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“Interessa-nos a construção de uma comunidade, de novas comunidades.” Inês Bernardo, membro fundador do Alvalade Cineclube, em Lisboa, dá-nos nesta entrevista uma aproximação ao projecto e propostas do cineclube que pretendia ser de bairro, mas que chegou a um público mais alargado, sedento da experiência cinematográfica. O Alvalade Cineclube quer oferecer a “programação que faltava” à cidade: “As nossas escolhas são muito maturadas e discutidas e há um pensamento por detrás de tudo o que fazemos”.
Depois de nos darem este mês cinco filmes sobre o cinema e a sua relação com o som e a música, teremos a oportunidade de ver/rever Flash Gordon (1980) já no dia 2 de Março, nas novas Sessões Estranho-Amor que recuperam filmes de culto para o grande ecrã.
A aposta numa personalidade reconhecível, em ciclos temáticos e actividades paralelas, coloca o Alvalade Cineclube na mira da programação lisboeta.
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Vista das sessões no Alvalade Cineclube. © Alvalade Cineclube
No vosso website dizem ser "uma comunidade cinéfila, preocupada com a falta de cinemas na cidade e sempre à procura de objectos visuais que estimulem cérebros.” Como surgiu a ideia de formarem um cineclube? Sentem que estão a conseguir cumprir o que pretendiam?
Lisboa já foi uma cidade onde conviviam vinte e duas salas de cinema, e onde a tradição do cinema de proximidade, de termos um cinema no bairro onde moramos, se perdeu. Esses cinemas mantinham uma relação de proximidade com as pessoas e foi em busca dessa relação, dessa memória, que formámos o Alvalade Cineclube. Isso e porque procurávamos também na cidade um tipo de programação que lhe faltava e que nos fazia falta. Penso que, com os anos que temos de actividade praticamente ininterrupta (à excepção do período pandémico em que, obrigatoriamente reduzimos a nossa actividade), construímos já uma comunidade e, acima de tudo, as pessoas sabem que personalidade tem o Alvalade Cineclube.
Vista das sessões no Alvalade Cineclube. © Alvalade Cineclube
O Alvalade Cineclube não faz só projecções. Que outras actividades, mais ou menos regulares, é que podemos encontrar nos vossos programas?
O Alvalade Cineclube tem uma série de outras propostas, além das projecções. Além de, muito frequentemente, convocarmos realizadores, pessoas relevantes para temas e filmes, para conversas com o público, mantemos o podcast Branca de Neve e promovemos o Salão Lisboa, uma mostra itinerante, que devolve o cinema a locais de memórias nos bairros de Lisboa. Na sua primeira edição, envolvemos as colectividades, recuperando as memórias do significado dessas estruturas na dinamização cultural dos bairros e freguesias e na segunda edição, projectámos cinema à porta (e em ocasiões dentro), de cinemas de bairro que estão actualmente desactivados. Não querendo ser demasiado exaustiva, ainda temos publicações e projectos educativos, para mais jovens, que mantemos e vamos iniciar em 2023.
O movimento cineclubista tem uma história já antiga, se calhar mais familiar às gerações mais velhas. Têm uma ideia do tipo de público que o Alvalade Cineclube tem? Implementam ciclos já a pensar em captar públicos mais jovens, com outros hábitos e interesses cinematográficos?
O nosso público é bastante diverso. A nossa expectativa inicial seria de que teríamos, como core-audience os habitantes de Alvalade. Rapidamente percebemos que há muita gente, em toda a cidade - e até fora dela! - que procurava um espaço assim, programação deste género. Temos um público muito diverso e claro que temos interesse em captar públicos mais jovens, mas o que nos interessa nesses públicos não é estar no ecrã onde eles estão (vulgo telemóveis) mas trazê-los à sala a ver, no grande ecrã, os filmes e mostrar-lhes como a experiência é radicalmente diferente. Além disso, o nosso projecto educativo tem uma vocação bem mais virada para a comunhão cinematográfica que para o “fazer cinema” de forma umbiguista. Interessa-nos a construção de uma comunidade, de novas comunidades.
Moonage Daydream (2022), de Brett Morgen
Decorreu este mês o ciclo “BOOMBOX”, composto por quatro documentários sobre música e som. Porque escolheram estes filmes e não outros? Qual a especificidade destas obras, e de que forma vão ao encontro do que queriam propor com este ciclo?
Porquê estes e não outros é a pergunta que nos fazemos cada vez que programamos. Mas este programa BOOMBOX cumpre duas premissas: dar a ver filmes pouco vistos em tela e criar experiências sonoras na sala de cinema. Interessava-nos, neste ciclo, encontrar filmes que criam experiências felizes e trazê-los à sala de cinema. Há muito que queríamos programar cinema na sua relação com o som e a música, cinema que podemos ouvir tanto ou mais do que ver. A oportunidade são estes cinco filmes sonoros, que são absolutamente invulgares numa sala de cinema, pela dimensão que o som tem.
Costumam identificar prioridades quando concebem os vossos ciclos? Por exemplo, a oferta de obras cinematográficas de difícil acesso, a sensibilização dos públicos para determinadas linguagens fílmicas, a reflexão sobre certas temáticas…
A construção da nossa programação é bastante orgânica. É-nos importante visitar novas temáticas, novas ideias de construção de ciclos e sim, gostamos de poder oferecer objectos fílmicos de difícil acesso. E, actualmente, há muitos. O desaparecimento dos cinemas independentes leva a uma massificação da oferta e do gosto, a uma standardização do olhar para o cinema e tentamos contrariar isso. Ao mesmo tempo, não programamos por impulso. As nossas escolhas são muito maturadas e discutidas e há um pensamento por detrás de tudo o que fazemos.
Flash Gordon (1980), de Mike Hodges
Querem fazer uma breve antevisão dos próximos ciclos/programação a apresentar pelo Alvalade Cineclube?
Vamos inaugurar, a 2 de março, uma nova espécie de sessão. As Sessões Estranho-Amor são momentos pop-up, independentes de ciclos de programação e que recuperam filmes-fetiche, de culto, para o grande ecrã. Começamos com Flash Gordon (1980), de Mike Hodges. Uma extravagância camp onde também o som (nomeadamente a banda sonora composta e cantada pelos Queen) tem uma enorme importância. Seguimos depois para o ciclo “Irão, meu amor”. Serão 9 filmes inéditos em Portugal, entre curtas e longas-metragens, de realizadoras iranianas da nova vaga. Uma parceria única com o projecto britânico feminista Another Screen e que quer discutir a visão e condição da mulher no território agora a ferro e fogo. Um happening cinéfilo e assumidamente político. Esta será a nossa primeira programação em parceria e era para nós importante que começasse com esta temática. A Another Screen tem feito um trabalho notável, nomeadamente na divulgação do novo cinema iraniano feminista e toda a receita de bilheteira deste ciclo ser-lhes-á doada.
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Inês Bernardo
Ilhavense de origem, lisboeta de coração e portuense de paixão, nasceu em 1983. Comunicadora por defeito pessoal e profissional, escreve desde muito jovem. Membro fundador do Alvalade Cineclube, onde mantém actividades de provocação cinéfila. Co-criadora e produtora do podcast “Biblioteca de Bolso” e co-produtora e co-dinamizadora do podcast do Alvalade Cineclube, “Branca de Neve”.