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No contexto da programação Eventos Colaterais - 60ª Exposição Internacional de Arte da Bienal de Veneza - é-nos dado a experienciar swell of spæc(i)es de Josèfa Ntjam.
well of spæc(i)es divide-se entre dois edifícios distintos. Por um lado, a Academia de Belas Artes de Veneza, por outro, o Instituto de Ciência Marinha. No primeiro, visitamos a obra propriamente dita, uma instalação que nos suga directamente para uma dimensão paralela. O segundo funciona como espaço satélite dessa instalação, onde temos acesso não apenas a uma quota parte da investigação realizada para swell of spæc(i)es – para a qual contribuiu o diálogo e cruzamento com cientistas deste mesmo instituto – como podemos ainda, fazendo uso de uma personalizada ferramenta de inteligência artificial alimentada apenas por referentes do projecto de Josèfa – de imagens de plâncton captadas pelo Instituto de Ciência Marinha a representações escultóricas detidas em colecções ocidentais de entidades divinas e espíritos aquáticos tais como Nommo e Mami Wata, presentes nas culturas africanas e caribenhas – personalizar as nossas figuras híbridas, mitológicas, sinuosas, aquáticas ou banhistas conforme as acoplações.
Josèfa Ntjam, swell of spæc(i)es, 2024. Vista da instalação na Accademia di Belle Arti di Venezia. Evento Colateral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia 2024. Comissariada por LAS Art Foundation. Cortesia da artista; LAS Art Foundation. © ADAGP, Paris, 2024. Foto: Andrea Rossetti
Este espaço, paralelo à dimensão paralela de swell of spæc(i)es, é de um didatismo de várias frentes e por isso, toma para a si a coragem de desmontar a clausura em que, por vezes, determinadas estéticas se defendem: torna palpável o incompreensível; torna o artificial desta inteligência, tangível; troca a magia por miúdos. Diz ao que vem. Para além de que, note-se, é de uma grande maturidade e generosidade partilhar e possibilitar a experiência das ferramentas de construção conceptual, técnica e formal que acompanham esta investigação.
Em retrospectiva – uma vez que visitei primeiro o Instituto de Ciência Marinha – posso dizer que a partir do momento em que se vê a cauda deste projecto, se entende que o programa que está em causa, a raiz de investigação artística que opera em swell of spæc(i)es, se rege por uma interconectividade empática que não é apenas implícita na ficção/fricção criada, que não é apenas representação de híbridos, mas que é implícita também à forma de criação dessa mesma ficção, à sua política. Na minha leitura, a mesma última palavra do poema de Mawena Yehouessi que Josèfa recupera para o curto documento impresso que acompanha e apresenta a sua exposição: jamming.
LAS Art Foundation | UNA / UNLESS Pavilhão Temporário na Accademia di Belle Arti, Veneza, 2024. Comissariado por LAS Art Foundation. © 2024 UNA / UNLESS. Foto: Andrea Rossetti / Héctor Chico
Um grande triângulo azul ocupa o átrio da Academia de Belas Artes de Veneza, uma superfície que aparenta ser plástica, sólida, reluzente. À entrada encaramos o vértice, ou melhor, a aresta. Acima desta mancha inesperada de azul, entre as duas linhas de janelas das salas de aula, uma bandeira. Free Palestine. Apesar de a intervenção ter sido feita pelos alunos – fui confirmar na documentação oficial da Bienal – parece também este posicionamento imiscuir-se na exposição.
Atravessando o átrio, contornando o que parecia triângulo e é afinal prisma triangular seccionado, o que parecia ser sólido e é afinal fluído: conseguirmos entrar dentro do azul. Naturalmente que Bruce Lee consta das referências de Josèfa para swell of spæc(i)es, referenciadas no material textual auxiliar, apesar do mérito da construção deste espaço de exposição ser partilhado com o estúdio de arquitectura UNA/UNLESS. Todo a zona que este prisma abarcou, tomou-a de azul e, do átrio tomou as suas características. Ainda lá está o poço, o elemento que nos faz entrar no espaço ficcionado do azul onde a instalação começa a começar e que ainda nos mantém em contacto com a realidade que habitamos. Atrás de uma grande cortina por onde continuamos a entrar não há outros elementos que nos mantenham … por cá.
Josèfa Ntjam, swell of spæc(i)es, 2024. Vista da instalação na Accademia di Belle Arti di Venezia. Evento Colateral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia 2024. Comissariada por LAS Art Foundation. Cortesia da artista; LAS Art Foundation. © ADAGP, Paris, 2024. Foto: Andrea Rossetti
Numa grande tela, uma longa animação dá-nos a ver espécies encantadas e encantadoras. O negro, a luminescência; cores e tentáculos vão dançando. Tudo oscila, desliza. Dois grandes sofás que antes do toque se aparentam a sólidas rochas estratificadas, permitem que o corpo relaxe e descanse, e desfrute da faixa sonora para ir deslizando para esta realidade paralela, de onde são soprados feitiços. De quando em vez uma voz, muito baixa e incompreensível, acentua a sensação de que estamos a ser enfeitiçados ou de que, não sendo sobre nós aplicada, uma força maior e mais antiga se manifesta por ali.
Josèfa Ntjam, swell of spæc(i)es, 2024. Vista da instalação na Accademia di Belle Arti di Venezia. Evento Colateral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia 2024. Comissariada por LAS Art Foundation. Cortesia da artista; LAS Art Foundation. © ADAGP, Paris, 2024. Foto: Andrea Rossetti
No espaço fora do ecrã, duas grandes esculturas bioluminescentes lembram-me caravelas portuguesas. Uma das faixas de sons que se ouvem provém da escultura, de dentro da copa na qual nos podemos abrigar, como se entrássemos também na animação, na oscilação dos corpos híbridos. Diz-nos das suas posições quanto ao universo, sobre os problemas do mar, tenta-nos à fusão com a sua própria identidade. Alicia-nos com o que se irá tornar um dia, o dia que alimentará outros seres. Mistura-nos as construções temporais e providencia-nos de imagens de tudo o que vê. Depois, parte pelo espaço para se tornar uma outra coisa; transformam-se as relações do espaço; das narrativas; dos sons; das sugestões criadas por todos os estímulos.
Josèfa Ntjam, swell of spæc(i)es, 2024. Vista da instalação na Accademia di Belle Arti di Venezia. Evento Colateral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia 2024. Comissariada por LAS Art Foundation. Cortesia da artista; LAS Art Foundation. © ADAGP, Paris, 2024. Foto: Andrea Rossetti
A animação é longa e diversa, mas faz-nos passar por várias estações do começo; a dramaturgia do filme é alimentada pela interpretação dos mitos de Amma e Nommo, parte da cultura Dogon, e por uma história Huaorani, de uma cobra que se alimenta de estrelas para criar toda a flora, água e vida marinha. Naturalmente que só tenho a informação da base de construção da própria mitologia do filme porque me dão acesso à mesma, mas a compreensão anterior a este acesso torna evidente a continuidade cíclica que, a cada momento retorna a novos modos da criação de um novo; da planta ao animal, do céu à terra.
Um pouco alucinogénia e ácida na sua forma, nesta sequência de imagens, texturas e cores encadeadas no som fazem a passagem do ambiente marítimo ao espacial onde pedras e bichos imaginários, cobras, ténias, corais e algas, uma fauna-flora reunida em novos corpos, circulam. Visões espaciais da terra ou de um outro planeta sem continentes como se entrássemos na mistura infernal do paraíso atravessando planos de água gasosa e aterrássemos em praias onde conchas modelam o território. Onde conchas são o território sem qualquer outra camada.
Josèfa Ntjam, swell of spæc(i)es, 2024. Vista da instalação na Accademia di Belle Arti di Venezia. Evento Colateral da 60ª Exposição Internacional de Arte – La Biennale di Venezia 2024. Comissariada por LAS Art Foundation. Cortesia da artista; LAS Art Foundation. © ADAGP, Paris, 2024. Foto: Andrea Rossetti
As co-constituições são recorrentes. Uma pitada de apocalipse encantado, como um sonho ou uma profecia não romantizada da ruína, mas do tomar da ruína pelo não humano e as potências que daí se podem pensar.
Este é um projecto comissariado por LAS Art Foundation, fundação que apresenta como sua missão “a exploração das possibilidades do amanhã, através do trabalho visionário com artistas, pensadores e instituições para desenvolver projectos e experiências inovadoras” e que tem como foco o apoio e incentivo à exploração das intersecções entre arte, ciência e tecnologia.
Catarina Real
(1992, Barcelos) Trabalha na intersecção entre a prática artística e a investigação teórica no campos expandidos da pintura, escrita e coreografia, maioritariamente em projectos colaborativos de longa duração, que se debruçam sobre o questionamento de como podemos viver melhor colectivamente. É doutoranda do Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho com uma investigação que cruza arte, amor e capital. Encontra-se em desenvolvimento da Terapia da Cor, prática aplicada entre teoria da cor, arte postal e intuição coreográfica. Mantém uma prática de comentário - nas vertentes de textos de reflexão, textos introdutórios a exposições, entrevistas e moderação de conversas - às obras e processos realizados pelos artistas na sua faixa geracional, com a intenção de contribuir para um ambiente salutar de crítica e criação colectiva e comunitária.
Foi artista residente na Residency Unlimited, Nova York, com apoio do Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC.
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Josèfa Ntjam
swell of spæc(i)es
20 April — 24 Novembro 2024
Accademia di Belle Arti di Venezia