Finalmente. A verdade é que desde alguns concertos em 2010, fortuitos mas felizes, que não foram acompanhados por um registo material, era pacientemente aguardado o objecto que emprestasse forma à substância do projecto Lights on Moscow. Com expectativa, adiante-se, depois de experimentadas em simultâneo a serena intensidade e a intensa serenidade que coabitam paradoxalmente em “Lord Let Me Know”.
Inserida por um anónimo, porém agora inacessível, a faixa vagueou na imaterialidade da www (apesar de já desactivada, sabe-se lá por que algoritmos cibernéticos ou por que argumentos autorais), acompanhada por uma imagem estática sabiamente seleccionada de entre a pintura neorrenascentista inglesa do séc. XIX, a da interpretação da shakesperiana Ophelia por John Everett Millais. Enquadrada por flora natural vivaz e selvagem à semelhança do estilo picturesque de jardim e paisagem britânicos da época, Millais representa a perturbada e perturbante Ophelia depois de cair no ribeiro, ainda segurando e rodeada pelas flores que colhia para adornar a sua grinalda, flutuando no seu traje alvo, mas encharcado, ainda por um instante último prévio ao afogamento fatal.
Não será desapropriada a relação entre as sensações despertadas por “Lord Let Me Know”, a inspiração e expressão de Millais em Ophelia, e a convivência dual dos conceitos estéticos à data recentes dos prazeres emocionais colhidos na experiência do belo e, em expansão antagónica mas frutífera, do sublime que, por exemplo e entre outros, recuperando o conceito de picturesque, as cenas trágicas de paisagens impiedosas e tumultuosas da pintura inglesa inspiraram. Por um lado, a melancolia da natureza shoegaze rock da faixa induz não a celebração de um mundo exterior mas antes a instrospecção numa dimensão íntima e a contemplação, ou a desnudada confrontação, das incertezas, angústias, vulnerabilidades e inseguranças que, não poucas vezes, a assaltam. Por outro lado, a perturbação encontra consolo e refúgio na atmosfera sonora da macieza poética e angélica dos vocais celestiais de Hazel Wilde e da instrumentação progressive rock de Justin Lockey que apresenta a quietude do órgão eléctrico etéreo e compassivo mas acumula texturas e espessuras consecutivas de bateria, tamborim, baixo, guitarra eléctrica e alguma electrónica e efeitos de reverb, engrandecendo e culminando na catarse do complexo de emoções opostas em que o sublime encontra o belo.
“Lord Let Me Know” abre brilhantemente o EP Aorta Songs Part I que Lights on Moscow finalmente lançou em Outubro passado. Enquanto envolvidos nos seus outros projectos – Wilde em Lanterns on the Lake (inclui uma breve referência a Lights on Moscow) e Lockey nos Editors, entre outros – a dupla manteve apenas uma discreta presença online acompanhada por alguns concertos já distantes no tempo, enquanto em privado os anos foram forjando as faixas que compõem o EP, e outras, até chegado o momento certo para a edição. “Like Lovers Often Will” segue a mesma receita emocional envolvente e progressiva, desde uma delicadeza imaterial até uma intensidade mais poderosa.
Memoráveis são também “I Must Come Clean” e “Spirits Around My Bed”, com instrumentação significativamente mais retraída. Numa, limitada à guitarra que, algo áspera, acompanhada por presenças fugazes de tamborim, abre espaços encolhidos onde Wilde parece confessar as suas fragilidades mais profundas. Noutra, encerrando o EP bem antes do que o desejado, a comovente delicadeza do piano ilumina e acolhe a tristeza rendida dos vocais, perpetuando o magnetismo do EP bem além da sua curta duração.
Entre as elegantes instrumentações e o magnetismo dos vocais, Aorta Songs Part I destaca-se brilhantemente por proporcionar um conjunto de viagens emocionais de beleza mesmo quando, e principalmente porque, esta é encontrada também na tristeza. Uma pancada irrecusável.
Aorta Songs Part I tracklist
1. Lord Let Me Know
2. I Must Come Clean
3. Like Lovers Often Will
4. Spirits Around My Bed