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O teatromosca leva a cena o texto “Os Protegidos”, de Elfriede Jelinek, traduzido por Anabela Mendes e encenado por Pedro Alves. Esta é mesmo a primeira tradução para português desta obra literária desta autora nascida em 1946 em Mürzzuschlag, na Aústria, vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2004. O seu romance “A Pianista” foi adaptado para o cinema, pelo realizador austríaco Michael Haneke, tendo como protagonista a atriz Isabelle Huppert. Este e outros textos poderão ser encontradas no website de Jelinek, um repositório impressionante da sua obra, sempre em expansão.
Este novo espetáculo do teatromosca demarca-se das suas últimas criações que gravitaram em torno da fusão entre as linguagens cinematográficas e as teatrais. Aqui, a companhia regressa à centralidade do texto literário como motor na criação para palco. O trabalho de Anabela Mendes, que aqui também assume a função de dramaturgista, tem sido crucial ao longo do processo. Germanista e professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, traduziu vários textos de Elfriede Jelinek, como é o caso “A Morte e a Donzela I / V – Dramas de Princesas”, obra que foi encenada em Portugal por Alexandre Pieroni Calado.
Procura-se aqui reconstituir fragmentos de conversas entre Anabela Mendes e Pedro Alves ao longo dos ensaios, que têm decorrido desde junho de 2023.
© Catarina Lobo
Anabela Mendes conta-nos que este texto foi escrito entre 2012 e 2015 em reação a uma notícia que a autora austríaca escutou na rádio. Tinham chegado à cidade de Viena, a 24 de novembro de 2012, cerca de 100 refugiados, requerentes de asilo, de várias nacionalidades – sírios, afegãos, paquistaneses, marroquinos, iemenitas etc. -, vindos da igreja de Trais, no distrito de Baden. Depois de 35 km de caminho, parte desse grupo instala-se no parque Sigmund Freud. A 28 de dezembro, o acampamento temporário no parque é desmantelado por polícias armados. A congregação da Igreja Votiva recebe no interior do seu edifício cerca de 40 pessoas. A 3 de Março de 2013, 25 dos requerentes de asilo são transferidos da Igreja Votiva para o mosteiro dos Servitas. Este caso desperta um grande debate na sociedade, ganhando contornos de caso político.
Em reação a esta notícia, Jelinek senta-se ao computador e começa a escrever, freneticamente. A peça “Os Protegidos” foi publicada no site da autora, numa primeira versão, em 14 de junho de 2013, sendo, posteriormente, expandida com a adição de quatro apêndices – traduzidos, igualmente, por Anabela Mendes, mas que não integrarão o texto final desta nova produção do teatromosca. Anabela Mendes sintetiza assim a questão fundamental da obra: “Elfriede Jelinek mostra ao espetador o que se verifica entre refugiados e os outros que são privilegiados.” O encenador Pedro Alves completa: “O fosso é brutal. Uns não têm nada, nem dignidade humana, são tratados como lixo, porcaria. Outros têm tudo. Sejam eles empresas, empresários, grandes corporações, políticos, homens de negócios, estrelas, tanto faz, como tantas vezes é dito no texto.”
Anabela Mendes nota a expansão do assunto de “Os Protegidos” em direção a outros tempos e temas da História, permitindo lançar um olhar, crítico e arrasador, mesmo, sobre processos corruptores de que se servem aqueles que detém o Poder, fazendo uso da sua influência junto de outros, e a fim de alcançarem benefícios que, de outro modo, não teriam. Através da sua escrita avassaladora, Jelinek aplica golpes certeiros e perturbadores. Fala-nos daqueles que têm a sorte – fruto de jogos sujos e nada transparentes – de ter casas nos mais abastados locais, que obtém nacionalidades de forma instantânea, que atravessam fronteiras sem qualquer oposição, por oposição àqueles que são barrados, enxotados, expulsos, apagados da face do planeta. Aí assume especial destaque a figura do antigo presidente russo Boris Yeltsin e das suas duas filhas e o facto de uma delas ter sido “naturalizada num ápice” como cidadã austríaca, no mesmo momento em que um grupo de muitos grupos de refugiados morriam afogados no Mar Mediterrâneo ou eram expulsos da Áustria – ou de muitos outros países onde tinham procurado proteção.
© Catarina Lobo
O texto e o espetáculo colocam o acento tónico no modo como temos edificado sociedades cada vez mais desumanizadas, onde às pessoas é atribuído valor segundo lógicas capitalistas e mercantilistas, onde os seres humanos não passam de mercadoria negociável, quantificável e, no seu exemplo mais extremo, descartável. E, aí, a autora lança um olhar duríssimo sobre as políticas de emigração europeias e o modo como são acolhidos (ou, melhor/pior, não são acolhidos!) os que procuram refúgio, aqueles que se encontram em situação de indescritível fragilidade. Não foi em tempos a Europa um exemplo no acolhimento de pessoas em fuga, como (d)escreve Ésquilo no antigo clássico “As Suplicantes”? De notar a inversão de sentido no título adotado por Jelinek em relação à peça deste autor grego, que, em inúmeras ocasiões, é citada, direta ou indiretamente em “Os Protegidos”.
“Este é um texto invulgar”, afirma a tradutora. Trata-se, efetivamente, de um texto, invulgarmente, extenso, tendo em conta o que podemos entender como um padrão no Teatro contemporâneo, onde se convoca uma polifonia de vozes. Obra literária de grande fôlego, pontuada de referências que vão oscilando entre a cultura popular (pop) e outras citações (arriscaríamos dizer) eruditas, referentes às culturas clássicas, ou com longas tiradas filosóficas, extremamente, imbricadas. No entanto, na maior parte do tempo, a linguagem utilizada e a forma como se vai organizando o discurso (circular e repetitiva, com ideias que se vão repetindo uma e outra vez), pode-se assumir que este não é um texto de difícil entendimento. Infelizmente, as situações são-nos familiares há milénios, conhecemos bem o que vai sendo exposto, aquilo de que nos fala a autora austríaca, inevitavelmente, assistimos através dos órgãos de comunicação social a casos semelhantes (ou ainda mais horrendos). Contudo Jelinek urde a tessitura textual de um modo sofisticado e complexo, arremessando na direção do leitor/espetador, um conjunto impressionante de nomes, lugares, ações e situações, num discurso que poderíamos descrever como cáustico e martirizante. Anabela Mendes acrescenta ainda: “Jelinek joga com contrastes conducentes ao humor, contrariamente aos austríacos que não têm humor. Mas o texto não tem sempre o mesmo registo.”
© Catarina Lobo
“A obra segue uma estrutura musical”, afirma Anabela Mendes. Constrói-se uma partitura cénica, convocando inúmeras vozes e adotando distintas perspetivas, num ritmo, quase sempre, vertiginoso, numa orquestração textual que é um resultado evidente da longa e exigente formação musical da autora. Esse caráter musical do texto escrito em alemão representou um enorme desafio para a tradutora.
Claro exemplo do que poderia encaixar no que alguns designam por Teatro Pós-Dramático, seguindo as definições avançadas, inicialmente, pelo teórico alemão Hans Thies-Lehmann, o texto de Jelinek não comporta figuras dramáticas ou personagens, suportando-se na polifonia e na coralidade, escapando-se aos diálogos ou aos monólogos, privilegiando, em seu lugar, a dispersão, a explosão, a sobreposição e a justaposição. De igual modo, o texto não apresenta qualquer tipo de indicação cénica e nem procura situar a ação ou representar qualquer espaço concreto.
© Catarina Lobo
O critério de divisão do texto pelos 4 atores que compõem o elenco, passou pela intuição do encenador depois de ter ouvido, muitas vezes, a leitura feita pelos atores, enquanto ia percebendo o potencial que essa mesma divisão permitia no estabelecimento de comunicação entre os atores e aqueles que os escutam.
Diz-se então aqui que existem vozes, não personagens, tanto no texto, como no espetáculo, à medida que o discurso vai sendo articulado para fora, na direção dos espetadores, que adquirem estatuto de atores, de interventores, políticos ou deuses, como tantas vezes são apelidados na peça. O encenador e codiretor artístico do teatromosca afirma: “Este é um texto performático, para ser lido em voz alta. O tempo do texto é o agora. Tem uma certa visceralidade, um lado selvagem e incontrolado.”
A forma de Jelinek tratar tudo aquilo que é convocado no texto é irreverente e perturbadora. Apesar de viver uma vida de quase reclusão - a autora sofre de agorafobia, passando por isso muito tempo em casa -, não desiste de escrever e cumprir a sua militância e ativismo, trabalhando, incessantemente, e publicando no seu website incontáveis textos de teatro, romances e ensaios. Escrevendo despudoradamente e livre de floreados, podíamos dizer que, ao contrário do que vai prevalecendo nos dias de hoje, governados por publicações online de curta duração e limadas para obter gostos e partilhas entre “amigos”, a autora austríaca escreve sem filtros. Ao mesmo tempo que aposta num rigoroso depuramento da linguagem e na sofisticação da escrita, a autora vai deixando que o texto seja infe(s)tado por palavras e expressões mais ou menos coloquiais e retiradas de discursos não artísticos, revelando-nos, por exemplo, uma imagem demolidora da Áustria como um país atormentado por inúmeros fantasmas do seu passado. Na opinião do encenador, “os austríacos têm guardadas nas suas caves muitos assuntos mal resolvidos”, relembrando os vários casos tornados públicos nos últimos anos de austríacos que mantinham em cativeiro outras pessoas nas suas caves.
“As figuras nomeadas neste texto representam um estado vivencial comum ao ser humano”, lembra-nos Anabela Mendes. A deslocação (forçada) de seres humanos é um fenómeno constante e global. A situação e visão europeia (e ocidental) esconde, ignora e apaga mesmo outras realidades de pessoas em fuga a partir das mais distintas geografias. Como afirma a tradutora, “na verdade, nós somos poupados à brutalidade destas experiências, apesar de tudo. E quando as notícias nos chegam, já são matérias editadas, não sabemos, realmente, o que são as experiências destas pessoas”, o que poderá levar a uma reflexão mais aturadas sobre o modo como os órgãos de comunicação social abordam o que designamos como “as crises dos refugiados”.
“A autora está focada naqueles que não têm voz ou que têm as suas vozes abafadas, seres destituídos de coisas fundamentais, como o nome e não ter nome é não existir”, diz Pedro Alves. “Estes seres podem ser vistos como morto-vivos, como zombies, tal como, em mais do que uma ocasião, é referido no texto de Jelinek”. No final, ouve-se: “Vivemos, mas não estamos de todo aqui”. Depois das terríveis viagens, por mar e terra, e após os tortuosos processos de regularização da sua situação, estas vozes não chegaram a lado nenhum. Estão em trânsito constante. Mesmo depois da situação regularizada num país de acolhimento, muitos são aqueles que continuam com o sentimento de serem refugiados, como se esta condição ficasse tatuada para sempre no seu corpo, como se tivessem sido contagiados por uma peste que com eles restará e que poderá infetar qualquer um que, involuntariamente, deles se afastará, como se se afastassem de um ser pestilento.
© Catarina Lobo
A estrutura do texto, circular e repetitiva, pretende, propositadamente, provocar cansaço no leitor/espetador, ao mesmo tempo que procura retratar as histórias de pessoas cansadas por anos e anos, por incontáveis situações em que foram maltratadas. Estão desgastadas, permanentemente ameaçadas e são dominadas por uma certa urgência em falar, contar aquilo que passaram, a tragédia que os atingiu. Pedro Alves elucida que, “no início, o público não tem possibilidade de se relacionar hermenêuticamente com o texto. O espetador é bombardeado com este texto e não consegue ficar instalado a apreciar o momento. A escrita de Jelinek mergulha o espetador numa tal torrente de palavras que o deixa sem fôlego. A primeira intenção da autora é irritar, provocar o espetador, desestabilizá-lo, combater a apatia”. O encenador continua por afirmar que “o próprio volume do texto é, de certa forma, reflexo do desejo selvático de Jelinek em querer escrever muito, quase como desabafar, tagarelar, para massacrar o espetador, quase como se fosse possível transmitir todo o caos, todo o horror em que estas pessoas estão mergulhadas através do ruído, de uma torrente incontrolada e avassaladora de palavras, e ao mesmo tempo como um palimpsesto, escrevendo-se e rescrevendo-se.”
A presença dos quatro atores – Filipe Araújo, Rafael Barreto, João Pedro Leal e Rita Morais -, o dizer do texto, o movimento, a música e a paisagem sonora original construída e interpretada ao vivo pela violinista Maria da Rocha, concorrem para a construção de um lugar de urgência.
A cenografia do espetáculo, da autoria de Pedro Silva, coloca em palco um espaço delimitado por um chão pintado à mão, que, ora faz lembrar o mármore de uma igreja, ora nos remete para o imenso mar que, tanto poderá significar a via de acesso a um destino feliz ou mais um cemitério de gente. Deste chão, sagrado e mundano, irrompe uma estrutura vertical repleta de vegetação natural, de onde sobressaem verdes exuberantes e que dá origem a um gotejar permanente durante toda a performance, e que é iluminado pelo desenho de luz concebido por Carlos Arroja. Os figurinos são assinados por Catarina Graça e partem do mesmo modelo-base de vestido para todos os intérpretes, com cortes e rasgões diferenciados, que acabarão por sofrer uma alteração cromática ao longo de cada performance.
A antestreia de “Os Protegidos” aconteceu no dia 11 de novembro no Auditório Gustavo Freire, em Lugo, na Galiza. O espetáculo será apresentado no AMAS – Auditório Municipal António Silva, de 23 de novembro a 2 de dezembro, de quinta a sábado, às 21h00. No dia 25 de novembro, o espetáculo será, igualmente, transmitido em direto através da plataforma BOL. Mais informações em www.teatromosca.com.
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Anabela Mendes (1951) é germanista e professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. A partir de 2018 tornou-se investigadora independente. Desenvolve a sua atividade científica e ensaística nas áreas dos Estudos de Expressão Alemã, Estética e Filosofia da Arte, Ciência e Arte, Teoria e Dramaturgia Radiofónica, Artes Performativas, Viagens de Longo Curso. Trabalhou como tradutora e dramaturgista com Luís Miguel Cintra, Ricardo Pais, João Brites, Rogério de Carvalho, Sandra Hung, entre outros. Como tradutora, dramaturgista e encenadora destaca os projetos O Contrabaixo de Patrick Süsskind, ACARTE, 1989; No Alvo de Thomas Bernhard, leitura encenada com os atores Eunice Muñoz, João Perry e Lúcia Maria, TNDMII, 1990; Noite e o Som Amarelo de Wassily Kandinsky, CCB, Pequeno Auditório, 2003. Tem uma extensa obra publicada.
Maria Carneiro (1988) licenciada em Estudos Artísticos variante Artes do Espetáculo pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, estagiou no The Centre for Performance Research. Concluiu o Mestrado em Teatro – Encenação, Produção na Escola Superior Artística do Porto. Foi assistente de encenação de Kirsten Delholm na companhia Hotel Pro Forma. Entre 2016 e 2022 foi coordenadora de produção do Teatro da Trindade INATEL, e assessora da direção, a partir de 2019. Em 2019 completou o Master of Management in International Arts Management. Desde 2014 colabora com o teatromosca em diferentes funções.
Pedro Alves (1979) cofundador e codiretor artístico do teatromosca, onde tem desempenhado funções de ator, encenador e produtor. Licenciado em Estudos Artísticos, na variante de Artes do Espetáculo, e Mestre em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Colaborou companhias de dança na função de dramaturgista e na direção artística. No teatromosca, dirigiu, mais recentemente, os espetáculos “Moby-Dick”, “O Som e a Fúria”, “Fahrenheit 451”, “Kif-Kif” e o projeto “MODOS DE VER”, “Ned Kelly”, vencedor do Prémio Autores para Melhor Trabalho Cenográfico da SPA – Sociedade Portuguesa de Autores, e nomeado como Melhor Texto Português Representado. Em 2021 escreveu e encenou o espetáculo “Maridos” a partir do filme “Husbands” de John Cassavetes.