No que consiste uma etapa sucessora de um processo de análise da memória e afirmação da identidade sempre conduzida pela máxima “my life is my art, my art is my life”, em cadeia com a publicação em 2017 da admirada autobiografia Art Sex Music, a britânica Christine Carol Newby, ou aliás, Cosey Fanni Tutti, a icónica e multifacetada personalidade que, atravessando décadas desde os anos ‘60, tão controversa quão incontornavelmente critica o materialismo e o consumismo em criações e práticas avant-garde da performance, happening, dança, improvisação, literatura, artes plásticas e música, entre outras, e onde cabe ainda a sua participação na indústria do sexo enquanto intervenção artística onde questões de poder e género emergem evidentes, com presenças temporárias um pouco por todo o mundo, Lisboa incluída, e representação permanente na Tate Collection, disponibiliza não faz mais que um punhado de dias, em 9 de Fevereiro, Tutti, o seu segundo álbum a solo, distante do inaugural Time to Tell por uns meros trinta e seis anos impregnados por frontalidade, polémica e genuinidade e impelidos pelo seu imparável ímpeto criativo e criador.
Entre aquele e este – no que à produção musical diz respeito, mas haveria que contar as histórias das outras, variadas, infinitas expressões e aparições artísticas –, o extenso período intervalar é um mero equívoco. Intenso, sim, o produto sonoro gerado em criações colectivas com outros colaboradores traduzidos em projectos como COUM, Throbbing Gristle ou Chris & Cosey.
Em 2019 e em Tutti, Tutti desnuda-se da palavra, em contraste com Time to Tell. Porém, como há que sempre considerar no caso, a aparência ilude. As experiências conceptuais e emocionais criadas por esta manifestação sonora que se dilui por entre, ou que dilui, o ambient, o techno, o new age, o industrial, o drone, tão adequado à introspecção de um processo meditativo quanto à explosão de um delírio rave, encapsulam a afirmação da globalidade da sua vida e do seu ser em que o ontem, hoje, alimenta um amanhã que, inevitável e irrevogavelmente, será nada menos que a metamorfose de tudo o que não espera ou planeia. Um auto-retrato.
Em contraste, ou expansão de música, o termo produto sonoro parece adequado. A música de Cosey Fanni Tutti adere bem mais à experiência e cultura do som enquanto reflexão, análise crítica, representação, significação de múltiplos fenómenos culturais.
Enquanto suporte sonoro ao filme autobiográfico produzido enquanto escrevia Art Sex Music, Tutti afirma-se, portanto, como bem mais que um álbum de música. Antes, como o convite a conhecer ou revisitar uma vida e uma personalidade diferenciadas que, disponíveis para se expressarem e oferecerem ao mundo, ou incapazes de não o fazer, se assinalam na admiração confortável ou no desconforto estimulante de uma vida peculiar e relevante.
Tutti tracklist
1. Tutti
2. Drone
3. Moe
4. Sophic Ripple
5. Split
6. Heliy
7. En
8. Orenda