As sensações de fascínio e terror características do imaginário científico andam estimuladas por estes dias.
Em 22 de Setembro passado, Coucou Chloé, cantora e produtora francesa que adoptou Londres e a sua cena musical underground e experimental como residência, lança a faixa “Stamina” e apresenta o seu segundo EP Erika Jane, sucessor de Halo, o EP de estreia do ano anterior.
Coucou Chloé desloca-nos no tempo para um futuro indeterminado. A sugestão é a de uma realidade futurista, sinistra e distópica. Chloé compõe e sobrepõe camadas assimétricas e assíncronas de sonoridades da club music que atravessam o techno, trance, experimental e industrial em que tudo é mecanizado e robotizado, e em que a presença humana é um vestígio longínquo. Estes traços fazem-se sentir acima de tudo nas harmonias dos sintetizadores e nos inúmeros efeitos sonoros que formam a base da sua produção, já que os beats de drum ou de snares são em larga medida abrandados e suavizados – a excepção é a faixa “Sylph” –, contudo criando um esvaziamento abstracto e incandescente que não só não aligeira os ambientes criados como agrava e enegrece a sombra do seu peso. A estética sonora é tortuosa e corrosiva, inspirando sensações asfixiantes de inquietação e tensão. Para esta atmosfera sombria e arrepiante que retém uma memória distante da essência humana contribui largamente a ampla distorção e deformação dos assustadores murmúrios vocalizados que pairam disformes e intimadores sobre a composição musical, ora em rap ora em canto. Porém, é precisamente a irresistível tentação pelo mistério e a atracção pelo adivinhar do desconhecido amarradas à música de Chloé que a tornam simultaneamente tão hipnotizante e absorvente. É a intrigante unicidade de todas as ambivalências e idiossincrasias que fazem destacar a produção de Coucou Chloé.
A sonoridade personalizada de Erika Jane assume-se como uma janela para esses tempo e espaços indeterminados da ficção científica. Não se percebe, no entanto, se esta futurista ascendência da máquina e dissolução do humano sugeridas por Erika Jane correspondem a uma denúncia ou a uma exortação.
A propósito. Passou há dias por Lisboa o Prof. Hiroshi Ishiguro, ilustre académico em Osaka e investigador em Robótica e Inteligência Artificial, dedicado ao estudo da interacção entre homem e máquina e convicto de que os robots hão-de, no futuro, ocupar postos e desempenhar tarefas tais como servir a bica no café da esquina ou fazer companhia aos idosos – os social robots. No documentário Mechanical Love, Ishiguro comenta “If we’re short on people, why not make some?”. Etapa indispensável: os robots têm que ser o mais humanos possível. De sua lavra na construção de robots, refere-se Erica, um android. Tem 23 anos, é bonita, usa maquilhagem e roupa da moda. Interage e dialoga até um certo grau de autonomia. Pestaneja. O destaque vai para um outro modelo, Geminoid: uma cópia exacta do seu criador, o seu “gémeo”. A limitação da autonomia é ultrapassada por uma alteração estratégica: Geminoid é operado à distância por Ishiguro ele-próprio através de uma ligação de internet. De entre outros atributos, tais como dezenas de motores comandados por um software de controlo de movimento que simula alguma da motricidade fina e lábios sincronizados com o operador remoto, tem pele macia de silicone e implantes de cabelo extraído de Ishiguro. É muito útil e conveniente: Ishiguro pode tomar um copo com amigos ou apresentar-se numa conferência no outro lado do mundo sem sair do laboratório; basta enfiar Geminoid nas três malas de transporte e despachar no porão do avião por correio aéreo. Com o título “The future of mankind”, da conferência de Ishiguro exalavam questões ontológicas de fundo sobre o que é um humano e o que é a presença humana, e sobre o que ambas serão no futuro que o próprio humano constrói para si mesmo.
Fascinante e aterrorizante. Dá que pensar, tal como a música futurista de Coucou Chloé.
Erika Jane tracklist
• Underdog
• Flip U (prod. by Sega Bodega)
• Stamina
• Sylph (prod. by Kablam & Coucou Cloé)
• GS
• The Letter