Se o modernismo musical americano nos trouxe artistas e projectos comprometidos com uma nova visão da arte e da tecnologia, baseada numa trilogia relacional da arte, humanidades e filosofia, o pós-modernismo e a actual sensibilidade artística explora as suas últimas consequências acentuando o pendor electrónico-tecnológico e operacional da actividade humana em todos os domínios do conhecimento. Neste contexto surge a cantora, compositora e performer afro-americana Pamela Z. A artista, que a revista The Wire consagrou como “a mais dotada e empreendedora vocalista/compositora/artista áudio dos Estados Unidos desde o apogeu de Joan La Barbara e Meredith Monk”, trabalha sobretudo com a voz, processamento electrónico e samplagem.
Oriunda de São Francisco, Califórnia, Pamela Z estudou música e canto clássico na Universidade do Colorado. O interesse pela performance e pela música electrónica remonta, contudo, a uma fase anterior da sua vida. Em criança já brincava com instrumentos musicais por ela própria construídos e utilizava os gravadores de cassetes do pai para inventar programas de rádio em que protagonizava todos os actores, gravava todas as vozes e manipulava o som geral. Mais tarde começou a utilizar a voz com processamento digital, utilizando sobretudo máquinas de delay em loop contínuo em que ia sobrepondo camadas de som repetidamente. Descobriu por acaso que duas máquinas de delay sincronizadas causavam efeitos rítmicos surpreendentes e então passou a usar essa descoberta como um método de composição e investigação sonora. A este aparato juntou variados sons e ruídos gravados no seu apartamento, no seu bairro e outros lugares e começou a utilizá-los como rede de timbres e textura adicional. O resultado é um efeito inesperado de ensemble sonoro em que é a própria voz a gerar todas as partes/instrumentos, quer sejam de origem vocal ou extra-vocal.
Mas o fascínio pelo som não era ainda suficiente, tinha de atribuir-lhe uma forma visual, uma capacidade performática e teatral que a animasse enquanto cantora, enquanto corpo e voz disponível para a cor e o movimento. Não bastava estar atrás de um teclado a disparar comandos e códigos Midi, como é frequente na música digital, com os chamados knob-twiddlers onde usualmente apenas o ecrã do portátil funciona como principal interlocutor. Era preciso libertar-se da panóplia electrónica e usar o corpo e a voz como elementos visuais, com uma gestualidade simples mas eficaz que possibilitasse uma comunicação artística efectiva. Para isso, começou a usar o BodySynth, um equipamento na área dos body controllers em que sensores de electródos medem o esforço dos músculos e traduzem-no em números. A artista programa-o para controlar o pitch bend, ou disparar uma nota, um som, ou o que quiser. Pode usar um máximo de oito canais—um em cada braço, um em cada ombro e um em cada perna. Em qualquer lado onde haja um músculo. Isso permitiu libertá-la para o movimento e a gestualidade.
“Comecei a tentar fazer performances porque me apercebi que as pequenas peças musicais que fazia eram já em si uma espécie de trabalhos teatrais em miniatura. Apesar de ser relativamente estática ao microfone, tenho tendência para criar determinados gestos que considero parte da própria composição. Em Bone Music (ver vídeo acima), por exemplo, uso um garrafão de água de plástico em movimentos prescritos e ritualizados, desenhando círculos lentos no ar.” Juntam-se ainda toda uma coreografia gestual e facial que marcam o tom da música e da performance, conferindo-lhe contornos misteriosos, escuros e fascinantemente dramáticos.
No cruzamento entre o mundo digital e o mundo analógico, a artista pretende assumir-se como um personagem, uma performer do som, pois “não me interessa ser somente uma música, embora naturalmente as possibilidades sejam infinitas. Quero também usar as artes visuais e o teatro.” Em The Pendulum, 2008, uma apresentação multi-media, essa inter-disciplinaridade é visível:
Uma outra ideia de uma das suas apresentações multimédia, Gaijin, surgiu-lhe no Japão, quando realizava uma residência artística. A palavra Gaijin faz parte do calão japonês e quer dizer estrangeiro, uma pessoa de outra região ou país. “Uma coisa que aprendi no Japão é que se não fores japonês, se não pareceres japonês e se não falares japonês, serás sempre um Gaijin.”
Reflectindo sobre esta matéria e o tipo de alienação a ela intrínseca, não só no Japão mas em outros lugares e em outras circunstâncias, criou uma performance onde mistura vozes ao vivo e vozes sampladas, textos, e sons diversos num jogo polifónico multicolor. A certa altura ouve-se uma série de perguntas típicas dos questionários dos aeroportos quando se entra em solo americano, uma ideia que, aliàs, remonta a Frank Zappa (Welcome to the United States) e ao fabuloso trabalho The Yellow Shark, 1992 . Mas outras influências são fundamentais, como John Cage, Steve Reich, Alvin Lucier, Laurie Anderson, ópera italiana, Punk Rock & New Wave, minimalismo, teatro experimental, dadaísmo e surrealismo europeus, poesia sonora, música folclórica israelita, a linguagem e sons concretos. O seu primeiro CD intitula-se A Delay is Better, 2004 e reúne algumas das mais significativas peças do seu percurso performático, tais como Bone Music, Pop Titles “You”, In Times of Old, entre outras, que foram tratadas e aumentadas para fazerem parte do registo.
Dos numerosos projectos musicais que Pamela cria para festivais, galerias, artistas visuais, coreógrafos e grupos de câmara, destacam-se trabalhos em larga escala, verdadeiras apresentações multi-media (Parts of Speech, 1995-1998, Gaijin, 2001 e Voci, 2003), em lugares tão apetecíveis quanto o Theater Artaud, ODC Theater em São Francisco, Kitchen em NYC e o Museum of Contemporary Art Theatre in Chicago, entre outros. Contam-se ainda uma ópera, Wunderkabinet (2005, em parceria com Matthew Brubeck) e várias instalações (Just Dust, Forensic Art, Immersion, Metal/Vox/Water). Em Setembro do corrente ano estreia o seu novo trabalho inter-media Baggage Allowance, em NYC.
Ao perguntarem-lhe o que pensa do novo teatro musical e da sua projecção num futuro próximo, ela responde que há espaço para tudo e que não é necessário acabar com a tradição para poder fazer-se projectos novos e excitantes. Às vezes, sublinha, os trabalhos novos são mais interessantes quando comparados com os mais tradicionais. “É tudo um continuum e eu não vejo as coisas separadas por barreiras rígidas como muita gente vê. Quanto mais as pessoas deixarem de confrontar o seu trabalho com outras coisas e afirmarem simplesmente “Isto é o que eu faço”, mais coisas interessantes hão-de aparecer.”