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Vista da exposição Joyce J. Scott: Walk a Mile In My Dreams no Seattle Art Museum. Foto: Chloe Collyer.
“Walk a Mile in my Dreams”, da artista Joyce J. Scott, está patente no Seattle Art Museum até 19 de Janeiro do ano que agora se inicia. Visitei-a, à exposição, em Novembro, e apenas um mês volvido volto aos meus apontamentos para escrever esta resenha, comentário, apontamento.
[nota: debruça-se este texto em igual percentagem sobre a exposição “Walk a Mile in My Dreams”, o espaço e o formato do pensamento crítico, e umas outras quantas associações livres.]
Antes de a ter visitado desconhecia o trabalho de Scott.
Surfando para obter informação, decidi-me a fazer algumas perguntas à inteligência artificial.
Primeiro perguntei-lhe o que achava do trabalho da artista.
Depois, perguntei-lhe o que achava desta exposição em particular.
[Farei questão de, maçadoramente, identificar o texto que delicadamente “mini” forneceu face às perguntas que lhe coloquei.]
Enfim, que se escuse o texto de se tornar um bacoco comentário à tecnologia e seus efeitos mas que carregue a consciência e o tom de que, estando já longe do lugar concreto em que a pude visitar - em corpo, presença e seja lá mais que substância - posso não só aceder ao que tenha já sido publicado por parte dos que, como eu, a visitaram e usufruíram dos efeitos dos seus saberes e sabores; posso não apenas ter acesso à exposição em diferido - documentação, sites, redes sociais - e à sua onda de repercussão de boca; como ter também acesso à possibilidade de absorver um pensamento formalmente crítico sobre uma exposição que esta inteligência, a artificial, também não presenciou.
Agarrados que estamos às formas e às regras do parecer, torna-se possível tomar acriticamente linhas formalmente verosímeis.
No Mommy Me II, da serie Mammy/Nanny, 1991, Joyce J. Scott. © Joyce J. Scott / Cortesia Seattle Art Museum
Sendo esta exposição uma co-produção entre o Museu de Arte de Baltimore e o Museu de Arte de Seattle, respondeu-me “mini” quanto à sua opinião sobre a mesma, que é uma oportunidade para ver de perto a obra de uma artista de renome mundial e que, quanto à reacção do público “Seattle tem uma cena artística bastante ativa e o público local é muito receptivo a exposições que exploram questões sociais e culturais, então é muito provável que a exposição tenha gerado um forte engajamento e discussões.” Talvez se tenha esquecido de ponderar as diferenças entre as “cenas” de Baltimore e as de Seattle...
Como efeito deste pensamento solto, agarrada à ideia de um pensamento formalmente crítico, decidi testar algumas variações de formato de um texto que pensa criticamente porque - talvez - criando vírgulas na inteligência à qual ainda não juntamos um adjectivo, a que nos pertence, poderemos fazer-lhe a manutenção.
As sinapses são maleáveis, os pensamentos são modeláveis. E os formatos, são-no também.
Embora quota parte deste texto se aderece às minhas reflexões avulsas, o que me leva a usá-las num texto que se motiva por Walk a Mile in my Dreams é precisamente a ideia de formato.
O que nos dá a correspondência a um formato, o que nos permite o formato em si mesmo e o que poderá ocultar o devido formato. Neste caso concreto, o formato de uma exposição no contexto de um museu.
[Sobre estes tópicos; o pensamento crítico na era de uma inteligência hegemónica - uff!, e umas quantas variações de nomeação - lançar-se-ão, nas brechas de vindouros textos que hão-de continuar a aparecer nesta plataforma, novas larachas.]
Spirited Siamese Twins, 2000-02. Joyce J. Scott. © Joyce J. Scott / Cortesia Seattle Art Museum
Na sala do serviço educativo onde se disponibilizava um folheto para uma acção que se assemelhasse à prática da artista, exercícios de re-enactment de processos, mesas e materiais - uma educação com sugestões para serem livremente interpretadas - mostrava-se um vídeo que, na minha opinião, resolvia e revolvia essa milha de sonho que o título da exposição refere.
Para além de ser um autêntico manifesto, era encantatório e lançava-nos um feitiço. Repetia-se a pergunta Do you Know? à medida que referenciavam muitos dos problemas sócio económicos de Baltimore, cidade onde a artista nasceu em 1948, e onde se identificavam as raízes desses mesmos problemas, e respectivos responsáveis, rendendo a neoliberal “liberdade de escolha” que esses mesmos e uns quantos semelhantes nos impingem como a razão para que se perpetuem.
Será que este vídeo musical que mostra a artista a ilustrar com a voz o cenário de uma cidade arrasada socialmente, a ser lúcida e não complacente, acompanhada por imagens dessa mesma cidade, das pessoas aos lugares, da desterritorialização à alegria... Será que que este vídeo, cheio de um fulgor vibrante, de uma raiva gingona e de um sentido ético anti-cínico... Será que se encontra na mesma sala reservada ao serviço educativo, obscura à coreografia expositiva e discreta para a maioria dos viandantes porque se cantar o verso “Boys and girls on the street / because they have no pay”...?
Pensamento cruzado: talvez exactamente por ter este feitiço sido lançado num vídeo musical, tenha temido a instituição em mostrar a pequena escultura “strange fruits” de uma outra forma que não - uma outra peça, numa outra sala - numa redoma paralelipepídicidididica. Para tentar que a acção museológica tornasse grave e enfadonha a força desse feitiço. Para que o mofo da instituição-museu apanhasse a magia na berma e tratasse da saúde do que sabemos ser, esses frutos estranhos.
Buddha Gives Basketball to the Ghetto, 1991. Joyce J. Scott. © Joyce J. Scott / Cortesia Seattle Art Museum
Assaltou-me o pensamento de que determinados gestos que ternamente poderão ser considerados como cuidados de protecção das próprias obras, contribuam para a tentativa da sua desvitalização. Em artistas cujos egos são desproporcionais ao seu encanto - digamos, o paradigma do artista do século XX e que, esperança!, se muda lentamente - tais gestos de desvitalização nunca são executados. Artistas vivos? Impensável contrariar o génio. Artista morto? Vêm os acólitos destas figuras egóicas defender a boa aparência da forma, a resistência da arte por si mesma. Naturalmente, cedo a um certo desdém...
No limite do aceitável, a preservação ou protecção dessas obras emprega um subalterno funcionário do museu que mais ou menos delicadamente se dirige a quem se aproxima “Não pode tocar” ou no limite dos limites, mantém-se o subalterno mas junta-se-lhe uma linha desenhada no chão, só para o caso da sua voz não ser suficiente.
Diga-se, para não incorrer em desmedida injustiça resultado do desdém que me assola, também essa linha se marcava no chão, à “porta” da maior instalação presente na exposição. “Please do not touch” a instalação de 2024 The Threads That Unite My Seat to Knowledge, construída não só pelas mãos da artista como pelas suas avós e avôs. Uma plataforma rosa delimitada o espaço onde uma estrutura metálica, com paredes e tectos desenhadas com o metal, algumas cobertas com os quilts feitos a várias mãos, outras descobertas. À “entrada”, onde a linha e a mensagem proibitória se encontravam, vemos uma outra estrutura de madeira, com objectos, cabeças, que se assemelha a um lugar de reverência, um altar. No topo, no tecto a céu aberto, esculturas antropomórficas.
Dead Albino Boy for Sale, from the series Flayed Tanzanian Albinos, 2021-22, Joyce J. Scott. © Joyce J. Scott / Cortesia da Goya Contemporary Gallery, Baltimore. Foto: Mitro Hood.
O que me espicaça na direcção deste pensamento? O fantasma da artista que aparece por aqui e por ali na exposição e diz isso mesmo, que entre a arte e a artesania não há diferença nenhuma. E que deseja que as peças se usem como adorno, ora que beleza!
Essa mesma alma que retira ao objecto de arte a sua sacralidade, para que, em vez disso, lhe atribua uma força viva, e para que coloque a sacralidade nos corpos e nas marcas e memórias e violenta história que os marca, aos corpos negros.
Ora, colocar um santinho numa redoma, compreende-se, para que os beiços dos fiéis não besuntem de cuspe os seus pezinhos, colocar uma ave canora numa caixa transparente é, condenar a vida à morte pelo canto.
A obra de Joyce J. Scott, continua mini, é “especialmente conhecida por seu trabalho com beadwork (trabalho com missangas), escultura e outras formas de arte tridimensional. Ela tem uma abordagem única que mistura técnicas tradicionais com temas contemporâneos, e seu trabalho frequentemente explora questões sociais, culturais e políticas.” e que “Em resumo, Joyce J. Scott é uma artista inovadora e provocadora, cujo trabalho vai além da técnica, explorando questões profundas sobre identidade, poder e a experiência humana. Ela consegue fundir beleza, técnica e crítica social de uma maneira muito poderosa e acessível.”
Dado o vago carácter, não tenho como discordar. Mas posso-lhe acrescentar que o que é surpreendente no trabalho com pequenas contas é a capacidade de tecer representações e motivos que evocam tanto na técnica, nessa também aparente forma, como nos assuntos - o que se dirá conteúdo - uma ampla aplicação dos modelos hierárquicos.
Instaladas num museu vêem-se obras que representam de forma estereotipadas corpos de mulheres negras, cenários violentos embora extremamente coloridos e, pela técnica, considerados quasi inofensivos e cândidos. Lê-se “food” e “Africa” no círculo que interliga uma destas representações humanas a uns quantos esqueletos e uns quantos corpos emaranhados, colocados de cabeça para baixo. “Beach and Sea, Whites Only”, num outro. A instituição teve o cuidado de nos avisar; Please note: The artist addresses all aspects of human experience in her work, including racist stereotypes, sexual violence, and the grievous history of lynching.
Catarina Real
(1992, Barcelos) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica no campos expandidos da pintura, escrita e coreografia, maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração, que se debruçam sobre o questionamento de como podemos viver melhor colectivamente. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. Mantém uma prática de comentário - nas vertentes de textos de reflexão, textos introdutórios a exposições, entrevistas e moderação de conversas - às obras e processos realizados pelos artistas na sua faixa geracional, com a intenção de contribuir para um ambiente salutar de crítica e criação colectiva e comunitária.
Foi artista residente na Residency Unlimited, Nova Iorque, com apoio do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.