragmentos e passagens melódicas particulares que se relacionam entre si mas aos quais não é requerido seguir a progressão das várias tonalidades da harmonia e à qual se juntam, por um lado, delicados e minimalistas arranjos musicais acústicos de guitarra e flauta que misturam uma intimidade folk algo sombria, por outro lado, frases hipnóticas de acordes de piano e baixo que parecem conversar entre si num ambiente jazzy e fumarento, e a presença de fundo de ruídos e sons mais abstractos que se assemelham ao som residual da agulha de um velho gramofone e a sirenes ou buzinas e que vêm reforçar uma sensação de sujidade empoeirada e antiga e acentuar o tom de mistério, drama e suspense da musicalidade que encontramos em Annabel (Lee). A elegância e a distinção da notável, suave, lírica mas majestosa voz de Annabel irrompem, ascendem, alastram, parecem pairar e vaguear em todas as direcções sobre o denso, espesso e quase impenetrável volume da composição musical de Robert E como o instrumento complementar que nele encaixa na perfeição com os seus sussurros que num momento parecem ser-nos gentilmente segredados sobre o ombro para noutro momento se transformarem em lamúrias de desespero que nos são desabafadas e que nos fazem oscilar entre momentos de tensão e contracção provocados por esses tons fantasmagóricos e intimidantes que nos parecem estar esvaziados de emoção e, por esse motivo talvez, os sentimos tão intensos quanto os outros momentos de serenidade e leveza que também nos são despertados, reforçando-nos a sensação de estarmos deslocados num local sem morada e num tempo sem calendário que não pertence às nossas realidades e dimensões.
As dez faixas que compõem o álbum formam um conjunto exigente da nossa atenção e da nossa disposição, quer pelo peso emocional com que nos carrega, quer pelo engano precipitado em que podemos cair se pensarmos que o álbum é musicalmente demasiado homogéneo e monótono. Se é um facto que a já por si surpreendente, original e singular identidade própria de “By The Sea… And Other Solitary Places”, anunciada logo na faixa de abertura “Breathe Us” que, como se de o mestre de cerimónias se tratasse, marca o tom e nos revela quase tudo o que nos espera ao longo das restantes nove faixas, se desvia pouco dessa sonoridade criada por Annabel (Lee) situada a meio-caminho entre o jazz, o folk e a música clássica num mistura modernizada, não é menos verdade que a instrumentação e a orquestração clássica de cordas que ocupa lugar de relevo em “Breathe Us”, em “Believe” ou em “Invisible Barriers” e se distingue do piano e contra-baixo típicos do jazz que sustentam “(1849)” ou da guitarra acústica que tem uma presença folk quase isolada em “Alone” e em “Find Me”, sem prejuízo de que todas elas contêm mais do que cada um desses elementos que melhor as caracterizam, nos oferece a variedade que nos poderia passar despercebida num primeiro momento, à qual acrescentamos o enorme potencial que pensamos cada faixa conter em si mesma para ser reinventada e transformada em remixes que certamente encantará DJ’s e produtores que se interessem por continuar a acrescentar diversidade musical ao brilhante projecto do duo de artistas.
Mas, acima de tudo, à semelhança da obra de Poe que transcende a escrita, é por encontrarmos nesta obra como a sua principal característica e a sua sublinhada e sublime qualidade a capacidade de ir além da unidimensionalidade de mais um excelente registo musical de inegável mérito indissociável dos aspectos mais subjectivos relacionados com os inúmeros estados de espírito e variedade de emoções que nos faz percorrer ao longo dos seus quase 40 minutos de duração com que nos estimula e impressiona que nos é impossível encontrar qualquer tipo de homogeneidade na sua vincada personalidade.
Desconhecendo ainda quais os passos concretos que o duo irá dar na sequência da edição desta excepcional e admirável estreia, “By The Sea… And Other Solitary Places” é o primeiro daqueles que esperamos venham a ser muitos mais frutos futuros da união da nobre e vibrante voz de Annabel, da orgânica e suave criatividade musical de Robert E e, acima de tudo, da comunhão dos seus espíritos e das suas sensibilidades e do que os move na perseguição e contacto com os seus conceitos de estética e beleza associados à natureza humana. Não encontramos um álbum de consumo fácil e não antecipamos valores de vendas massivos mas estamos certos de estar perante um verdadeiro álbum de colecção, uma obra intemporal que seguramente ouvimos hoje e continuaremos a ouvir por muitos anos sem que ele deixe de se manter absolutamente singular e contemporâneo e sem deixarmos de ser surpreendidos com novos e sucessivos estímulos.
Tracklist:
1. Breathe Us
2. I Will Lead Us
3. Believe
4. My Homeland
5. Invisible Barriers
6. Find Me
7. Could It Be The Siren Loves?
8. Alone
9. (1849)
10. Suki Desu