ARTES PERFORMATIVAS
PORÉM AINDA. SOBRE QUASE UM PRAZER DE GONÇALO DUARTE
CATARINA REAL
2022-09-07
Quase um prazer @Stolen Books
Quase Um Prazer, de Gonçalo Duarte, é um livro que reúne uma selecção de desenhos realizados no rescaldo da agitação pandémica e que ao longo do tempo foram acumulados em pilhas. Desenhados originalmente a acrílico são atravessados por perigos e ruínas dos quais podemos depreender episódios breves de uma funesta visão sobre o mundo.
Lançado pela Stolen Books, no ainda-estranho ano de 2022.
de resto...
Quase Um Prazer é construído da mesma maneira que um outro artista, francês, dizia fascinado quanto a um outro artista elaborador de romances: juntam-se desenhos e decide-se que é um livro. Isto quer dizer que qualquer momento — o narrativo, o narrativo ilustrado, ou aquele que se remete a um mutismo qualquer — pode ser reunido com outros, parentes ou dissemelhantes, e assim contar histórias, várias, e variadas. Isto é uma liberdade; um livro não é construído, constrói-se.
Quase um prazer @Stolen Books
Se o marco pandémico lhes poderá, a estes desenhos reunidos em livro por Gonçalo Duarte, dar um tom de desconfiança — ou desesperança? — para com o mundo, que nos terá tocado a todos, pode-se também ver que a emoção comum já lá estava mesmo antes de ser partilhada. Chamar-lhe-ei desilusão sem horizonte, que não será o mesmo que uma visão depressiva ou afundada de mundo, mas antes o marasmo em que qualquer movimento parece ficar condenado aos mesmos resultados. Não fossem as três cores da risografia em que acabou por ser impresso, ter-lhe-ia tanto receio como aos mais certeiros aforismos de Cioran. É que a consciência da ruína que nos circunscreve e o perigo que ela mesma é para as ilusões que vamos fundando para suportar o peso (ou o aborrecimento) do mundo é de um veneno lento, muito mais eficaz, do que o da víbora cornuda ou dos rastejantes patetas.
Um livro cheio de contradições, como um comentário documental ao mundo, cheio de peso que se tenta aligeirar pela cor, e com desenhos repletos de verdade. Bem, da verdade que está à mão de cada um de nós e que não poderá inevitavelmente estar longe das pontas soltas, estratégias e desenlaces que são incompreensíveis. Sentidos, nem sempre consentidos, então repletos de verdade. Pontualmente marcados por uma ou outra mentira que pareceu permitir ao autor que a ainda-ideia de livro se mantivesse. Atenção, que a mentira cheira-se. Possibilidades novas também, mas para tal a linha de visão baixa ainda não é suficiente. Livros, desenhos, mantemos o vocabulário.
Os movimentos de transformação das imagens são lascivos o suficiente para a brutalidade de determinados cortes nos trazer de volta — consecutivamente deixamos de ser enganados, para voltarmos a ser enganados. Isto podia, em análise, justificar o título. Contudo, é como se este ainda-não de prazer pleno fosse um teasing bem encaixado: promissor e cheio de tesão. Ou sou só eu?
De resto, podemos contar com tudo o que constitui o universo de Duarte, formas autofágicas, dubiamente prenhes, que luzem representações proto-humanas, sombras que continuamente procuram a dissolução do indivíduo que anda à rasca (...à rasquinha!) ou ao seu pacato descanso, perseguições, ataques, cobras cínicas, um ou outro indivíduo desapossado ou injustiçado, qualquer palermice para aliviar o peso, rotundas, vilezas, mesquinhas conexões e uma tremenda e vigorosa desilusão que toma as mais variadas formas; o sufoco, o anseio, os pesadelos, as insónias. Enfim, o fim do sonho, mas algumas flores. Tudo colorido, e terminado a lágrimas.
Quase um prazer @Stolen Books
Catarina Real (Barcelos, 1992) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica nos campos expandidos da pintura, escrita e coreografia; maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica.
Gonçalo Duarte (n.1990, Setúbal) vive e trabalha em Lisboa. Tem bandas desenhadas publicadas em cinco antologias editadas pela Chili Com Carne, numa antologia da G. Floy/ComicHeart e numa antologia da letã kuš!. É guitarrista em Equations e Live Low e impressor em serigrafia na Oficina Loba.
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"Roubar um livro é uma ofensa elegante", como diz um ditado chinês de origem desconhecida.
A Stolen Books é uma editora independente que edita, produz e publica múltiplos de livros de artista em edição limitada.
Trabalhando com nomes consagrados ao lado de novos e futuros talentos, a Stolen Books reproduz projetos visuais, propositadamente concebidas para o formato de livro. Assim, estas publicações visam reduzir o desfasamento entre a visão dos artistas – que trabalham nas fronteiras entre as artes visuais, cinema, vídeo, fotografia, design, publicidade, música – e a do público.
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