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Graça P. Corrêa é investigadora no Centro de Filosofia da Ciência da Universidade de Lisboa, onde desenvolve trabalho que relaciona a estética com a filosofia e a ciência. Dirigiu o projeto de investigação pós-doc “Paisagens Transdisciplinares do Gótico”, visando um estudo teórico e sensorial-estético do legado Gótico-Romântico em diferentes media, desde a literatura, o teatro, performance, as artes plásticas, a arquitectura ou o cinema. Neste momento encontra-se a desenvolver um projeto que aborda o processo da empatia na ciência-arte-filosofia, visando promover a acção pro-social através das artes, especialmente através das tecnologias dramatúrgicas e de performance teatral.
Fez o seu doutoramento em Estudos Artísticos (Theatre and Film Studies) no Graduate Center da City University of New York, no seguimento de um Mestrado em Educação e Encenação de Teatro (Theatre Education and Directing) realizado no Emerson College em Boston. Do seu percurso académico fazem ainda parte uma licenciatura em Arquitectura e o Curso de Teatro da ESTC. Por isso não é de estranhar que a par da carreira académica seja também encenadora, dramaturga, cenógrafa e tradutora de teatro, com produções apresentadas em Portugal e nos Estados Unidos.
Recentemente lançou o livro “Gothic Theory and Aesthetics: Transdisciplinary Landscapes in Film, Theatre, Architecture and Literature”, que serviu de mote para esta conversa com a Artecapital.
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Capa do livro Gothic Theory and Aesthetics: Transdisciplinary Landscapes in Film, Theatre, Architecture and Literature. Caleidoscópio. 2021.
LV: No teu livro “Gothic Theory and Aesthetics: Transdisciplinary Landscapes in Film, Theatre, Architecture and Literature”, lançado recentemente, pretendes fazer uma abordagem ao imaginário gótico ao longo dos tempos e em variadas produções culturais. Podes dizer-nos o que caracteriza a estética gótica e que é comum a tantas disciplinas, desde a literatura, ao cinema ou à arquitectura, só para citar talvez as mais conhecidas?
GPC: O termo Gótico é de tal forma eclético que se aplica igualmente a um determinado período literário (1750-1820, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos), a estilos arquitectónicos de épocas distintas (Gótico medieval e Neo-Gótico) e a um inventário de temas e símbolos recorrentes em diferentes media, tais como os acessórios e atributos da moda gótica (cores escuras, objetos em couro e metal, cruzes, correntes, botas, etc.). O que é que caracteriza este imaginário tão alargado? Uma atração pela irreverência e “barbaridade” (daí o termo gótico aplicado à estética, que foi cunhado pelo historiador Renascentista Giorgio Vasari para desaprovar de uma arquitetura excessivamente ornamentada, nada regular nem funcional, que teria sido inventada pelos “bárbaros” Godos); um fascínio pelo que é misterioso e estranho, pelo que nos inquieta apesar de nos ser familiar (provocando um efeito “uncanny” ou “unheimlich”); uma oposição às ideias civilizacionais tradicionais, aos valores imperialistas e patriarcais. Daí a obsessão da estética gótica—na literatura, no cinema, na arquitetura, na pintura, no teatro—por espaços ambíguos e ininteligíveis tais como florestas selvagens e sombrias, castelos, ruínas, passagens subterrâneas, poços, alçapões, túneis, portas falsas, gárgulas, criptas, labirintos, espirais e escadas de caracol; por indefinições e recorrências temporais; por personagens revoltadas ou em fuga; pelo hibridismo humano-vegetal, humano-mineral e humano-animal.
Fall of House of Usher, baseado em Edgar Allan Poe, dir. Jean Epstein, 1928.
LV: Há figuras deste imaginário que, de tão disseminadas na cultura popular, já nem sabemos bem de onde vêm. Achas que é importante voltar às ideias e ao seu contexto de origem, para perceber também porque prevaleceram ao longo do tempo e porque ainda hoje continuam a povoar o que se faz em literatura ou no cinema, por exemplo?
GPC: Considero muito relevante voltar ao contexto de origem do modo Gótico-Romântico para entender como esta estética-teoria recorre ciclicamente em períodos de crise social, económica e ética, como forma de negociar alteridades: subjetiva, sexual, racial, política e de classe. O modo Gótico surge intimamente ligado ao Romantismo, é o próprio Vitor Hugo quem sugere que o Romantismo é um movimento duplo, composto por duas correntes inseparáveis, “uma que vê tudo do céu, e a outra que parte das profundezas do inferno".
O modo Gótico opõe-se ao racionalismo iluminista, é portanto obscuro, selvagem, emocional e eminentemente feminino, tanto na criação e crítica, como na recepção. Em The Art of Darkness, Ann Williams chega mesmo a afirmar que a estética gótica vem manifestar a presença perigosa e assustadora do feminino, que é a alteridade mais persistente da nossa civilização. O Gótico é também uma estética associada às revoltas sociais, às revoluções francesa e americana do final do século XVIII, de reação ao terror gerado pelo autoritarismo. Surge para nos lembrar que a tecnociência não consegue dominar definitivamente a Natureza não-humana, nem tão-pouco é capaz de explicar a existência de fenómenos paranormais ou sobrenaturais. Por isso abordo no livro a arquitetura e paisagismo neo-góticos, como por exemplo na Quinta da Regaleira em Sintra; o teatro de Percy Shelley, do Sturm und Drang de Goethe e de Schiller; a literatura de Emily Brontë e de Charlotte Brontë, os contos extraordinários de Edgar Allan Poe e também a ficção de Alexandre Herculano; o cinema de Alfred Hitchcock, Stanley Kubrick, David Lynch, Lars von Trier, Alejandro Amenábar e Guillermo del Toro.
Shadow of a Doubt, Alfred Hitchcock, 1943.
Shining, Stanley Kubrick, 1980.
LV: A relação entre humano e natureza na teoria gótico-romântica é bastante desafiadora da visão utilitarista que prevaleceu ao longo do século XX. Será que podemos tirar daí algo que nos possa ajudar a pensar hoje a nossa relação com o planeta?
GPC: Desde o seu surgimento que o modo Gótico-Romântico está associado a posturas eco-filosóficas e ético-políticas que procuram desafiar não só a interpretação teológico-clerical do cosmos e da natureza, como também o cientificismo, utilitarismo e tecnicismo da nossa civilização desde a Idade Moderna. As obras Góticas revelam um interesse pelo conhecimento “secreto” e pelas “artes secretas”, pela ciência e alquimia medievais. Embora em algumas universidades e centros de pesquisa internacionais se investiguem atualmente fenómenos tais como inteligência animal e vegetal, aparições e comunicações após a morte, experiências de quase morte (EQM/NDE), experiências fora do corpo (EFC/OBE), percepção psíquica ou extra-sensorial (PES/ESP) e outros estados alterados da consciência, estes processos continuam a ser rejeitados ou ignorados pelos guardiões da ciência oficial. A sensibilidade Gótica assinala aliás uma mudança radical na percepção da natureza não-humana. Contra o classicismo antropocêntrico, o modo Gótico retira o ser humano do centro do cosmos para o substituir pela sublimidade insondável e aterradora da Natureza. Ao revelar em obras artísticas a existência de uma materialidade não-humana, dinâmica e autopoiética, o modo Gótico sublinha valores ecocêntricos que contrastam com a atitude vigente de exploração, utilização e modificação intensiva dos recursos naturais com vista a um crescimento económico antropocêntrico aparentemente infinito.
Melancholia, Lars von Trier, 2011.
LV: Se nos reportarmos ao contexto português, que exemplos darias como paradigmas dessa estética gótica?
GPC: Segundo parece, a censura imposta por Pina Manique à publicação de romances Góticos estrangeiros na época em que primeiramente surgiram, resultou numa quase completa ausência de ficção literária portuguesa de tradição Gótica, tal como refere Maria Leonor Machado de Sousa em A Literatura Negra ou de Terror em Portugal (1978). Contudo conseguimos detetar alguns efeitos Góticos na ficção portuguesa, como por exemplo em Os Canibais de Álvaro de Carvalhal (1868), nas obras de juventude de Camilo Castelo Branco e de Eça de Queirós, em algum teatro de Almeida Garrett, em Mário de Sá-Carneiro e mais recentemente em As Núpcias de Natália Correia e na ficção de José Luís Peixoto e de Ana Teresa Pereira. No meu livro, exploro a estética gótico-romântica do romance Eurico o Presbítero de Alexandre Herculano (1844), o qual utiliza o excesso emocional e sensorial góticos para concretizar uma critica à corrupção política em Portugal e propor um retorno a noções pré-modernas de coragem, liberdade, amor e ética.
LV: Como é que te aproximaste academicamente deste tema da estética gótico-romântica?
GPC: O Romantismo é um movimento que sempre me fascinou, desde muito jovem, é uma questão intuitiva; sempre me senti atraída pela literatura, poesia, pintura, escultura, música, arquitectura e teatro românticos. Quando realizei o meu doutoramento em Nova Iorque, no Graduate Center da CUNY, acabei por escrever uma tese que abordou o movimento internacional do Simbolismo nas artes; e surpreendeu-me descobrir que o movimento Simbolista de Mallarmé se inspirou muitíssimo no pré-Romantismo alemão, bem como no Romantismo inglês da literatura gótica, da irmandade pré-Rafaelita e do Arts & Crafts Movement. Descobri igualmente que tanto o Simbolismo como o Romantismo Gótico vieram por sua vez inspirar o movimento Surrealista que surgiu nos anos 30 na França. O que mais me deslumbra nas Artes está, portanto, interligado; é como um movimento de ideias e imagens recorrentes que ora ressurgem, ora ficam adormecidas para voltar a surgir: “Ever present never twice the same”.
AUTOMATA, texto e encenação Graça Corrêa, Inimpetus 2017. Imagem cortesia Graça Corrêa.
LV: Aparte do teu trabalho de investigadora, desenvolves projectos na área do teatro. São duas actividades separadas ou há uma contaminação criativa entre os dois campos?
GPC: Começaram por ser atividades separadas mas agora estão cada vez mais próximas, são intersecionais. Quando fui convidada para o Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa pela então coordenadora do centro, Professora Olga Pombo, integrei a linha temática de Ciência e Arte, pelo que comecei a investigar as relações entre estes dois campos tão aparentemente distintos. Numa altura em que estava a estudar as implicações éticas de algumas tecnologias actuais, nomeadamente na área dos robots humanoides ou com aparência humana, dei comigo a escrever uma comédia distópica sobre um futuro próximo, que seguidamente resultou num espetáculo multimédia de enorme sucesso, “Automata”, apresentado na Inimpetus em Lisboa em 2017. Enquanto investigadora da Faculdade de Ciências da UL, encontro-me a desenvolver um projeto intitulado “Advancement of Emotional Thought and Empathy towards Otherness through Dramaturgy and Performance Technology”, o qual aborda o processo da empatia na ciência-arte-filosofia, visando promover a acção pro-social através das artes, especialmente através das tecnologias dramatúrgicas e de performance teatral. No âmbito dessa pesquisa fui dramaturga e encenadora de Beatrix Cenci, espetáculo produzido em 2021 pelo TEC-Teatro Experimental de Cascais, no qual explorei estéticas góticas e técnicas de empatia dialógica, entre actor e espetador, em relação a temas de etnia e de igualdade de género.
BEATRIX CENCI, texto e encenação de Graça Corrêa, TEC 2021. © José Teresa Marques
LV: Estás a trabalhar nalgum projecto teatral neste momento? O que vamos poder ver teu nos próximos tempos nessa área?
GPC: Estou presentemente a trabalhar num programa performativo sobre empatia ecológica através da arte, com enfoque no teatro. Será realizado no inicio de Junho de 2022 pelos alunos finalistas da Escola Profissional de Teatro de Cascais, como ponto culminante de um workshop sobre empatia, aliás candidatámo-nos à primeira edição do festival do New European Bauhaus. Também estou a escrever uma comédia: sabe bem rir, nos tempos crispados que correm.