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Já deveríamos saber, como discípulos perante os mestres, o que as experiências vividas e as realidades atravessadas em ocasiões passadas trataram de nos mostrar por elas mesmas, alertando-nos a nós próprios para que não cometamos sucessivamente os mesmos e repetidos equívocos e logros em que nos apercebemos cair em cada um desses episódios, despertando-nos para a necessidade de nos libertarmos das manias e dos hábitos criados por nós ou pelos outros, de nos desprendermos dos vícios e dos costumes estabelecidos pelas rotinas triviais e corriqueiras que nos fazem crer, por exemplo, que o valor artístico nasce e habita invariavelmente nos mesmos lugares estabelecidos quase dogmaticamente por nós ou por alguém, por quem habita esses mesmos lugares e que, mesmo anunciando que a fantasia acontece para lá dessas fronteiras, se revela incapaz de as questionar e valorizar o que acontece além desses limites ou receia perder a sua posição de definidor desses mesmos juízos viciados caso espreitemos além deles, e que nos tornam distraídos para o que existe nesses territórios externos aos conceitos e preconceitos instituídos, nos adormecem a mente fazendo-nos julgar que aí nada encontramos, nos anestesiam a autonomia e independência do espírito crítico e nos tornam indisponíveis para descobrir e valorizar a originalidade e criatividade dos estímulos que afinal nos é revelado aí podermos descobrir caso experimentemos quebrar e derrubar essa muralha defensiva que não nos apercebemos ser-nos tantas vezes suavemente imposta. Aliás, sabemos disso mas, por vezes, não nos lembramos, e caímos nessa armadilha que torna refém a independência da nossa capacidade individual de avaliar, de pensar, de apreciar, de dizer e, no limite, de ser.
Basta contudo que, sem planos antecipados ou critérios previamente determinados, como viajantes exploradores, deambulantes cibernautas transportados a bordo do nosso computador numa exploração musical que não esperávamos e não prevíamos, sejamos inesperadamente levados até Wodzisław Śląski, pequena cidade no sul da Silésia, província meridional da Polónia, afastados dos tradicionais polos promotores, produtores e opinantes de tanta música que nos fazem inadvertidamente crer que apenas aí iremos encontrar novos e valiosos estímulos, longe das instituídas máquinas criadoras, inspiradoras e impulsionadoras de música que reconhecemos tantas vezes de absoluto e inquestionável valor artístico e, à luz do candeeiro que ilumina a nossa prateleira de discos, outras tantas vezes nos apercebemos de duvidosa e discutível relevância musical se ouvirmos apenas a voz do nosso critério, à descoberta de Zimowa e das extraordinárias e personalizadas onze faixas originais do seu LP de estreia “Cover The Fall” lançado em 6 de Maio último pela editora local Anomalia Records e apresentado oficialmente por esta brilhante, penetrante e algo assombrosa “22”, única faixa até ao momento a ser acompanhada pelo respectivo vídeo oficial de entre a tracklist que indicamos abaixo e que nos tem mantido continuamente a carregar no gatilho do replay e, despertando-nos desse sono atordoador do julgamento próprio condicionado, fazendo-nos soltos e desprendidos de critérios alheios que não nos pertencem restritivos da capacidade de valorizar o que surge fora dos apelidados centros criativos, nos surpreende desprevenidos por não só igualar e até mesmo ultrapassar a melhor música que eles geram e, acima de tudo, recuperados dessa surpresa, nos faz recordar que é na ruptura dos paradigmas previsíveis e no agitar das águas paradas que se evita que a capacidade de inventar e criar seja abafada ou mesmo aniquilada e que se garante que a individualidade, a inovação e a originalidade dos músicos e dos artistas encontram o terreno para progredir, revelando-nos como uma surpresa que já deveríamos conhecer, e efectivamente conhecemos, que o caminho do futuro também tem que tomar essas direcções mais excêntricas onde podemos e devemos esperar encontrar criatividade e valor artístico de igual ou melhor qualidade que merece a mesma valorização.
O compositor, produtor e multifacetado instrumentista Michael Mentel já conhecia e admirava o trabalho da vocalista Aneta Maciaszczyk na banda Dash Channel em que esta actuava à data e foi num encontro casual em Dezembro de 2012 que um amigo comum os apresentou. Muito rapidamente identificam a comunhão das sonoridades que procuram e no início de 2013, enquanto a empatia e sintonia pessoal e profissional como parceiros de projecto cresce e se solidifica, estão já em estúdio para gravar a primeira demo da faixa “Cover The Fall” que veio constituir-se a génese de Zimowa e a pedra basilar e referencial da música que querem criar e, mais tarde, veio dar o nome ao álbum com que na altura ainda apenas começavam a sonhar tornar real, após o que se decidem tentar o objectivo de gravar esse longa-duração cativados por esta relação jovem e entusiasmante que se desenrola fluida e sem sobressaltos.
Como uma janela que permitiu espreitar e adivinhar a personalidade e o potencial musicais de Zimowa e a prometedora e entusiasmante antevisão dos seus planos e ambições projectados na edição de um primeiro trabalho pelo qual ficou provado valer a pena aguardar e impulsionar, como se de uma confirmação procurada por Michael e Aneta da empatia que já sentiam existir entre si ou um teste algo tímido ou hesitante ao valor do seu trabalho e à recepção pelo público das suas aspirações e conceitos artísticos e musicais se tratasse para o qual não encontramos razão de ser, o primeiro passo no percurso em direcção a essa meta foi completado no início de 2014 com a publicação on-line no seu perfil soundcloud das quatro faixas ainda em formato demo “Cover The Fall”, “You Came Here”, “Sing The Breath” que apresentamos mais abaixo e a fantástica, dinâmica e enérgica “Inevitable” incluídas no actual trabalho e que não tardaram a conquistar os ouvidos e coração do público que não lhes poupou as justas e unânimes melhores opiniões e recepção reclamando receber mais de Aneta e Michael, entretanto surpreendidos e motivados pelo entusiasmo crescente em seu redor. Quase empurrados por um saboroso movimento cujo controlo já começava a ultrapassar o estrito domínio dos seus comandos em virtude da crescente procura e boa recepção dos seus trabalhos que o público procurava, Zimowa rapidamente se viu saltar para uma sucessão de concertos ao vivo um pouco por toda a Polónia ao longo desse ano onde apresentaram não só as quatro faixas da demo já publicada e também novas músicas entretanto compostas, para os quais foi necessário alargar a constituição da banda tendo-se juntado o guitarrista Michael Husak e o baixista James Buczek igualmente responsável pelos samplers e pela secção rítmica ao pilar central do grupo e responsável pela autoria e composição musical formado por Aneta nos vocais e teclados e por Michael nos teclados e guitarra completando a formação actual de Zimowa, onde encontraram plateias repletas em salas e clubes esgotados que, para sua realização enquanto músicos e em reforço das suas convicções artísticas e de que as mesmas faziam sentido não só para si como para o público, sentiam compostas por uma mistura de alguns ouvintes ainda pouco familiarizados com a sua música mas a quem cada faixa tocada gerava o desejo de mergulhar mais e mais na seguinte e muitos outros já rendidos ao seu trabalho e à atmosfera que cria e transporta para a dimensão do fantástico e a quem se revelava impossível permanecer indiferente à música que recebiam, deixando reacções crescentemente positivas e recompensadoras logo no contacto pessoal e directo entre a banda e o seu público que é tão estimulante para ambos e relevante da genuinidade da banda ou mais tarde na internet e na imprensa local e que afirmavam Zimowa como o porta-estandarte da contemporaneidade e relevância da interessante música criada na Polónia actual por um significativo número de talentosas bandas e artistas que ganham cada vez mais ímpeto.
À data ainda sem um único single oficial editado e apenas com as quatro músicas publicadas em formato demo sem a necessária produção final de mistura e masterização, como o selo que veio atestar e realçar a validade dos planos e ideias de Aneta e Michael: fazer a sua música, tão simplesmente, o culminar desta bem-sucedida sequência gradual de apresentações ao vivo tomou forma no final de 2014 no convite para uma performance em 28 de Novembro no destacado programa de rádio Offensywa do canal 3 da Rádio Pública Polaca conduzido pelo respeitado anfitrião Peter Stelmakh, conhecido pelo prazer que retira em descobrir e destacar novas bandas e artistas nos quais acredite, que ilustramos com as imagens recolhidas nessa sessão de “Inevitable” cuja qualidade já destacámos e da formidável e magnífica “Nothing Is Ever Over” e que permitiu à banda dar-se a conhecer enquanto indivíduos e artistas em conversa sobre o momento actual e os planos futuros e onde “Nothing Is Ever Over” foi apresentada em primeira mão a uma audiência ainda mais vasta cuja recepção e reacção emotivas vieram apenas confirmar o que as apresentações anteriores já anunciavam: a demo era apenas o início da história de Zimowa, os dados do jogo estavam irremediavelmente lançados e era tempo de acreditar que o desejado LP viria a ser uma realidade.
Sem pressões poluentes de um processo criativo espontâneo e natural liderado por Michael que, sem planos prévios de inclusão ou observação deste ou daquele género musical e se permite a liberdade e a honestidade de criar a música que ele próprio quereria ouvir, enquanto eram esboçadas e compostas novas sonoridades, novas melodias vocais e novas letras pela dupla Aneta e Michael que sacode quaisquer limites ou restrições na sua inventividade e o quarteto se reunia na calma e no conforto do estúdio em casa de Michael sem o peso da progressão dos ponteiros do relógio que uma sala de ensaios alugada impõe para trabalhar nos arranjos e harmonias que Michael traçava experimentando sob as suas orientações vários caminhos e direcções possíveis até estarem satisfeitos com o resultado eleito, a saudável ambição, a energia e atitude positivas e a vontade de trabalhar da banda permitiram facilmente ultrapassar a incontornável questão financeira associada à produção de um álbum que lançou ao público e aos fãs já acumulados o desafio de contribuição e angariação da verba necessária em mais uma prova da transparência, determinação, resiliência e independência da sua postura perante a criação artística, objectivo que foi felizmente assegurado em breve prazo, oferecendo aos músicos a tranquilidade necessária para experimentar e gravar alguns instrumentais e vocais adicionais e rematar o LP numa dedicada mistura e masterização das quatro faixas da demo originária e das restantes entretanto compostas, em perseguição e observação da condição imposta a si mesmos com que entendiam honrar o seu público num álbum de cuidado conceito e produção.
O excelente “Cover The Fall” apresenta-se-nos intenso e absorvente, de carácter único, bem amadurecido e cuidadosamente pensado em composições coesas, densas e personalizadas, formando um conjunto coerente de sonoridade distinta, polida e sofisticada, musicalmente variado entre impressões claras dos géneros electrónicos dos anos 80 de Synthrock/Tecnorock e Synthpop/Tecnopop inspirados no New Wave e Krautrock do final dos anos 70 actualizados para o séc. XXI e que aglomeram de forma equilibrada o som rock da guitarra palhetada em acordes leves e discretos ou em riffs fortes e maciços, a secção rítmica rock e pop composta pelo baixo e pelas drum-machines que por vezes abrandam o andamento que se torna mais intervalado, downtempo e lo-fi, abrindo campo para as linhas de curvas longas e espaçadas de melodias e harmonias da produção electrónica dominadora sustentada pelos teclados sintetizados de quando em quando aguçados por samplers acutilantes, repetitivos e dissonantes, que a modernizam e acrescentam a sua marca individualizada, criando uma paisagem sonora algo sinistra e de uma desolação quase tangível que nos traz alguns sinais discretos e pouco evidentes da atmosfera Industrial mas cuja presença ainda assim sentimos.
Mas a curiosa e misteriosa singularidade que encontramos em Zimowa, como que sob uma agradável intransigência que não nos pesa e nos deixa capturados em cativeiro no seu “Cover The Fall”, é a sua capacidade metamórfica de se transformar e alterar e de nos oferecer vários e opostos conteúdos no interior de uma mesma embalagem e dessa maneira proporcionar-nos bem mais que apenas uma significativa experiência sensorial e emocional contraditória em si mesma que recebemos ao percorrermos o conjunto total das onze faixas ou individualmente em cada uma delas e que, paradoxalmente, não só em nada belisca a coerência do álbum como lhe acrescenta individualidade e personalidade. A estrutura musical parece-nos ao início simples mas rapidamente encontramos escondida uma interessante complexidade na qual uma variedade de equipamentos, instrumentos, sons, efeitos especiais e vocais que não é tão extensa dialogam entre si, complementam-se, sobrepõem-se sem se anular, alargam a amplitude sonora que se torna vasta mas subitamente retraem-se e encolhem-se adoptando uma identidade minimalista que logo depois regressa progressivamente a esses horizontes mais amplos numa produção poderosa e penetrante que alterna entre duas faces, uma orgânica e natural e outra mecânica e artificial, entre a melancolia emocional das melodias electrónicas que parece pairar entre camadas leves e vaporosas e outras pesadas e compactas, a poética marginalidade do som rock rebelde e vigoroso da guitarra eléctrica e da secção rítmica e a glacialidade incisiva e desconfortável dos samplers, envolvendo-nos num ambiente frio, sombrio e encoberto, aliás em coerência com o nome da banda que significa Inverno quando traduzido de polaco para português, mas que não é motivo suficiente para que dele nos queiramos abrigar ou queiramos que dê lugar a temperaturas mais mornas, como se com prazer estivéssemos no conforto de casa enquanto na rua chove, relampeja e venta, acolhidos pelo intrigante e envolvente desempenho vocal de Aneta que, por seu lado, apesar de não sair de um registo em que quase nos sussurra, oscila também entre uma faceta calma e nostálgica que nos ampara e descontrai e nos chega da textura macia da sua voz mas não deixa de transportar em si mesmo um certo tom ameaçador, mais áspero e algo fantasmagórico que nos volta a contrair enquanto nos fala de fragilidade e vulnerabilidade em versos pessoais, densos, dramáticos e profundos, repletos de emoção humana, como em “22” em ”Sleeplessness is fair / … / Half an hour till the next bite”, e em “Inevitable” em “I want to feel there's something true / … / But everything reflects nothing at all” ou em “Nothing Is Ever Over” em “I see nothingness / … / Sucking up my space / … / We became too self-aware / … / Senses make it hard / No one wants to know / We’re fragile”, entre outros.
Zimowa faz-nos acordar, olhar à volta e recordar de que há muito mais para além do que vemos quando acontece que o espírito se nos adormeça e o prazer que encontramos no menos óbvio é ainda maior quando substituímos o precipitado e injustificado estado de surpresa ao conhecê-los nos recônditos polacos de Wodzisław Śląski e nos emendamos no reconhecimento do sensacional trabalho de estreia que nos entregam e que adivinhamos agradar e colher aplausos ao público de nicho e também a uma audiência mais alargada. A banda prepara-se agora para a produção e realização de mais vídeos oficiais que acompanhem as faixas do álbum e para uma digressão de espectáculos ao vivo que merecidamente os catapulte além das fronteiras da Polónia e esperamos expectantes que os traga a Portugal.
Tracklist:
1. Prism
2. You Came Here
3. 22
4. Inevitable
5. Nothing's Ever Over
6. Sing The Breath
7. I'm No Remedy
8. Unfolded
9. Moments
10. All - Out Sight
11. Cover The Fall
[o autor escreve de acordo com a antiga ortografia]