A quinta de Don Emerson Sr. era um elogio de 647 hectares a uma longa linhagem de agricultores de Washington. Linhagem que veio a degenerar no amor paternal de Don.
A culpa foi do tractor que comprou no verão de 78. O tractor veio com um rádio. E o rádio passou a acompanhar o trabalho que os filhos, Donnie e Joe, prestavam depois das aulas. Eram adolescentes aéreos – uma praga de 78 –, mas eram bons rapazes que trabalhavam na quinta. Nesse verão, ao ver os filhos montados no tractor e a uivarem baladas pouco dignas de dois cowboys, Don Emerson Sr. pôs-se a pensar no futuro.
As rádios de Fruitland, zona rural com menos de oitocentos habitantes, não eram exactamente janelas para o mundo. Donnie, com os seus dezassete, conduzia o tractor do pai pelas extensões pastorais ao som de Smokey Robinson, Marvin Gaye e Bruce Springsteen. Alheio aos Sex Pistols, alheio a toda a disrupção cultural de 78, Donnie imaginava-se num palco escuro, com um holofote por cima, a arrepiar os poros da audiência com os uivos melódicos da sua dor adolescente. Sonhar com os palcos não era novidade para Donnie. Aos nove, tinha já escrito e tocado a sua primeira música. E o irmão Joe, dois anos mais velho, acompanhava-o com fervor, contribuindo com as suas próprias letras e composições, evidenciando a vontade siamesa que levava os dois irmãos a quererem tornar-se músicos.
Há muito que era óbvio para Don Sr. que os filhos levavam a música sério. Por um lado era um alívio – levavam alguma coisa a sério. O professor de música até dizia que eram bons, e tinham já uma maquete gravada para mostrarem aos bares e tudo… O que Don Sr. sentiu naquele verão, ao ouvir os filhos em cima do tractor, foi que tinha chegado a altura de ele próprio levar a música a sério.
Reunindo os filhos, disse-lhes:
– Só vos ajudo se fizerem algo que venda. Não vos quero a tocar em bares… Quero uma coisa tangível. Um álbum, por exemplo!
Esta era uma época em que os pais se orgulhavam de não compreenderem a música dos filhos – o desespero da meia-idade por compreender e imitar a juventude era ainda raro. Não é certo que Don Sr. tenha sido um pai à frente do seu tempo, mas ter recorrido a um empréstimo fácil para mandar erguer um estúdio e recheá-lo com um moderno e caríssimo equipamento de gravação foi, pelo menos, um idiossincrático sinal de fé (e o facto de não ter sido um connoisseur de música poderá até explicar a qualidade e o preço do equipamento adquirido: a ignorância vulnerabilizou-o perante a conversa de um vendedor). Seja como for, no ano de 1979, Dreamin’ Wild estava oficialmente gravado, e era o testemunho vital do talento de Donnie e Joe.
Um álbum insular, onde o erotismo adolescente se dilui numa inocência onírica; onde a voz de Donnie surge como o eco de um amor declarado, espiritualizado por solos gotejantes de guitarra e piano, e transportado pelo compasso leve da bateria de Joe. As inocentes paisagens do álbum casam estilos anacrónicos de rock, soul e funk, em baladas esteticamente precoces para 79, antecedendo o cuidadoso minimalismo dos Spandau Ballet, dos Depeche Mode ou até mesmo da fase mais decadente dos Roxy Music. Inspirados pelo que estava fora de moda, os irmãos Emerson desenharam um original e vanguardista quadro musical.
Don Sr. estava orgulhoso. Existia um álbum, o álbum tinha a voz de Donnie e a bateria de Joe, e tinha sido ele, Don Emerson Sr., quem tinha investido no equipamento de estúdio que fazia tudo aquilo soar tão bem. Só faltava produzir e vender. Com ajuda da mãe, os filhos começaram por impingir o álbum aos vizinhos. Alguns compraram. Já as lojas, especialmente as de Seattle, recusaram o álbum. Dois mil vinis foram abandonados ao pó de um sótão, e Don Sr., não vendo o retorno dos cem mil dólares investidos no estúdio, teve de hipotecar grande parte da quinta para pagar o empréstimo. Como muitos outros pais, viu nos filhos o que mais ninguém conseguiu ver. E por trinta e três anos, foi essa a história de Dreamin’ Wild.
Em 2008, um vinil poeirento, estacionado numa loja de antiguidades, chamou a atenção do colecionador Jack Fleischer (que terá sido primeiramente atraído pelo kitsch saltitante da capa). Fleischer ouviu Dreamin’ Wild, e apesar de ter duvidado do próprio gosto tornou-se o primeiro grande pregador do talento dos Emerson. Foi de tal forma um pregador barulhento que os elogios chegaram aos ouvidos da Light in the Attic, uma editora indie especializada na descoberta arqueológica. Tal como outros resgates da editora – entre os quais Rodriguez, Lee Hazlewood e Karen Dalton –, a música de Donnie e Joe Emerson prestou-se a ser vendida como uma história. Uma história que, à semelhança da de Rodriguez, finda com a sugestão de que a vida pode ser generosa, e de que o descortinar do tempo não segue padrões óbvios.
Donnie e Joe gostaram da sua nova história. E já na meia-idade, há muito divorciados de Dreamin’ Wild, puderam ver «Baby» tornar-se um hit de verão – um hit do underground de 2012, mas ainda assim um hit. E no mesmo ano, Ariel Pink – o excêntrico e muitíssimo undergroud Ariel Pink – impressionado com o talento dos Emerson, tributou-os com a sua própria versão de «Baby». Uma prestação que não fez jus à original, mas que cimentou o status da balada enquanto um essencial do classicismo indie.
Hoje, os irmãos Emerson vão passando pelos palcos. Donnie vai estando à frente, debaixo do holofote, com uma guitarra e uma voz que fazem ondear um público estendido como uma maré morta ao luar. E Joe, na bateria, vai retumbando modestamente o compasso desse emancipado sonho adolescente que é agora Dreamin’ Wild.
Agora sim, Don Emerson Sr. pode estar orgulhoso. E é ainda verdade que foi pouco razoável, que fez um mau negócio em 78 que lhe reduziu os hectares da quinta a um terço. Mas se o seu pragmatismo se tivesse imposto, se os 647 hectares da quinta ainda se mantivessem, é bem provável que não tivéssemos sido nós a lucrar. Não teríamos «Baby». E bastam-nos cerca de quatro minutos para sentirmos exactamente o que teríamos perdido.