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Em tempos globais de aceleração do tempo e do espaço que tornam evidentes a uns quão próximos estão dos outros, é o contacto estes uns e outros, que se julgavam fixados em si mesmos separados por enormes distâncias no mapa e no relógio, que lhes revela afinal a proximidade da existência mútua. É a diluição e transgressão destas fronteiras entre uns e outros que, fazendo convergir reciprocamente a diversidade inclusiva da alteridade, conduz à hibridização das suas naturezas.
É o que os canadianos Timber Timbre acabam de fazer com “Sincerely, Future Pollution”, o seu mais recente trabalho, colocado no mercado em 7 de Abril pela berlinense City Slang Records – que dá residência a nomes de génio cujo mood anda perto de Timber Timbre como Lambchop ou Tindersticks, apesar da extraordinária sonoridade individualizada de cada um, e à talvez mais distante mas igualmente distinta e épica música de Anna Von Hausswolff, entre outros.
Em “Sincerely, Future Pollution”, Timber Timbre olham para o lado e recebem, absorvem e dão em troca. Hibridizam-se. “Velvet Gloves & Spit”, logo a abrir o álbum, é o exemplo acabado.
Desde 2005 a reivindicar um espaço próprio ocupado com um mérito cuja elegância das subtilezas pode passar despercebida por uma mais superficial e descuidada apalpadela, o ambiente sonoro dos cinco álbuns anteriores é individualizado e característico de Timber Timbre, ainda que evolutivo. Nos dois álbuns anteriores, “Creep On Creepin´ On” em 2011 e “Hot Dreams” em 2014, cunham uma alma exploradora do rock entre o country, o folk e o blues contemporâneos, todos eles actualizados pela incontornável carga noire e gótica cujo volume, ao qual nos convertemos com prazer ébrio e nos capturam ao sugerir o esvaziamento de inúmeras imagens mentais de paisagens amplas e espaçosas mas sombrias e dramáticas, tão introspectivas e melancólicas quão sinistras e intimidantes.
Ao sexto LP, o sangue temperamental de Timber Timbre continua a ferver neste lume de chama branda mas incandescente que caracteriza a sua sonoridade. Porém, o desvio de direcção do olhar e o salto da fronteira são, em 2017, incomparavelmente mais notáveis do que em anos passados.
A anterior imagem de marca acústica das guitarras de cordas de metal e das guitarras eléctricas, ainda que ampliadas por efeitos da pedaleira, do peso melódico do baixo, de outros variados instrumentos de cordas desde o violino ao bandolim, da percussão da bateria e outros instrumentos de vibração, dos ocasionais instrumentos de sopro e teclados dos álbuns anteriores, é não apagada por inteiro mas largamente sobreposta pela pegada do primeiro passo no terreno da electrónica e das várias camadas dos seus sintetizadores, do baixo agora ainda mais pesado, das suas drum-machines e outras máquinas e efeitos que tais.
Mais do que o salto da fronteira entre o orgânico e o mecânico, Timber Timbre deixam um pé em cada lado da linha de fronteira. Se, por um lado, a propriedade geradora de imagens mentais da música de Timber Timbre, da qual escorrem paisagens diluídas que vagueiam pela memória do tempo sugeridas pelo rock de natureza folk, country e blues nos álbuns anteriores, conduz-nos em “Sincerely, Future Pollution” para o espaço contemporâneo industrial e plastificado em resultado das máquinas deste rock de carácter electrónico, por outro lado, mantém-se entre o passado e o presente a sonoridade emocionalmente monocromática e desconfortavelmente apaixonante evocativa da lugubridade e da escuridão de lugares ermos a que, sem esquizofrenia de contradição, nos rendemos sem resistência. “Sincerely, Future Pollution” muda quase tudo apenas para voltar ao mesmo:
abandonamos a lama apenas para nos enfiarmos no esgoto.
A dinâmica pop rock não-dual da contemporaneidade electro e da tradição blues e folk que Timber Timbre fazem conviver em “Sincerely, Future Pollution” é um processo evolutivo em que os canadianos se aventuram em busca da sua auto-transformação e auto-experimentação. É a sua meta-música. Contudo, a sua consistência não é alvo de traição. “Sincerely, Future Pollution” mantém-se fiel aos dois cunhos identitários do percurso musical da banda.
De facto, independente das ferramentas empregues, a composição musical de Timber Timbre mantém a sua capacidade de nos sugar e surpreender, agora até mesmo mais que antes. Parecendo habitar cenograficamente o vocabulário imagético surreal e emocional por si mesma criado, cada faixa assume-se como um volume temperamental e sinistro recheado de texturas, recantos e reentrâncias que se desdobram e revelam sucessivamente por entre as sombras da paisagem sonora. Descompassos rítmicos e discordâncias tonais, pausas abruptas e repetições estendidas, sons sobrenaturais e efeitos anómalos, relativamente aos quais são inteiramente arguidas as longas secções exclusivamente instrumentais, combinam-se elegante e meticulosamente com recurso ao reverb dos riffs das guitarras, ao esmagador uso do baixo, às asfixiantes progressões ou estagnações melódicas dos sintetizadores e à lâmina da bateria electrónica que, não deixando de se esgueirar contida, corta crua e afiada. Sobreposta à sonoridade personalizada, agora reinventada, de Mathieu Charbonneau nos teclados e sintetizadores, de Simon Trottier cujas mãos alternam entre o baixo e a guitarra e os teclados, e do baterista convidado Olivier Fairfield, encaixa assinalavelmente o classicismo inconfundível da voz de Taylor Kirk, líder do trio na composição e escrita, que também pega na guitarra e no baixo. Como um contador de histórias do fantástico, Kirk quase não canta. Como se estivesse aprisionada e conseguindo a liberdade, a sua voz grave e pesada solta-se em lamúrios e murmúrios, quando não se limita a apenas a falar em sussurro, várias vezes voltando a ser entrincheirada nos efeitos do vocoder, contribuindo largamente para a atmosfera bizarra de desalento quase apocalíptico que nos envolve.
O novo capítulo do percurso que “Sincerely, Future Pollution” fica também marcado por uma clara diferença do propósito temático. Nos trabalhos precedentes, as baladas de ambiente contorcido recriam figurativamente imagens fantasmagóricas e demoníacas do sobrenatural em “Creep on Creepin´ On” ou do romance, voluptuosidade e prazeres da intimidade do amor correspondido ou do desgosto vivido na memória do mesmo amor perdido em “Hot Dreams”. Kirk sempre foi mais dado à sensibilidade pelo imaginário e pelo emocional. “Sincerely, Future Pollution” reserva algum espaço ainda para essa linha, ainda que sempre impregnada pela habitual sombra. “Velvet Glove & Spit”, como o próprio título da faixa sugere, demonstra-o em versos como “Our castle in the sand built too high too soon / And under waving palms and waving sales and waves / Goodbye / And I once saw the touch of your velvet hand upon my face / I recall velvet gloves and spit is your embrace”.
Porém, a dinâmica evolutiva de “Sincerely, Future Pollution” desvia o conteúdo lírico para a toxicidade e contaminação da obra da mão humana em dimensões mais palpáveis e materiais. O álbum aponta o dedo em revolta e denúncia do declínio social motivado pela degradação da acção política e pela obsessão por encenações de fachadas inchadas do que realmente somos alimentadas pelos media e pela tecnologia. Kirk confessa 2016, ano durante o qual “Sincerely, Future Pollution” foi criado, como um ano que o inquietou pelo embuste da falsa tranquilidade proclamada pelos discursos nacionalistas que se infiltraram nos territórios políticos da sociedade ocidental em ambos os lados do Atlântico enquanto o poder crítico da população agarrada às redes sociais é anestesiado por frivolidades egocêntricas de afirmação pessoal. Um dos auges da abordagem poética e lírica é atingido em “Western Questions”. A tonalidade mais melódica e porventura acolhedora, mas talvez irónica, da maior parte da faixa não leva ninguém ao engano; para nos deixar logo acordados para o surrealismo que Kirk vê ao seu redor, essa tonalidade musical é precedida pela abertura sonora da faixa, dramática e lancinante como a imagem de uma lâmina a cortar-nos o olho – demasiado abafada, falta talvez a bateria em crescendo e mais poderosa nesta abertura – enquanto mais à frente os versos se encarregam de nos criar as imagens do dilema contemporâneo de vaidade, ganância e discriminação em detrimento da dignidade humana: “I´m the hero of the human highway / I´m the savior of the atmosphere / Overdue by assassination, promoting racial vaccination and fear / … / Western questions, desperate elections, campaign Halloween / We relax with our love life published, slip into something obscene / We got slime and flamingos, take the number but please don´t forget about me”.
Aqui e ali, não deixamos de ficar com um amargo de boca. “Grifting” é um desses casos. Ao contrário do que acontece nos trabalhos de 2011 e 2014, o equilíbrio e coerência globais do álbum são claramente manchados por esta evocação do funky dream-pop dos anos 80 que não só não encontra sintonia com as faixas mais revelantes do resto do álbum como ela própria não nos desperta qualquer estímulo musical que consiga fixar-se na memória. Acentuando a incoerência desta experiência, a letra mantém o teor crítico: “Faking it to make it / Never give, but take it / Building trust through kindness / To exploit the finest / Walls and bridges burning” – mas a maior ligeireza, quase indulgente, do ambiente sonoro faz escapar por entre os dedos o valor do seu conteúdo. “Grifting” é espelho da intenção de Timber Timbre à partida para “Sincerely, Future Pollution” em produzir um álbum mais dançável quando comparado com o percurso anterior. Por mais valiosa que seja a insatisfação com o conforto que conduz à experimentação, é a prova de que deve ser respeitada a natureza das coisas. Timber Timbre não sabem abandonar a sombra, e nós não temos nada contra isso.
Estes amargos de boca são, porventura, resultado da abordagem criativa de Timber Timbre a este álbum. Sem partilharem o gosto pela pop electrónica, “Sincerely, Future Pollution” é também o veículo para sair dos habituais padrões da zona de conforto e explorar outros géneros, estilos e sonoridades numa saudável busca pela inovação e evolução. Alguns tiros saem ao lado, é inevitável. Mas louva-se a coragem da aventura, mais a mais porque a maior parte dos tiros é notavelmente certeira.
Nesta atitude experimental, a visão dos arranjos musicais foi deixada menos planeada que nos trabalhos anteriores. O processo criativo de Kirk, que imaginava e definia os arranjos até aos detalhes com pouca ou nenhuma participação dos companheiros previamente à entrada no estúdio, é deixada agora não só mais permeável à participação de Charbonneau e Trottier como exposta à imprevisibilidade artística em fase de ensaios e gravação. É esta imprevisibilidade que foi sabiamente explorada pelo trio quando confrontados com a variedade de ferramentas electrónicas musicais nas quais ainda não haviam pousado as mãos.
Sem prejuízo dos naturais lapsos, aceitáveis a quem se arrisca em territórios não familiares, várias faixas em “Sincerely, Future Pollution” são efectivamente distintas e de elevada qualidade, demarcando uma notável evolução face ao seu passado. Podendo revelar-se mais desafiante aos fãs que prescindem soltar-se das amarras mais puristas ao rock folk e blues, basta dar algum tempo a “Sincerely, Future Pollution” para que se revele distintamente compensador. Este é um álbum de mérito. Agora que descobriram como criar rock e blues com sintetizadores, a ousadia musical experimental mas fiel à personalidade distintiva da banda enquanto hábeis artistas criadores de imagens e atmosferas, que são tão mais belas quão mais sombrias, e a sua arte colocada ao serviço da intervenção comunitária elevam este trabalho ao lugar cimeiro face aos predecessores na carreira de Timber Timbre.
Tracklist “Sincerely, Future Pollution”
1. Velvet Gloves & Spit
2. Grifting
3. Skin Tone
4. Moment
5. Sewer Blues
6. Western Questions
7. Sincerely, Future Pollution
8. Bleu Nuit
9. Floating Cathedral