Na tentativa de desenhar uma separação entre o autor e a sua obra, Dreams of India and China apresenta-se de imediato como um problema: não só foi composto pela desmontagem de arquivos que R.I.P Hayman produziu entre 1973 e 1986, como parece trabalhar com a iconografia do seu autor, construindo-lhe um percurso possível.
No entanto este afastamento nunca faria sentido: a mistura da vida com a arte é inerente ao legado de Hayman, um homem que se interessou tanto pela marinha e jardinagem como pela performance artística, parecendo tratá-los no caráter beuysiano da vida enquanto pedaço da arte (e não o contrário). Neste sentido, a sua incursão no movimento Fluxus apenas cimentara esta identidade artística, associando a performance vanguardista com o holismo dos rituais xamânicos nos seus “concertos para dormir” nas décadas de 70 e 80, que aparecem claramente subentendidos no conceito deste álbum.
Sonoramente concebido por Sean McCann, ainda que revisto por Hayman, e dividido apenas em duas faixas, Dreams of India and China inicia-se com uma flauta em primeiro plano, a melodia mais definida ao longo da sua duração, rapidamente desvanecida numa colagem onírica, tanto afluente quanto aleatória, como que duas faces opostas mas complementárias.
Ainda que corrente, a primeira parte do disco parece rodear-se de calma: os fragmentos sucedem-se em crossfades aéreos mas precisos, a difusão sonora apresenta um sentido no caminho que abre pelo eco de passos e água, desaguando num drone denso e ondulante, a impressão de uma paisagem, como que um barco revolvendo nas ondas do mar.
Na segunda parte, contrariamente, a coesão desaparece, as partes unem-se aleatoriamente, o arquivo torna-se visível. Ainda que se insira sonoramente na lógica sonial que o disco propõe, a faixa parece não saber por onde ir, com tensões percussivas de alta intensidade e distorção, que instauram um clima de caos e refutam a hipnose da faixa anterior. Ainda assim, a peça não cai no desinteresse de tão forte que é a sua componente textural e a constante vividez da gravação. No fim submergem sinos tilintando sobre um trompete tibetano, despertando a consciência do ouvinte, como se acordasse de um sono profundo.
É principalmente na instrumentação que reside a definição geográfica do título, coexistindo címbalos com percussões de água, saxofones com as Golberg Variations de Bach a meia velocidade. Porque é apenas nesta confluência de culturas, exótica sem cair no kitsch, espiritual ainda que absurda (veja-se a abordagem cómica em Snore Sonata, o título de uma das suas composições) que se consegue captar o retrato do artista.
A narrativa do disco, apesar de onírica, também se mostra consciente em momentos, principalmente nesta última faixa, onde interrompem respirações sonolentas, excertos dos tais sleep concerts que atuam aqui enquanto metalinguagem, inserindo subtilmente o ouvinte na escuta. Literalmente este diálogo traduz um estado de hipnagogia, no fundo, o sentimento geral do disco, que apesar dos seus altos e baixos sabe cumprir o que promete.