Tal como uma obra literária ou visual, também o som e, neste caso, a música – a qual, mais a mais, contém em si mesma nas mais das vezes a vertente sonora e a vertente verbal – activa uma relação entre o sensorial e o cerebral que despoleta emoções e reflexões. “Dialectic of Ignorance”, o mais relevante e mais recente trabalho dos irmãos Carney – Van, Jennings e Lain – que, desde 2005, quando agarrados à guitarra e vocais no caso de Van, ao baixo e teclas no caso de Jennings, e à bateria no caso de Lain, formam o trio fraternal Pontiak, coloca-nos neste território bilateral por via das representações mentais para as quais nos conduz.
O oitavo longa-duração do trio, aos quais acresce uma mão cheia de EP’s, chega-nos como o envelope sugestivo de uma mensagem. As palavras de Van assim o confirmam “It’s not a political album. The message we want to get across is the importance of being present in the moment. Maybe everything is fucked. But you can do something about that.”. Desta capacidade sugestiva, um dos grandes valores do álbum enquanto gatilho da consciência crítica, surge-nos, de uma forma automaticamente instintiva, enquanto “Dialectic of Ignorance” salta de faixa em faixa, não só a representação metafórica da ordem estabelecida, como as dúvidas quanto à fragilidade dessa mesma ordem. Basta o título do álbum para nos fazer pensar “eh pá, espera aí”. Surge-nos a representação mental de uma panela de pressão que não só aparenta não estar dotada da singularidade de uma válvula de escape pela qual possa fazer aliviar a pressão acumulada como parece padecer da pluralidade de variados e dispersos pontos de pressão prestes a estoirar se uma mínima fagulha não for cautelosamente ou afortunadamente contida. É esta violência, a violência da fragilidade da estabilidade que sentimos, ou julgamos sentir no passar do dia-a-dia que vai indo, que “Dialetic of Ignorance” nos evoca.
Colocado no mercado pela norte-americana Thrill Jockey Records em 24 de Março último, mais do que cravar uma lança impetuosa sonora na superfície dos sentidos, o ambiente criado por “Dialectic of Ignorance”, e toda a sua carga musical sugestiva, infiltra-se através deles quase como que clandestinamente para atingir o seu espaço-alvo na mente. O conjunto das oito faixas – apenas as três faixas aqui apresentadas estão por enquanto disponibilizadas nos canais usuais, mas o Spotify oferece a visita, que recomendamos, às faixas “Hidden Prettiness”, “Youth and Age”, “Dirtbags” e “We’ve Fucked This Up”; no fundo, à totalidade do álbum – forma uma unidade rock sólida que, sem beliscar a sua coerência, agrega elementos psych, progressive e indie. Esta intensidade clandestina mas coerente podia ter sido o resultado eruptivo de uma qualquer sessão nocturna de intensa produção artística. Não é o caso. Trata-se do oposto, trata-se de uma produção amadurecida e fermentada com o tempo, ao longo de 2016, o que em nada diminui essa mesma intensidade. É-nos fácil imaginar os três irmãos bem encostados em cadeirões enquanto contemplam um copo da cerveja que produzem com as próprias mãos, escutando, avaliando e meditando sobre as experiências musicais do dia anterior, que provam e aprimoram até ao resultado final de “Dialectic of Ignorance”. Apesar do músculo mais vigoroso das duas últimas faixas, a estrutura musical sente-se unificada ao longo de todo o álbum e equilibra-se de faixa em faixa em combustão lenta no peso melódico cavernoso e ecoante do reverb da guitarra eléctrica, na robustez encorpada e incandescente da secção rítmica de baixo e bateria, e no torpor espacial e psicótico das harmonias vocais. O ambiente criado é notável, tão amplo quão profundo.
Velhos conhecidos de Portugal, depois de várias passagens por palcos de norte a sul para além dos álbuns anteriores, é em 2004 na cena musical de Baltimore que os três irmãos, descendentes de um ambiente familiar em que tocar e cantar são actividade diária e partilhada, começam a dar passos concretos em concertos, na edição da sua discografia produzindo trabalho sucessivo a um ritmo anual e em frequentes digressões.
“Dialectic of Ignorance” revela um mérito adicional. Será porventura o álbum mais sofisticado de Pontiak,. O garage-rock mais unidimensional e imediato, bruto e cru dos trabalhos anteriores, de que “Innocence”, de 2014, é um exemplo, é agora substituído por estas camadas melódicas mais amaciadas face ao histórico dos álbuns anteriores. Por seu lado, a voz de Van abandona a textura e o corpo terrenos anteriores e dilui-se agora em camadas mais graciosas e misteriosas, reforçando o carácter sugestivo do álbum. O mérito adicional resulta do facto deste polimento mais sofisticado em nada diminuir a intensidade sonora característica do trio. Muito pelo contrário, ao conteúdo musical, acrescenta-se agora uma carga sugestiva e interpretativa com impacto mais significativo do que em trabalhos anteriores. A intensidade mantém-se, mas chega-nos agora mais serena, mais clandestina, não só no primeiro contacto com as oito faixas do álbum mas, principalmente, nas raízes que fixa após ser escutadas mais vezes.
O redireccionamento artístico para este carácter mais introspectivo e expansivo de “Dialetics of Ignorance” será porventura reflexo da evolução pessoal dos Carney após uma década de digressões sem poiso fixo e produção quase contínua. O regresso à amplidão e tranquilidade da sua Virgínia natal, estabelecidos numa pequena comunidade rural onde, em 2015, se lançam a produzir cerveja, oferece-lhes a oportunidade de abrandar o ritmo e colocar o seu percurso em retrospectiva. Será a convergência destes factores que justifica o intervalo de tempo mais alongado que o habitual entre este álbum e os anteriores, deixando no ar a sugestão de que trabalhos futuros, quando chegarem, darão seguimento a esta nova etapa pessoal e artística que “Dialetics of Ignorance” parece simbolizar. Será, também, este carácter introspectivo e pessoal que imprime ao álbum o seu potencial sugestivo.
Em “Dialectic of Ignorance”, Pontiak inquestionavelmente dão um passo em frente. O processo criativo revela-se mais cuidado e trabalhado, e o resultado, inquestionavelmente, coloca-se em territórios que Pontiak ainda não haviam pisado. Não é apenas a experiência musical, mas também a viagem interpretativa e mental, que coloca o fiel da balança no equilíbrio certo. Agora sim, o psych-rock de Pontiak torna-se realmente tóxico e hipnótico em tudo o de bom que essa experiência proporciona. Para apreciar com o volume bem alto, em doses repetidas para deixar que o passageiro clandestino atinja o seu destino, enquanto esperamos por nova visita a palcos portugueses.
Tracklist “Dialetic of Ignorance”
1. Easy Does It
2. Ignorance Makes Me High
3. Tomorrow Is Forgetting
4. Hidden Prettiness
5. Youth and Age
6. Dirtbags
7. Herb is My Next Door Neighbour
8. We’ve Fucked This Up