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© Jorge Gonçalves
Uma família disfuncional, mas unida em torno da sua matriarca, a figura da Avó, faz os possíveis para sobreviver num ambiente sufocante, marcado pelo abuso (emocional, sexual e de substâncias), pela escassez económica, pela manipulação e pelos segredos mantidos através de três gerações. Em palco, um elenco equilibrado oferece-nos a dura realidade dos Coleman - uma família criada pelo dramaturgo argentino Cláudio Tolcachir -, sob a forma de uma comédia negra. Este espectáculo (que estará em cena até 27 de Maio) acontece num espaço cénico concentracionário, organizado em altura, e que é, também, um espaço produtor de som, características que os Artistas Unidos ainda não tinham explorado na casa onde trabalham desde 2011.
Fomos ao Teatro da Politécnica falar com Pedro Carraca, o encenador de A Omissão da Família Coleman, que nos falou sobre a família, no geral, e sobre os Coleman em particular, mas também sobre a construção do espectáculo no contexto de um seminário e as expectativas da companhia em relação a um teatro que possam reclamar como seu e onde possam trabalhar com a estabilidade que merecem. Falou-se, ainda, sobre os desafios que se avizinham, e para os quais, assegurou-nos, se sentem completamente preparados.
Por Eunice Tudela de Azevedo
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Este espectáculo estreou em 2005 e a Timbre4, a companhia do dramaturgo Cláudio Tolcachir, correu mundo com ele até há bem pouco tempo, se não estou em erro. O que vos levou à escolha deste texto, agora?
O que me levou a escolher este texto tem cinco anos. Foi quando dirigi a leitura encenada com o Nuno Gonçalo Rodrigues. Nessa altura, nós quisemos muito fazer o espectáculo, mas tivemos uma forte oposição da parte do Jorge, que adora o texto – adorava o texto, mas tinha visto o original e achava que nós nunca faríamos tão bem e, portanto, disse: ‘enquanto eu estiver vivo, não tenho interesse em fazer este texto’. Porquê agora? Porque, infelizmente, o Jorge já não está vivo e nós nunca perdemos a esperança de o fazer. Também por termos passado por este confinamento. Embora o texto não tenha sido escrito a pensar no confinamento, trata realmente de uma família confinada em casa, com medo do exterior. Houve uma parte minha que, durante a pandemia, se lembrou bastante deste texto e desta loucura toda fechada, mas ao mesmo tempo a tentar sair. Eles saem de casa, sim, e nós não saíamos. Fazíamos festas via chamada de vídeo com outras casas, mas era uma loucura também. Foi essa a primeira coisa que me chamou a atenção. Além do mais, é também uma tentativa de prova de vitalidade nossa aqui dentro da casa, ao tentar fazer textos que tenham elencos maiores; não só fora, mas também dentro do nosso espaço.
Realizaram o seminário Dúvidas em torno da encenação deste texto. Porquê? Como correu? É diferente encenar um espectáculo acompanhado de um seminário de encenação? Trouxe alguma coisa inesperada ao espectáculo?
Nós, na verdade, dentro dos Artistas Unidos, já tínhamos feito esta experiência duas ou três vezes. Temos, também, a questão da formação nos concursos da DGArtes que nos levou a pensar como é que podemos dar uma formação, mas que seja virada para os objectos artísticos que estamos a fazer e não uma formação de escola; não somos uma escola, somos uma companhia de teatro. Eu tenho sempre um problema quando faço as peças: embora eu tenha uma ideia bastante clara do que é que eu quero ver realçado no texto, não tenho ideia nenhuma de como é que o vou fazer. Vai surgindo. Achei que o mais interessante seria, realmente, convidar pessoas para discutirem comigo, ao longo do tempo [de ensaios], as minhas várias opções. Podendo pôr em causa tudo. É óbvio que, de certa maneira, é quase uma maldade para os actores. Aliás, a primeira vez que a Raquel [Montenegro] ensaiou - que é uma actriz com um bocadinho menos experiência do que os outros – tinha vinte e cinco pessoas a assistir. Portanto, tremia-lhe a voz... Via-se que estava longe de estar segura e como os outros todos já estavam em ensaios há sete ou oito dias, foi a pessoa que eu estive a corrigir em frente aos outros vinte e cinco. Com alguma parcimónia, porque não quero que pareça bullying, mas ela era a pessoa que necessitava ser trabalhada. Uma das condições do seminário era: aquilo que for preciso fazer para o espectáculo faz-se, independentemente de ser um dia de seminaristas ou não. Depois, correu muito bem. Eu acho que conseguimos fazer com que as pessoas se sentissem parte do processo. Tentei ter bastante escuta àquilo que me foram dizendo e funcionou também como laboratório de experiências: ‘Será que esta cena funcionaria para o público? Deixa lá ver qual é a reacção deles na próxima sessão de seminário’. Serviu, por exemplo, para me aperceber, que havia duas personagens que eu achava que estavam a fazer muito bem, mas que me pareceram um bocadinho apagadas: a Gabi e o Damian. Quando acabou o seminário das nove primeiras cenas, ninguém me falou dessas personagens. Quando lhes perguntei sobre a Gabi e o Damian disseram apenas que estavam bem. E eu pensei: ok, tenho que descobrir formas de evidenciar mais estes dois actores, porque não me interessa nada ter um elenco em que há um personagem maravilhoso e não se fala dos outros. Interessa-me que tenham todos uma força parecida em cena. As pessoas [do seminário] também serviram para isso; para eu entender onde é que ia falhando ou onde é que poderia não estar a ver bem. Acho que os seminaristas se sentiram integrados, também, porque houve várias discussões que se traduziram em mudanças na peça. A ideia do som veio de uma seminarista e foi, depois, passada ao André [Pires], a quem agradou muito e que a transformou. O final da peça vem de uma seminarista, que disse, numa altura em que o Vicente [Wallenstein] acendia um fósforo sem ser no fim, [sussurra]: ‘Para mim, era assim.’ E eu disse: ‘E vai ser.’ Eu já tinha pensado que podia ser um bom fim, mas haver logo uma pessoa a dizer isso dá-me exactamente a confirmação de que estou a pensar bem. Não sou o único; não é uma loucura. Às vezes, eu insisto em coisas em que sou o único... Mas a maior parte das vezes tento ter escuta, porque o que nós estamos a fazer, na verdade, é para as pessoas. Portanto, se eu sinto que aquilo influencia as pessoas de uma determinada maneira, eu prefiro aproveitar e ir. Depois, se calhar, transformar um bocadinho. Foi uma experiência muito engraçada, também, para as pessoas entenderem que o encenador tem que dar a ideia de que não tem dúvidas. Tem duas ou três, mas são muito poucas, porque se os actores sentem muita insegurança da parte do encenador, por norma, não lhe dão tanto crédito quando ele pede uma coisa. Portanto, é um processo engraçado de abrir as fragilidades a vinte e cinco pessoas, tentando, ao mesmo tempo, passar segurança às oito que estão em palco. É um equilíbrio difícil, mas que eu acho que traz benefícios, inclusivamente à forma de raciocinar. Achei muito engraçado isso e deu-me a sensação que eles também gostaram, mas isso têm que lhes perguntar a eles [risos].
A família Coleman reúne nela, ainda que de uma forma extremada, características que todos nós conseguimos identificar, de alguma maneira, nas nossas famílias, nas famílias dos nossos amigos ou nas que vamos conhecendo ao longo da vida: abandono, doença mental, abuso emocional, abuso sexual, manipulação, a questão da inversão dos papéis entre pais e filhos, etc. Este espectáculo confronta-nos, de forma crua, com a instituição. Como é que tu olhas para ela; para a família?
A família é aquela coisa que nos traz imensas dores de cabeça e que é culpada de imenso dos nossos males, mas que nós, ao mesmo tempo, não deixamos de querer bem. Sendo que, no meu caso pessoal, é engraçado... Porque a família, conforme vai envelhecendo, vai resolvendo um bocado os seus problemas. Ganham uma paz; uma tranquilidade da idade. Também é verdade que isto significa que as famílias estão a ficar mais pequenas e que os mais novos são menos e, portanto, os problemas não se perpetuam da mesma maneira. Eu tinha uma família muito maluca: uma tia que andou a roubar bancos para movimentos de extrema-esquerda; um avô morto pela PIDE; o secretário particular do Champallimaud, tudo a viver na mesma casa... Pronto, era uma família muito maluca; problemas de álcool, grandes confusões... Olha, eu, por exemplo, disse aos meus pais durante vários anos para se separarem. Eles chegaram a uma altura em que encontraram um entendimento e eu pensei: ‘Olha, eles tiveram razão’, o que me tira um bocadinho o tapete. Porque nós, às vezes, temos certezas muito fortes que depois... Lá está, as pessoas é que sabem das suas vidas, não é? Acho que esta família [Coleman], tem um problema que é ter uma avó que é maravilhosa, mas que, ao mesmo tempo, – e acho que ela se apercebe disso a determinado momento da peça – à força de querer cuidar e proteger a família e de a manter, não lhe permitiu ganhar maturidade suficiente para viver sozinha. Eu acho que ela, quando se apercebe que vai morrer, apercebe-se, também, que, quando entrou no último terço da sua vida, devia ter-se retirado, lentamente, de um centro, para dar lugar aos outros. E não se retirou. Continuou a ser o centro. De repente, vem a morte, e já não pode resolver o problema. Não tenho dúvidas que é uma família em que gostam, à mesma, uns dos outros. Aqueles dois gémeos adoram-se um ao outro. O Marito [Vicente Wallenstein] gosta imenso dos irmãos... Simplesmente, não têm a maturidade para viver esse amor de uma forma plena e saudável. E têm um outro problema: a sobrevivência. Têm que decidir num segundo o que é que vão fazer.
Como eu disse uma vez ao meu pai há muitos anos, quando ele disse que achava que tinha falhado enquanto pai - não falhou nada; é uma estupidez. Mas se calhar nós todos, quando somos pais, depois, pensamos isso. Não há nenhum livro que nos ensine a ser pais ou avós. Portanto, desde que a gente sinta que as pessoas estão a fazer o melhor que podem... Há famílias que são mais bem sucedidas e outras que são mais mal sucedidas, sendo que eu acho que as mais mal sucedidas são mais prolíferas. Agora, também é uma discussão: o que é que é ser bem ou mal sucedido enquanto família.
Também poderá haver um peso grande em termos sócio-económicos, como há nesta família, não?
Sim, sim. Eu acho que há, mas eu lembro-me de alguns sítios onde andei, que... A falta de dinheiro obriga à união, também. Aquela coisa de ter muitos filhos, para que possam ir cuidando uns dos outros e ir entrando dinheiro na casa... Quando a coisa funciona bem – embora seja uma forma que não tem nada a ver com aquela a que nós estamos habituados – aí, realmente, os mais velhos vão educando; vão passando a pasta, a coisa vai-se dando, também, de uma forma muito engraçada.
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Este espetáculo, apesar de ser um espetáculo duro, tem momentos de humor em que ficamos um pouco desarmados, porque não conseguimos não rir, como no momento em que cantam os parabéns à avó no meio de uma emergência de saúde. Como é que se encontra esse equilíbrio a construir o espectáculo? O texto sugere-o, de facto, pela via do absurdo, mas julgo que tenha de haver um trabalho em cima dessa sugestão.
Eu acho que há dois problemas com humor neste texto: um é conseguires descobri-lo de uma forma não caricatural. É muito fácil algumas das personagens resvalarem para a caricatura. De vez em quando acontece e é preciso estar sempre a chamar à atenção de que o Marito não é só um miúdo com um possível atraso mental; a Memé não é só uma inconsciente; a Avó não é só uma velha autoritária e amorosa... Há ali um equilíbrio de procurar a comédia; uma comédia que tem sempre que ter por base um lado humano de relação. O outro problema é procurar demasiada comédia. É muito fácil transformar este espectáculo num espectáculo só cómico e iria funcionar maravilhosamente do início ao fim, mas não é o espectáculo. É um equilíbrio difícil, porque os actores ouvem as gargalhadas, mas não ouvem a dor que o espectador pode estar a sentir. Portanto, muitas vezes avaliam a sua própria prestação pelo número de gargalhadas que estão a ter em determinada parte. Por isso, quando não há gargalhadas muitos pensam que estão a fazer mal. Então, puxa aqui um bocadinho mais; dá mais um esgar de sorriso naquela pausa ou comenta mais a acção do outro. Embora me interesse muito esta ideia do rir a chorar... Eu tenho dado como exemplo o filme Underground do [Emir] Kusturica, em que eles estão fechados no bunker. Sempre em festa, mas a chorar, com pena dos seus compatriotas, que lá estão em cima a morrer, enquanto eles produzem balas para uma guerra que já não existe. Embora possa ser realmente muito cómico, tem que ser uma comicidade muito bem estudada, porque se a gente perde o lado humano, se a gente sente que as coisas não são importantes para estas pessoas e que são só leves e cómicas, a história dissipa-se. Ontem, por exemplo, aconteceu isso na primeira parte do espectáculo. Eles já não o faziam há três dias e quiseram dar energia, então fizeram a primeira parte muito rápida e acabámos por sentir que aquelas coisas não são importantes para as pessoas. E se não são importantes para as pessoas... É divertido, mas não é muito interessante.
Continuando nesta temática das sugestões que o texto dá: eu fiquei com a sensação que decidiram insistir num tópico difícil – o do abuso de uma pessoa que aparenta ter algum tipo de perturbação mental ou cognitiva, o Marito, pela própria mãe – indo para além do que o texto nos oferece. Porquê?
Aí é um bocadinho do Feio, Porcos e Maus, não é? Uma das coisas de que eu me apercebi, – inclusivamente a falar com jornalistas e com outras pessoas que vieram assistir a peça – é que, com a primeira leitura desta peça, nós ficamos com uma ideia muito concreta sobre cada personagem. Conforme a vamos trabalhando, vamo-nos apercebendo que estávamos completamente errados. Será que aquele motorista é um motorista ou é o amante?
E será que os filhos da Verónica são do Patrício? Porque se a Verónica se pode deitar com o motorista ou se se pode deitar com o médico... Será a Verónica a personagem mais parecida com a mãe? Ou seja, conforme a peça vai andando, nós vamo-nos apercebendo de uma data de coisas que podem não ser como nós achamos. Achei que devia realçar dois ou três aspectos que fossem mais evidentes para mim, para alertar as pessoas de que podem haver outros. Nós nunca demonstramos realmente, não é, mas aquilo que se cheira na relação entre eles [Marito e Memé] pareceu-me um bom sítio para apontar e dizer: ‘olhem bem para o que estão a ver, porque as coisas não são só o que são ditas’. Portanto, tenham atenção a este pormenor, tal como terão que ter atenção a outros que nós não realçamos tanto. Por exemplo, a discussão entre a Verónica e o Marito sobre as crianças terem ou não ido ao parque. A Verónica diz no texto que é mentira, mas a Raquel representa o contrário. Dizem-lhe que foram ao parque, mas ela escolhe mentir. Onde é que está a verdade? Nós não sabemos. Isto acontece no texto todo. Quando pensamos nas omissões, que são exactamente as pequenas coisas que não são ditas ao longo do texto todo, pensamos nesta forma muito dúbia de podermos olhar para todas as realidades que vão sendo faladas, mas que não têm que ser conforme nos são ditas.
O elenco, bastante equilibrado, é feito de várias gerações. Como é trabalhar com gerações diferentes? Cada uma tem os seus próprios desafios ou é um aspecto irrelevante?
São muito diferentes. Dá-me um retorno a mim e às pessoas que estão a fazer o espectáculo muito maior, porque dá-se uma troca de influências muito grande. Os mais novos têm aquela coisa do ‘eu tenho que sentir’. Estes, mesmo assim, não são dos mais hardcore nessa linha, mas é a coisa de ‘eu só digo a frase quando a sentir’. Os mais velhos estão mais na linha de fazer o público sentir. Mesmo que não o sintam, o público tem de sentir. Isto implica, às vezes, noções de tempo e formas de falar muito diferentes. Os mais novos falam de uma maneira mais rápida, como eu estou a falar agora. [Prolongando o discurso] Já os mais velhos prolongam as vogais; não têm problemas nenhuns em fazê-lo. Eu lembro-me de estar a discutir com a Raquel e pedir-lhe para prolongar a vogal numa frase e ela dizer-me que assim não estaria a ser concreta, como eu normalmente peço. E é uma coisa que eu peço sempre: uma carcaça é uma carcaça. Não é uma carcaaaaaçaaa... É uma carcaça, pronto. Há coisas que são para serem ditas como elas são. Não vale a pena estarmos a deixar as frases abertas. Normalmente, gosto que as coisas sejam ditas com informação clara, mas a gente vê o Américo [Silva] entrar e abrir a porta e dizer ‘Com licença...’ Só com esta primeira frase do Américo, os seminaristas escangalharam-se à gargalhada. Chama-se técnica. Ele tem duas palavrinhas e é uma entrada por uma porta. Com isto consegue meter as vinte e cinco pessoas do seminário a sorrir ou a rir. Porquê? Porque ele estica aquilo. Aproveita. Olha à volta. Esse confronto em que uns e outros se apercebem... Os mais novos apercebem-se das armas que os mais velhos têm e começam a compreender que a técnica também serve para nos servir. Os mais velhos vão sendo refrescados pela irreverência dos mais novos em determinadas ocasiões. Vão-se influenciando num casamento que eu acho produtivo e ao qual é bonito de assistir. É veres como a Antónia [Terrinha], com aquela escola toda de composição de personagem, em que qualquer frase parece assentar-lhe como se tivesse nascido nela, vai de repente apanhar o olhar do Marito e então começa a fazer uns olhares iguais, porque já está a estabelecer um jogo que ele criou. É das coisas que mais me agrada, e que acho que mais nos faz crescer a nós aqui enquanto intérpretes ,– a mim inclusive, mesmo estando de fora, porque vou aprendendo com aquilo que estou a ver – esta mistura; esta forma de ir infectando os outros com maneiras diferentes de fazer. Acho que é mesmo engraçado.
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O espectáculo tem pouco mais de duas horas e um intervalo. Não é uma opção muito comum. Achas que o público já não é capaz de aguentar o tempo normal de um espectáculo dentro de uma sala?
Eu podia dizer que as nossas cadeiras não são confortáveis para as pessoas estarem sentadas duas horas – o que é uma verdade –, mas não foi por isso. Quando nós fazíamos os ensaios corridos, os actores saíam de tal forma cansados do ritmo da primeira parte, que entravam na segunda parte completamente errados. Quando nós começávamos os ensaios pela segunda parte, corria bem. Eu comecei a aperceber-me, ao ir fazendo experiências, que, se eles parassem cinco a dez minutos, entre partes, faziam a segunda parte muito melhor do que quando fazíamos um ensaio corrido. Eu ainda insisti em fazer corridos, mas depois apercebi-me que o grau de qualidade baixava tanto para o segundo acto que só me restava inventar um intervalo. Durante o intervalo continuam a acontecer acções – é uma espécie de falso intervalo –, mas serve principalmente para fazer um reboot na cabeça dos actores, para que entrem na segunda parte de uma maneira diferente. É mesmo uma questão prática. É muito engraçado, porque nós trabalhámos primeiro a primeira parte, depois a segunda, e eu normalmente tento não fazer a peça seguida. Faço primeiro o segundo acto e depois o primeiro, para os actores não se habituarem e começarem a banalizar processos. Quando a gente fazia primeiro a segunda parte e depois a primeira, a segunda estava ótima; maravilhosa. Quando trocava, era uma diferença nítida. Ficávamos aqui na mesa com um ar muito aborrecido. Eu até acho que a segunda parte funciona melhor para o público, do ponto de vista de ritmo, do que a primeira. Mas era um aborrecimento. Eles estavam mesmo em esforço, a tentar puxar os coelhos da cartola, e tu só os vias a falhar. Com dez minutos: entram outra vez no sítio.
Não há didascálias muito precisas no texto de Tolcachir no que concerne ao espaço, mas houve, julgo, uma considerável atenção ao detalhe na construção de um espaço para esta família Coleman, evidenciada por elementos como aquela pequena mancha de humidade junto ao chão da casa. Este espaço, não só caracteriza bem a condição sócio-económica da família e o contexto concentracionário em que vive, como também traz grande dinamismo ao espectáculo e até cria um ambiente sonoro. Como é que foi o processo para encontrar este lugar, tão diferente daquele apresentado pela Timbre4?
A primeira coisa que eu pedi à Rita [Lopes Alves], – que eu gostava, mas não ficou – foi que a casa fosse em altura, para ser muito pequena e o hospital muito grande. Ela gostou da ideia da casa em altura e começámos a desenvolvê-la, embora ela estivesse um bocadinho receosa, porque a Rita não é uma pessoa que costuma trabalhar ferro. Ela queria fazer em altura com madeira, mas opus-me, porque, primeiro é mais prático o ferro, se assumirmos realmente o andaime. Depois, é muito mais barato. Além disso, há uma textura de pobreza no ferro, que é muito diferente da madeira. Ia parecer uma casa IKEA norueguesa. Sendo que ela gostava mais do ferro, mas tinha medo de trabalhar com um material que não conhecia tão bem. Havia, também, a ideia – não sei porquê – das cordas de roupa. O que me lembro, quando andava na Cova da Moura, era de ver estendais de roupa pendurados de uma casa à outra. Sempre associei famílias mais numerosas e pobres às cordas de roupa. A Rita gostou muito da ideia, mas não sabia ainda bem como é que as havia de usar. Como também havia outra questão, que era como é que criamos dois espaços que são completamente distintos num palco tão pequenino. Ainda pensámos em fazer a casa na sala principal [Sala Musset] e o hospital na outra sala, mas isso traria um problema: como é que faríamos a cena do fim com o Marito? Teríamos de obrigar o público a ir de volta para a primeira sala para ver dois minutos de espectáculo. Então, começámos a pensar na divisão do espaço e achámos que poderíamos aproveitar esta questão das cordas para criar uma camada que não fosse só um pano preto. Uma camada mais orgânica e que pertencesse à própria vida da casa e que entrasse na cena em si. A Rita é muito boa a compor estas coisas pequeninas, que dão alguns sinais, mas que também não são realistas. A casa de banho, na verdade, tem um chuveiro feito com umas cortinas. A cozinha tem mais coisas, mas porque ela começou a perceber que os actores mandavam tudo para todo o lado.
Talvez o quarto da Gabi seja o mais composto, mas, na verdade, o que nós nos lembramos do quarto dela é da máquina de costura.
Quer dizer, a Gabi parece-me a pessoa mais composta naquela casa, portanto, também faz sentido.
É a pessoa mais composta, sim. Aliás, também já pensámos se a Gabi e a Verónica não são duas faces da mesma moeda, em casas diferentes. Tanto os seminaristas, como o André, repararam – porque tínhamos começado a ensaiar com o nosso andaime antigo, de afinação de luzes –, que todo o cenário fazia imenso barulho. Partiu-se daí para aproveitar o barulho do cenário e das cordas, amplificando-o e transformando-o noutra coisa. A Rita depois achou que era preciso um corredorzinho à esquerda, porque há uma série de quartos que não são vistos. É uma coisa engraçada, porque é uma casa pobre e pequena, mas que tem imensos quartos. Há ali uma certa contradição e nós não os queríamos mostrar todos. Isso levou-nos a escolher os que entravam mais na acção e esconder os outros nesse corredor. Esse corredor permitiu-nos, depois, jogar com a luz do Pedro [Domingos] ao fazer a evocação da avó morta e tentar ali algumas brincadeiras. Mas a existência desse corredor obrigou todo o cenário a ir mais para a direita e, devido àquela linha perpendicular que atravessa o espaço, tornou o hospital muito mais pequeno do que inicialmente pensámos. Isso já foi uma adaptação à ideia por força das circunstâncias, mas achámos que o corredor era realmente necessário. Confesso que a gente teve algumas variações de cenário. Tínhamos, por exemplo, um outro andaime atrás daquele, à esquerda, que sugeria uma espécie de skyline e que dava a entender que havia mais casas. As cordas finais que atravessam a cena toda do lado esquerdo foram postas no penúltimo dia, porque a Rita é uma pessoa que gosta de economia no espaço e eu sou mais sujo. Ela esteve sempre a tentar jogar entre esta minha vontade de sujar e aquilo que ela acha que pode ser excessivo. Fomos negociando; ficaram as cordas, saiu o andaime. Ela foi tentando, também, utilizar o próprio espaço da Politécnica – que eu acho que ainda não tinha sido usado em altura – de maneiras a que não estamos muito habituados. Só temos mais um ano para estar aqui, portanto ou as fazemos agora ou então já não as podemos fazer. As coisas também vão surgindo, não é? Conforme as necessidades de cada um, vão surgindo mais coisas. Não havia o cadeirão da avó no início. E Antónia disse-me: ‘Então, mas a dona da casa não tem uma cadeira só para ela? Os velhotes têm sempre uma cadeira, de onde é mais fácil levantar’. Passados dois dias, a Rita já tinha trazido uma. O sofá grande já foi utilizado para aí em quinze peças; o cadeirão nunca tinha entrado em nenhuma e são os dois do mesmo conjunto. Finalmente ganhou o seu lugar em palco, para a avó ter um cadeirão. Depois, decidimos que o pátio era a parte de trás do público, para onde eles vão a correr. Havia a questão do pátio estar bastante presente no texto e eu não sabia bem como havia de a resolver, portanto, muitas vezes dissimulei-o e só naquele momento é que faço imaginar que há um outro espaço.
Acabaste de dizer que só têm mais um ano aqui. Isso vai de encontro à última questão que tinha preparado para esta entrevista, mas que agora aproveito para antecipar: para quando uma casa para os Artistas Unidos?
Nós estamos neste momento a negociar A Capital com a Câmara Municipal de Lisboa. Há várias questões dentro do projecto que nos foi apresentado, que têm que ser revistas para entendermos se tem condições suficientes para nos receber; se é só um túnel ou se tem o tecto muito baixo. Continuamos a aguardar agora, da parte deles, uma resposta sobre as alterações que propusemos.
Isso deve ser um processo muito demorado...
Muito lento, sim. Eu acho que, se a gente tiver casa, é lá para o Verão de 2025 ou Janeiro de 2026.
E, no entretanto, o que é que pensam fazer?
No entretanto, estamos a tentar descobrir alternativas. Ainda sem certeza nenhuma, mas temos tido realmente o interesse da Câmara, que agora tem que se traduzir em apoio.
A Omissão da Família Coleman vai estar em cena no Teatro da Politécnica até 27 de Maio. E depois, o que vem?
A seguir vem um espetáculo que é o Adam. Vai ser encenado pelo Nuno Gonçalo Rodrigues e pela Andreia Bento. É um espectáculo sobre a vida do Adam, que é um transexual; sobre o seu percurso no Egipto e a forma como foi lidando com essa transformação. Vai ser um tema polémico e com muitas questões. De qualquer maneira, nós estamos em contacto com as várias associações. O elenco não é cisgénero; parte da equipa de criação também. E são todos pagos – só para responder a algumas perguntas que vêm da internet e que põem isso em causa – como qualquer actor profissional ou criativo que trabalhe connosco. É uma peça que já há dois ou três anos que estava na manga da parte da Andreia – e ela agora voltou a trabalhar connosco – e convidou o Nuno. Interessa-nos também esta coisa de... OK, somos Artistas Unidos, então, porquê sempre só dois a encenar? Porque não o Nuno Gonçalo Rodrigues? Porque não a Andreia Bento? Porque não a Inês Pereira, que é presença regular? Estamos exactamente a tentar fazer isso: a tentar abrir, para as pessoas da casa, as portas a iniciativas que tenham. A Andreia foi sócia da companhia durante vinte anos, tem exactamente a mesma experiência que nós [Pedro Carraca e António Simão] e não fazia sentido nenhum estar num sítio diferente do ponto de vista da encenação.
E estão preparados para um público mais conservador demonstrar algum descontentamento com este espectáculo que aí vem?
Eu acho que estamos preparados tanto para o público mais conservador não apreciar muito, como para o público mais progressista e preconceituoso também não apreciar muito. Aqui a grande questão é que aquilo que aconteceu no São Luiz – bem ou mal – chamou a atenção para um problema que é haver realmente uma discriminação em relação a alguns actores. Mais do que estarmos a discutir isso, o que nos interessa é agir. Agir e arranjar forma de abrir espaço para que essas pessoas também possam trabalhar, criando condições para isso. É o que nós estamos a tentar fazer. É óbvio que irão haver sempre pessoas que não vão gostar e que vão mandar vir. Paciência. Quer dizer, este espectáculo vai dar imensas dores de cabeça, mas as pessoas que estão à frente do projecto são capazes. As pessoas que estão dentro do projecto estão interessadas. A gente tem falado com as várias comunidades na tentativa de estabelecer um consenso no tratamento do tema e estamos de consciência tranquila. Achamos que não é por haver polémica que devemos esconder-nos e deixar que passe a funcionar ao contrário e dizer que estas pessoas agora não vão trabalhar, porque se tem medo de pegar no tema. Não. Estas pessoas têm direito a trabalhar e queremos criar essas condições.
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EUNICE TUDELA DE AZEVEDO é doutorada em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi bolseira de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia. É membro da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, do Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa e integra o conselho editorial da revista Sinais de Cena.
PEDRO CARRACA trabalhou com António Feio, Clara Andermatt, Luís Miguel Cintra, João Brites, Diogo Dória e Maria do Céu Guerra. Integra os Artistas Unidos desde 1996. Integra a coordenação artística dos Artistas Unidos, tendo participado recentemente em A Coragem da Minha Mãe de George Tabori (2020), Birdland de Simon Stephens (2021), Lua Amarela de David Greig (2021), Taco a Taco de Kieran Hurley e Gary McNair (2022), Terra de Ninguém de Harold Pinter (2022), Proximidade de Arne Lygre (2022) e A Omissão da Família Coleman de Claudio Tolcachir (2023).
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© Jorge Gonçalves
A OMISSÃO DA FAMÍLIA COLEMAN de Claudio Tolcachir
Tradução Rita Bueno Maia | Com Américo Silva, Ana Castro, Antónia Terrinha, Hélder Braz, Nídia Roque, Nuno Gonçalo Rodrigues, Raquel Montenegro e Vicente Wallenstein | Cenografia e Figurinos Rita Lopes Alves | Construção e montagem Francisco Silva | Luz Pedro Domingos | Montagem Flávio Martins | Som André Pires | Operação Lucas Domingos | Direcção de cena Helder Bráz | Apoio Hospital Garcia de Orta | Assistente de encenação Inês Pereira, com o apoio de Carla Madeira, Gonçalo Silva, Rafael Arnault e Rodrigo Leite | Encenação Pedro Carraca
No Teatro da Politécnica de 27 de Abril a 27 de Maio,
3ª a 5ª às 19h00 | 6ª às 21h00 | Sáb. às 16h00 e às 21h00, [M12]
AVÓ Não estejas tão zangado, é a tua família, é assim. Que hás-de fazer?
Claudio Tolcachir, A Omissão da Família Coleman
Uma família à beira da dissolução, vivendo juntos numa casa. A difícil construção de espaços pessoais e o complexo conciliar dos espaços partilhados, tão presente na nossa memória pelo confinamento que nos fechou com aqueles que connosco dividem a casa. Uma coexistência impossível num ambiente de caos e privação. A omissão é a regra que rege as relações familiares, até que um acontecimento inesperado obriga a família a confrontar-se com uma nova realidade. A Omissão da Família Coleman é uma comédia dramática que explora com humor e sensibilidade o absurdo da vida quotidiana e o desamparo humano.
Pedro Carraca