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Blessed Are The Machines That Allow Us To See (2014), Performance-instalação. © Eunice Goncalves Duarte
Eunice Gonçalves Duarte é graduada em Contemporary Drama (UCD/Dublin) e doutoranda em Estudos Artísticos (FL/UC). O seu trabalho cruza as artes performativas com as artes visuais e tecnológicas. Nos últimos anos, tem-se dedicado à investigação do uso de meios tecnológicos digitais na criação artística e ao impacto das imagens de baixa frequência (low-tech) na Neuroestética. Tem apresentado trabalho artístico sobretudo na Europa, mas também nos Estados Unidos e México.
Neste momento em que se prepara para apresentar “Sufocada em Lágrimas”, no festival Temps d’Images, em Lisboa, a Artecapital aproveitou a ocasião para conversar com Eunice Gonçalves Duarte sobre a sua prática criativa e a sua relação com a performatividade da imagem e da tecnologia.
Por Liz Vahia
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LV: Quais as características da imagem low tech que te agradam tanto para desenvolveres o teu trabalho à volta de uma prática performativa que faz uso das tecnologias que produzem essas imagens?
EGD: As imagens low tech, ou de baixa frequência (como às vezes refiro), são imagens emocionais. São imagens muitas das vezes mal-enquadradas, desfocadas, com pouca ou nenhuma técnica de captação de imagem, com baixo número de pixéis, mas que têm uma capacidade de emocionar quem as olha.
Quando iniciei a trabalhar este tipo de imagens o que mais me intrigou foram as fotografias de família. Lá em casa, a minha mãe era quem fotografava os momentos familiares; ela não se importava de ter essa função, apesar do pouco conhecimento técnico. Ao revelarmos as imagens, lá apareciam uma série delas em que alguém fica de cabeça cortada no enquadramento ou só aparece metade do corpo, e no entanto, há tanto carinho em olhá-las. São péssimas esteticamente, mas falam de nós, da nossa identidade, e ligam-se à memória emocional da família e da pessoa.
De certa maneira, estas imagens são o produto da banalização dos meios tecnológicos de captação de imagem. Isso ainda se torna mais visível com as máquinas que temos à mão e que nos permitem registar em imagens o nosso dia-a-dia. Apesar das competências dessas máquinas, parece-me que, ao olhar as imagens registadas em ambiente doméstico, o mesmo sentir se mantém.
Daí que ao fazer uso destas imagens no meu trabalho também tento apelar à memória emocional que por elas é desencadeada, ligando esse sentir da emoção ao corpo e à expressão do corpo na emoção.
Outro ponto que tanto me fascina é a capacidade de estas imagens, pela sua ligação afetiva ao que é captado, possuírem em si uma competência de autenticidade.
Isso acontece precisamente porque são tecnicamente imperfeitas, não parecem querer produzir nenhum efeito para além de mostrar aquilo que lá está, como por exemplo, uma ida a um concerto, ou uma foto de alguém querido. A imagem que é mostrada é tão semelhante às fotos que estão no álbum de fotos do telemóvel ou que são partilhadas nas redes sociais, que se produz uma espécie de espelho, identificando quem olha com os conteúdos mostrado. O dispositivo que produz a imagem cria contexto para a sua existência e não deixa espaço para suspeitas no que diz respeito à sua autenticidade.
Isto é um Filme de Baixa Frequência (2017-2019), Performance-instalação. © Eunice Goncalves Duarte
LV: Há uma certa invisibilidade destas tecnologias, mas que de repente parecem florescer de potencialidades quando as vemos usadas nos teus projectos. Em “Isto é um Filme de Baixa Frequência” vemos toda uma dramaturgia a acontecer numa mesa. Como se dá esse processo criativo de junção das histórias com as imagens e a tecnologia?
EGD: Concordo que há uma invisibilidade na tecnologia que produz imagens low tech, porque são imagem muito banalizadas e de fácil reconhecimento. A grande maioria das pessoas traz no bolso o seu telemóvel e produz milhares deste tipo de imagens diariamente, sem notar que as produz.
No que acontece em Isto é um Filme de Baixa Frequência, apesar de a dramaturgia acontecer numa mesa e as imagens serem captadas e transmitidas em tempo-real, o mais frequente é o público esquecer-se dos equipamentos que estão em cena, como as câmaras e as luzes, e mergulharem nas imagens, não obstante de as manipular em frente dos seus olhos. É fascinante!
O processo de criação desta performance foi longo e lento. Foi feito em várias etapas. Iniciei a registar estórias de mulheres portuguesas que se refugiaram em países europeus. Uma das mulheres que comigo partilhou a sua estória deu-me uma fotografia do seu casamento. Era uma imagem particular que no fundo, em background, tinha o motivo principal que a levou a deixar o país. Procurei nas minhas fotos de família e, em outras que me foram doando, que elementos tinham escapado ao olho do fotografo e instalado na foto, sugando todo o protagonismo da ação e contando a estória a partir de si. Como na altura estava a fazer experiências com pequenas webcams, procurei captar esses elementos clandestinos através delas.
Ao usar estas webcams, procurava perceber como o meu corpo pode adquirir um papel imperativo na captação das imagens. Em Isto é um Filme de Baixa Frequência, por usar câmaras muito pequenas e de baixa qualidade de pixel, algumas funcionalidades só estão disponíveis se o corpo se transformar em câmara de filmar; o zoom das imagens, por exemplo, é feito com o aproximar da mão à imagem. Se estou mais tensa ou nervosa, a câmara denuncia-me ao tremer ou por não ter fluidez no travelling. Adoro isso. Adoro perceber que aquela máquina mostra não só o que está diante de si, mas deixa escapar o estado emocional de quem a manipula.
As potencialidades deste sistema são imensas e apetece muito brincar com ele. Aliás, geralmente depois de cada apresentação, convido o público a filmar com as câmaras e, na sua generalidade, divertem-se imenso. No entanto, é uma performance difícil na sua concretização. As fragilidades da técnica obrigam a uma grande exigência do meu corpo durante a sua execução, a uma precisão muito grande nas marcações e tempos de realização de cada ação.
Family affair, © Eunice Goncalves Duarte
LV: As imagens e os adereços nos teus trabalhos têm já em si uma certa performatividade, não importam tanto pelo que dão a ver (o que lá se representa), mas pelo que conseguem “criar”, que outras imagens podem engendrar. Concordas?
EGD: Sim, claro. Como dizia antes, ao mostrar uma imagem de família, como por exemplo a foto da minha avó, não é apenas a estória da minha avó que conto, é também a estória de outras avós. O tipo de imagem é imediatamente reconhecido porque o público já a viu antes, muita das vezes até na sua própria família. Dizem-me muitas vezes, “tenho uma imagem tal e qual como essa, mas da minha avó!” e depois contam-me a estória dessa avó. Essa partilha, para mim, é maravilhosa. Os objetos e imagens não são só coisas, com eles vêm estórias, emoções, sentimentos. São, de certa maneira, o motivo que leva à partilha da memória.
Além de que acredito que qualquer espaço performativo cria imagens para além da sua cenografia e adereços. Cria sobretudo ambiente e faz veicular energia de objetos e corpos.
Sufocada em lágrimas, © Eunice Goncalves Duarte
LV: Vais apresentar agora no Momento II do Temps d’Images “Sufocada em Lágrimas”, uma performance duracional que pretende aproximar-se artisticamente do drama dos incêndios florestais. É um tema que nos aflige a todos, mas sobre o qual parece que não conseguimos ter uma acção eficaz como cidadãos. Podemos esperar, na tua performance, por alguma “solução” para a nossa condição de eternos espectadores do fogo na floresta?
EGD: “Sufocada em Lágrimas” traz a proposta poética de nos juntarmos em choro e com as lágrimas apagar o fogo. No entanto, confesso, tenho uma secreta esperança de que algo mais aconteça.
Aqui nesta performance convido o público a entrar num espaço que o protegerá do fogo e, ao mesmo tempo, o mostra nos seus aspetos mais angustiantes, da luta corpo a corpo com o fogo. As imagens que são mostradas em performance foram captadas pelas próprias pessoas que combatem o fogo, e isso tem, em si, uma carga emocional intensa.
A performance acontece no interior do coreto do Jardim Henrique Lopes de Mendonça, nas Picoas. O coreto é transformado num abrigo anti-fogo e no seu interior está um espaço de partilha de emoção. É um espaço seguro para o choro.
Pode o choro ser o início da consciencialização de um problema? Podemos agir depois de chorar? Possivelmente, teremos de chorar a perda, fazer luto do que se perdeu, para que daí se passe à ação.
A minha proposta passa por trazer para primeiro plano a experiência corporal da emoção e depois perceber se há oportunidade para essa emoção se transformar em consciência, encontrando soluções práticas.
Esta performance surgiu da minha resposta emocional de ser espectadora dos incêndios; de estar em casa a assistir à violência dos fogos destruidores de 2017. Ao ver as imagens, chorava. Comigo outras pessoas choravam. Acho que o país chorou gerando uma força coletiva de choro e é a essa força coletiva que quero apelar.