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Yoko Ono, a Japa ou a bruxa má que dividiu os Beatles ("Yes I’m a witch", 2007), se dermos voz às más línguas, regressou em Setembro do ano passado, aos 77 anos de idade, pela mão de Sean Lennon, seu filho e produtor, com um belíssimo álbum de rock vanguardista e uma panóplia de sonoridades funk blitzkrieg, death metal, electropop, punk cabaret, mélodie, e alguns desvios operáticos no seu tom arty muito particular, digno da maior unanimidade da crítica inglesa e norte-americana. Passando pela Rolling Stone, NME, Pitchfork, entre tantas outras publicações especializadas em rock e música, a crítica rendeu-se em elogios e desassombrada veneração a uma das mulheres mais controversas da história da música pop e da arte contemporânea, em sentido lato. Percebemos agora porque o dispépsico David Thomas, dos eternamente extintos e re-aparecidos Pére Ubu, detesta as mulheres ("Why I hate women", 2006). Não há pachorra para tanta audácia e energia criativa, não senhor.
Ao vivo na Howard Gilman Opera House, em Brooklyn, 2010
Mas vejamos melhor. Nos anos 60, ainda antes de ser a mulher de um dos músicos mais emblemáticos e mais criativos dos Beatles, John Lennon, já a artista conquistara uma posição significativa no meio artístico nova-iorquino ligado ao movimento transformador e radical de arte contemporânea Fluxus, fundado por George Maciunas, e onde colaborou com John Cage, La Monte Young, Toshi Ichiyanagi (seu primeiro marido), e conheceu em primeira mão os trabalhos de Joseph Beuys, Nam June Paik, Wolf Vostell, entre outros. O próprio Lennon afirmava que “Yoko é a artista desconhecida mais famosa do mundo”.
A sua visão plástica da arte passava não tanto pela música mas, sobretudo, pela ousadia com que manifestava as suas opções estéticas por materiais inusitados e improvisados, revestindo-os de novos significados ou questionando a sua significação usual. Os conceitos mais usados por esta nova vaga de criadores eram a “Apropriation art”, os “Found objects”, a pop art, a sound art, e um modo de desconstrução e até de destruição da arte institucional e das academias que favoreciam a pintura a as Belas Artes.
Play it by trust, 1966-1998 - Happy Birthday (75 anos)
Inspirada por esta nova onda criativa, Yoko tomou como missão reinventar a prática artística e os seus fundamentos e começou a explorar avidamente novas possibilidades para a arte em estreita relação com a vida. Um dos seus ready-made slogans era “Deixem as pessoas copiar e fotografar as vossas pinturas. Destruam os originais.” Daí as “performances pieces” e os “happennings” característicos dos anos 60 e 70, em que a artista sem sombra de pudor pisava e queimava quadros ao vivo. Yoko era, no entanto, uma figura peculiar e rara no contexto nova iorquino das artes, pois fazia aquilo que lhe apetecia e não o que a moda artística do momento ditava. O que a levou, aliàs, a recusar um convite oficial para integrar os próprios Fluxus, optando pela via independente.
Apesar disso, com o passar do tempo, tornaram-se famosas as suas performances e os seus short-filmes provocadores, pioneiros do filme de arte, onde apareciam pares de nádegas em movimento contínuo durante 80m ("Bottoms", 1966),
Yoko Ono, "Film No.4 (Bottoms)", 1966
ou pernas de diferentes origens e credos sempre a serem substituídas por outras, num vai-vém contínuo em estúdio (331 pessoas), com banda sonora das próprias vozes dos intervenientes a interrogarem-se sobre o significado da obra, do seu valor, da sua própria participação ("Up your legs forever", 70m, 1971, c/ Lennon).
Seguiram-se as performances e instalações audazes como “Cut Piece” (1964), "Play it by Trust" (1966-1998), Ceiling Painting, mais conhecida por “Yes Painting” (1966) e um trabalho extraordinário intitulado “Fly”, um duplo álbum editado em 1971, onde Yoko distribui a sua criatividade por canções proto-punk, rock, e uma vocalidade experimental que anuncia as posteriores experiências vocais de cantoras/criadoras como Meredith Monk, Joan La Barbara, Diamanda Galàs, Fátima Miranda, Ami Yoshida, entre muitas outras. O que interessa salientar é que antes da sua relação com o pai Lennon, já Yoko Ono trabalhava há muito tempo em sonoridades experimentais e arte conceptual e que só depois do seu encontro mágico e trágico com o músico inglês encontrou um parceiro à altura da sua visão metamórfica, chocante e despretenciosa, simultaneamente.
Yoko Ono: The Tate Gallery Lecture from Yoko Ono on Vimeo.
Yoko Ono: The Tate Gallery Lecture from Yoko Ono on Vimeo.
John Lennon, por sua vez, encorajou-a e inspirou-a a compôr canções em formatos musicais mais acessíveis mas igualmente poderosos e projectados na música do futuro que é a música de todos os dias. Nesta intersecção entre o popular e o erudito/experimental, entre a simplicidade e a complexidade e entre o rigor e a despreocupação, reside todo o fascínio duma dupla de fantasia que, afinal, ao pairar no ar, apenas o céu tinha como limite. E tudo isto misturado com um sentido de humor que não é ironia mas talvez, quem sabe, uma estranha forma de vida.
No video "Fly", realizado em 1974, é patente esse jogo de distanciamento auto-critico, em que uma miríade de moscas passeia voluptuosamente pelo corpo nu de uma mulher semi-adormecida durante 19 minutos. De facto, a mosca é o alter-ego de Ono, um insecto doméstico, banal, nada o impedindo de aterrar mesmo em cima do nosso nariz. Ninguém lhe presta a menor atençao, mas lá está ele sempre a zumbir aos nossos ouvidos e a esfregar as patas de contente. Foram necessárias duzentas moscas para realizar este filme e todas tiveram de ser tratadas, ou seja, anestesiadas uma por uma, porque se uma mosca faz muito barulho, imaginem duzentas! O próprio apelido da actriz principal, Virginia Lust, é sugestivo e numa nota no final do filme lê-se: “ Moscas fornecidas pela cidade de Nova Iorque”. Fly é o manifesto Anti-Dantas desta japonesa irrequieta, e não é o último. Em 2003, apaixonou-se por uma outra raça igualmente superior: as baratas, e criou uma série de instalações sob o título genérico “Odisseia de uma Barata”. De acordo com a artista: “ observando o mundo através dos olhos de uma barata ajuda-nos verdadeiramente a compreender os problemas que os humanos não podem nem devem ignorar.”
Yoko Ono, Fly, 1971
Em Between My Head and the Sky, a música de todos estes efeitos de vida e de arte está bem patente do princípio ao fim. Constituindo o mais recente album de canções da artista japonesa, reúne um conjunto de amigos e músicos fantásticos recrutados em Nova Iorque e Japão por Sean Lennon, músico e produtor do disco. Reavivando a Ono Plastic Band do negrume do esquecimento (o ultimo disco, uma compilação, Shaved Fish, foi editado em 1975), mãe e filho ressuscitaram as memórias da antiga glória da banda e incutiram-lhe um novo alento. Logo a abrir o disco a artista põe as cartas na mesa: “disseram-me que não, que não devia começar o disco com esta faixa Waiting for the D Train, pois as pessoas iriam pensar que o resto do disco era uma gritaria. E eu respondi: a isto dá-se o nome de selecção, somos nós que seleccionamos as pessoas. Se elas não quiserem ouvir o que vem a seguir, então que escolham outro album.” Um sábio conselho. Nada de meios termos, nem de maquiavelice comercial. Até já a ouço dizer: O comércio sou eu própria, nada de confusões!
De contrário, o que seria do projecto de Yoko Ono? Da artista que luta pelos direitos das mulheres, dos homosexuais, da paz no mundo, que faz o apelo ao diálogo e à não violência? Os seus discos e performances foram sempre muito pessoais, tais como os de John Lennon, e ambos foram atacados pela crítica por isso mesmo. Por dizerem aquilo que pensavam, por fazerem do mundo o seu palco — um meio de comunicação muito mais directo do que se apresentassem uma peça de teatro a falar sobre um casal estranho e a sua visão do universo. “É uma loucura pensar-se que se criarmos uma situação ficcional ela tem mais legitimidade. Nós não pensamos assim. Eu não penso isso. Eu estou ali para dar tudo por tudo!”
E o disco continua a tocar. “The Sun is Down” e “Ask the Elephant!”, são duas canções sem uma estrutura definida, como alias todas as faixas do album, mas que constituem uma estrutura livre muito própria. Não há refrões, mas uma distribuição do som e dos ritmos conduzida pela voz de Yoko. A produção brinca com a voz dela, respondendo às interjeições vocálicas com ruídos, efeitos electrónicos, ajudando a criar um ambiente surrealista, cheio de humor e fantasia. O ambiente clubbing de Sun contrasta subitamente com as guitarras e os sopros jazzy de Elephant que fazem lembrar a aparente desarticulação instrumental de uns Captain Beefheart em tom beat. A diversidade de estilos ao correr do album é surpreendente e com músicos tão magnificos que é um prazer ouvir qualquer sequência ou décima de disco. Yoko adapta-se a qualquer deles mantendo sempre a sua personalidade e a sua integridade musical e física. Porque aos 77 anos fazer coisas destas, não é brincadeira.
Seguem-se o saudoso “Memory of Footsteps” que em parceria com “I’m going away smiling” beliscam a nostalgia de um fim que embora não estando presente sempre se anuncia pela sua inevitabilidade, pelo ciclo próprio da vida e das recordações. Aqui o piano predomina, como no final do disco, conferindo um tom mais intimista à palavra e à emoção que dela emana. E depois a memória da língua japonesa, a sua articulação minimalista e dramática em Unun.To e Higa Noboru, e o raggae swingado de Hashire, Hashire.
You are Plastic Ono Band, sem dúvida. Com a voz rasgada, falada e cantada, ficam a reverberar todas as cores e todas as emoções na cabeça do ouvinte atento. Janis Joplin, famosa cantora norte-americana, afirmava que não era como aquelas meninas que se punham a cantar por cima das músicas, a trautear uns floreados, umas entoações. Ela queria romper com cada canção, entrar por ela adentro e colá-la ao próprio corpo transformando esse mesmo corpo em puro som. E essa energia perpassa por todo o trabalho de Yoko, pela excepcional empatia dos músicos e da produção deste disco. O apelo de tal fulgurante vibração é para esquecermos as convenções da linguagem que demasiadas vezes distorcem a nossa percepção. Ouça-se. Deixemo-nos flutuar. Num relance vem-me à imagem o livro Grapefruit (1964), um “event score” no espírito da “chance music” de John Cage, inspirado pela estética japonesa Haiku. Numa das acções poéticas do livro, Ono pede-nos para ouvirmos a neve, o som da neve. A neve tem som. A neve é música. Não há palavras para descrever a música da neve, o seu som, o seu sentir.
Faz uma cassete do som da neve
a cair.
Esta acção deve ser realizada à tarde.
Não ouças a cassete.
Corta-a e usa-a como fita
para atar prendas.
Faz um embrulho para oferecer, se quiseres, utilizando
o mesmo processo com um LP mole.
Nessa altura já a neve deixou de cair. É demasiado tarde para fazer a gravação.
Talvez para a próxima.
“Tape Piece III”, by Yoko Ono