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Inaugurada no Museu de Serralves, a exposição Francis Alys: Ricochetes, a primeira grande mostra do artista belga em Portugal, apresenta-nos a mais ambiciosa obra do seu corpo de trabalho: a série de vídeos Children’s Games (1999-presente), que em breve incluirá dois jogos portugueses, o jogo do pau ensebado e o jogo da corda, filmados numa escola em Avintes.
Arquitecto e urbanista de formação, aspeto que se revela na cuidada cenografia e desenho expositivo da mostra, a descoberta e aprendizagem artística de Francis Alys (1959) emergem da vida e das suas experiências no México onde reside desde 1986, tendo o contacto com diferentes ações sido fundamentais para o entendimento de que, mais do que a criação/produção de objetos, a arte é sobre a ideia de ação e o ato performativo de fazer [1], princípio fundamental que define o cerne da sua prática artística e que se revela essencial para a leitura e entendimento de Ricochetes.
Vista da exposição ‘Francis Alÿs. Ricochetes’, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto. © Filipe Braga
Organizada pelo Barbican Center em Londres e com curadoria de Florence Ostende, a mostra individual do artista em Serralves foca-se no projeto que Alys tem vindo a desenvolver, desde a década de 90, sobre jogos tradicionais infantis de diferentes partes do mundo, desde as Américas, Europa, Médio Oriente e África. Às imagens em movimento da série Children’s Games, acrescem-se trabalhos de pintura e de animação, num corpo de trabalho que integra diferentes meios.
Dividindo-se em dois momentos distintos, que acompanham a arquitetura do espaço do Museu de Serralves a exposição apresenta-nos, qual preâmbulo a Children’s Games, a pintura Untitled, 2016, onde um conjunto de pequenos olhos de diferentes formatos e cores, nos observam sobre um fundo dourado. Realizada e inspirada por uma fotografia que o artista registou num campo de refugiados no Iraque a crianças que olhavam para a sua câmara, Alys oferece-nos uma pintura só com os seus olhares rodeados por folhas de ouro. À medida que observamos a pintura somos confrontados com o nosso próprio reflexo, num jogo de trocas de olhares que acompanha e celebra a exposição - ver crianças brincar ao mesmo tempo que somos observados por elas - e a ideia de migração de movimento de ricochete – jogo infantil que dá título à mostra – que (re)descobrimos na pintura e nos olhos destas crianças.
Vista da exposição ‘Francis Alÿs. Ricochetes’, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto. © Filipe Braga
O primeiro momento expositivo, lança-nos numa experiência imersiva proporcionada pela cenografia do espaço, desde a baixa iluminação ao som elevado de crianças a brincar, cujos gritos, cantorias e interjeições se entrecruzam num mesmo momento. Deixamo-nos conduzir pelos seus risos infantis em imagens coloridas e vibrantes que se exibem em ecrãs grandiosos, que percorremos e contornamos como se estivéssemos num verdadeiro recreio. Filmados em vinte e cinco países, os vídeos conduzem-nos por uma viajem no tempo e no espaço - de Hong Kong, ao Afeganistão, passando por Londres ou Marrocos – e em todos reconhecemos a universalidade e a ingenuidade dos jogos infantis. Quais metáforas da sociedade pela óptica das crianças que nos levam a repensar a nossa relação com o espaço público e a cidade, os jogos em exibição caraterizam-se pela extrema simplicidade e por ocorrerem na rua, recorrendo as crianças ao ambiente e espaço urbano, enquanto instrumentos, para a concepção das regras das suas brincadeiras. Não obstante os momentos de felicidade pueril captados e retratados na série Children’s Games, muitos dos jogos foram filmados em zonas de conflito e de agitação social, durante eventos marcantes da história recente: desde a guerra no Afeganistão à pandemia covid-19, dando-nos o artista, nas palavras da curadora, uma visão desses gestos marginalizados na nossa esfera pública, bem como a responsabilidade psicológica de olharmos para essas crianças.
Entre o jogo da macaca, o saltar à corda, o salto ao eixo, corridas de caracóis ou atirar bolas de neve, observamos a perigosidade de alguns dos jogos como Conkers, comumente jogado no Reino Unido com castanhas até ser banido da maioria das escolas no início dos anos 2000, ou Chapitas, jogo cubano em que tampas espalmadas de garrafas que giram em cordas tornam-se tão cortantes como facas. Ainda referente a Cuba, vemos as emocionantes corridas de chivichanas nas ruas de Havana, em que as crianças conduzem carros-brinquedos improvisados, curvando e descendo ladeiras a grande velocidade.
Acompanhando, por vezes, o passo acelerado de corrida das crianças, os diversos vídeos que compõem Children’s Games revelam-nos, entre planos apertados e outros mais abertos, interessantes pontos de vista da câmara de Alys, de que é exemplo Musical Chair (2012), vídeo em que o jogo da dança das cadeiras é filmado e apresentado a partir de cima, num único plano aéreo. As imagens dos vídeos, bastante objetivas, assumem um caráter de documentário conforme testemunha Papalote (2011), filmado no Afeganistão onde uma criança de dez anos lança o seu papagaio de papel, num jogo constante de força e domínio do vento, ao mesmo tempo que ouvimos o som de um helicóptero que se aproxima, sobrevoando o céu, num momento que é também de resistência face ao estado político Taliban que proibiu o lançamento de pipas. É nesta diálogo e dualidade constantes, entre inocência e violência, que reside a importância e o impacto artístico de Children’s Games, cuja leveza e crueza das imagens se estendem por toda a mostra, refletindo-se nas várias pinturas a óleo que pontuam o espaço expositivo. De pequenas dimensões, como postais, baseadas em memórias do artista quando regressa das suas viagens, estas pinturas à semelhança dos vídeos, com os quais se exibem pela primeira vez, alternam entre cenas calmas e violentas, num jogo de contrastes a que Alys já nos habitou, de que é exemplo a pintura que retrata a narco-violência da cidade Juárez, no México, e cuja localização próxima ao vídeo Musical Chair, filmado no mesmo país, não é inocente.
Na segunda sala, de cenografia idêntica à da primeira com a instalação multiecrã, deixamo-nos conduzir pela sensação de intimidade de um jogo com laranjas; pelos movimentos hipnóticos de meninos congueses que, de pés descalços no chão térreo, rodopiam sem parar; pelo saltitar da menina que evita as ranhuras das ruas de Hong Kong. Entre jogos universais, visionamos Imbu (2021), filmado na República Democrática do Congo, que nos revela um grupo de crianças que, com as suas vozes, atraem mosquitos portadores da malária para depois os apanharem com as suas mãos, numa brincadeira que é ao mesmo tempo um ato de sobrevivência.
Vista da exposição ‘Francis Alÿs. Ricochetes’, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto. © Filipe Braga
Filmados recentemente na Ucrânia, dando-nos conta da situação guerra que se vive no país e de como as crianças se adaptam a esse novo contexto trazendo-o para as suas brincadeiras, destacamos Parol e Sirene, ambos de 2023. No primeiro vídeo, várias crianças ucranianas imitam sirenes - o som que ouvem quando têm de se esconder em bunkers – numa brincadeira que já faz parte da aplicação de jogos air raid alert; no segundo vídeo, no check point de uma estrada ucraniana, três rapazes fardados e com armas de madeira, tentam descobrir espiões russos, inspecionando carros, solicitando identificações aos condutores e exigindo a senha “Palyanitsya”, nome de um pão tradicional ucraniano que os russos não conseguem pronunciar corretamente. Próximo, na parede, a pequena pintura de uma cratera causada por uma bomba russa em Kiev revela-nos, no seu interior, crianças que brincam e a usam para praticar slide.
Isolado numa sala, Chalk (2024) apresenta-nos um jogo solitário em que crianças - algumas das quais com problemas físicos e psicológicos - desenham com giz no asfalto, deixando-nos a sua marca num gesto intenso e profundo, numa peça comovente que filmada a preto e branco, é uma homenagem de Alys à fotógrafa Helen Levitt.
Na passagem do primeiro momento expositivo para o segundo, destaque para a beleza poética da obra de animação Untilted (2024) um par de pés que, no topo da escadaria que conduz à segunda galeria, balançam no escuro como se pendessem de uma cama, ao som de uma canção de embalar. Desenhado e animado a preto e branco, este movimento repetitivo, que pertence a todos os países, evoca na sua simplicidade a memória de qualquer infância.
No último piso, mais reflexivo, Francis Alys apresenta-nos um outro lado dos jogos infantis através de uma extensa cronologia, que percorre séculos e continentes, sobre o legado e a história dos jogos para crianças e que implicou um trabalho arquivístico e de pesquisa de antigos desenhos e pinturas, conforme testemunha a mais antiga prova e memória de um jogo do Iraque.
Numa sala isolada, assistimos na escuridão a um ato de resistência extraordinário de crianças em Haram Footbball (2017), filmado em Mossul, no Iraque, onde um grupo de adolescentes recorre ao simulacro e à invisibilidade ao jogar futebol sem bola, desporto proibido e banido pelo Estado Islâmico. Aparentemente inocentes, as imagens do jogo adquirem uma dimensão política e ativista ao serem acompanhadas por legendas que nos informam da execução pública levada a cabo por um pelotão de fuzilamento, do grupo jihadista Estado Islâmico, a treze adolescentes numa rua de Mossul, por assistirem na televisão a uma partida entre o Iraque e a Jordânia.
Vista da exposição ‘Francis Alÿs. Ricochetes’, Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto. © Filipe Braga
A encerrar a exposição um espaço interativo, como uma sala de jogos, convida o público – crianças e adultos incluídos - a participar e a ativar o corpo de trabalho de Francis Alys e a temática da exposição. Entrega-se a ação nas mãos do espectador, que é incentivado a brincar com a sua sombra e a projetá-la nas paredes criando formas e animais, para que experiencie a energia e a consciência coletiva dos jogos infantis.
Por fim, qual epílogo a Ricochetes, destacamos a pequena pintura que em exibição num canto da sala, nos impele a que nos aproximemos para vermos a cena representada: um menino num bosque, cujo corpo encostado a uma árvore, de rosto escondido e de olhos fechados, joga às escondidas, como que nos convidando a participar da brincadeira.
...5, 4, 3, 2, 1, prontos ou não aqui vou eu!
Mafalda Teixeira
Mestre em História de Arte, Património e Cultura Visual pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, estagiou e trabalhou no departamento de Exposições Temporárias do Museu d’Art Contemporani de Barcelona. Durante o mestrado realiza um estágio curricular na área de produção da Galeria Municipal do Porto. Atualmente dedica-se à investigação no âmbito da História da Arte Moderna e Contemporânea, e à publicação de artigos científicos.
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Notas
[1] A este propósito destaquemos uma das suas primeiras intervenções-chave, Paradox of Praxis (Sometimes Making Something Leads to Nothing), de 1997, em que empurrou um bloco de gelo pelas ruas da Cidade do México durante nove horas, até que derretesse por completo no chão.