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© David Pires
Sexta à noite no ZDB. O apinhadíssimo ZDB! Cavalheiros de roupa em segunda mão, curadores-diplomatas, vamps do teatro, trovadores escudados por óculos de massa, e toda uma ginocracia de umbigo à mostra, guardada por um clero do terceiro sexo. Entre estes, Mário move-se ansioso. Na penumbra dum vértice, acende o cigarro: A festa é uma congregação de átomos, medita, Aqui abunda a endogamia… As roupas e a música são sinalizações… Sinalizações de status… Explica-se tudo pela selecção sexual…
Chega, por fim, o toque no ombro (chega demasiado rápido, parece-lhe).
– Mário, certo?
É ela, a rapariga. Surge muito sorridente. Como não o ultrapassa em altura, Mário sorri-lhe também (caso contrário, nem um «olá» conseguiria dar-lhe). Sucedem-se as esperadas hesitações. Foram, até então, estranhos num ecrã – frases pensadas e fotografias. É ela que rompe com a estranheza. É ela que, vibrando de freneticidade, parte busca dum terreno comum. No hálito a cerveja, voam os elogios ao espaço e à música.
– Adoro isto! É o ‘memo o meu tipo de sítio. Já conheci montes de pessoal fixe aqui. Olha, antes da pandemia, passava cá a vida a ver concertos!
Tipologização imediata: Uma hipsterzinha a chegar aos trinta… Demasiadas relações falhadas… Demasiados músicos que não lhe disseram mais nada… ‘Tá sempre a correr atrás do que se passa, tem pavor em ficar pra trás… Uma viciada em dopamina fácil…
Ela continua.
– Ainda ontem vim cá ver um concerto! O trio do André Carvalho, conheces?
– Não, não conheço.
– Oh pá, ele é um génio!
Abusa da palavra «génio»… É das que deixa livros a meio… Tem um poster do Kurt Cobain no quarto...
– Agora vive Nova Iorque.
– Quem? – pergunta Mário, distraído.
– O André Carvalho! Ele ‘memo aquele puro jazzman. Foi pra Nova Iorque, ‘tá sempre a tocar em clubes. Tem ‘memo talento, ganhou prémios logo com os dois primeiros álbuns. Um deles foi um Carlos Paredes! E ele vai muito além do jazz… Mistura montes de cenas! Olha, até já fez uma tour com o Gilberto Gil.
Mário vê-se no dever antagonizar, de demonstrar o seu valor reduzindo a cinzas o gosto alheio.
– Não gosto muito de jazz – diz à rapariga.
– Não?
– Não. Aliás, deploro jazz… É um estilo que perdeu todo o respeito por si próprio. Só serve pra decorar festas. É uma música muito diplomática, é verdade, mas é diplomática porque ninguém lhe presta atenção. Ou então, é o contrário: é um item de status. As pessoas usam o jazz pra sinalizar uma certa mediocridade intelectual. Acham que se mencionarem os grandes nomes passam por apreciadores. Como se ser um apreciador de jazz fosse algo de sofisticado… Na realidade, a tendência cultural é a de não se saber patavina do que agora se faz no jazz. E, se queres a minha opinião, não há nada de errado com isso. Ninguém quer assim tanto saber. É melhor não querer saber do que falar de nu jazz ou de nomes obscuros que só dão a ideia de um investimento insensato no pseudointelectualismo.
Para Mário, o amor é pugilismo e não uma dança. A rapariga, contudo, lá no cume da sua embriaguez, sente que o amor é sobretudo dar, e recebe o comentário como um beijo. Um beijo bruto e desajeitado que ela confunde com crítica honesta.
– Bem observado. «Item decorativo para festas»… Mas olha, o concerto foi muito fixe! O trio dele é muito bom. Foram apresentar um álbum chamado Lost in Translation.
– Como o filme?
– Sim, é muito engraçado! O conceito do álbum é explorar palavras intraduzíveis. Significados que só existem em dez línguas do mundo. Por exemplo… Olha, achei isto ‘tão engraçado… Sabias que na Índia há uma palavra prà marca deixada na pele pela roupa apertada? «Karelu». E o André Carvalho tem uma música com esse nome. A música ilustra bem o significado da palavra… consegue ‘memo invocar a sensação duma comichão! E é single do álbum. Mas tens outra… a minha preferida… a «kilig»! É filipina. É a excitação relacionada com o amor. Olharmos nos olhos do nosso crush pela primeira vez, vermos alguém declarar-se a outra pessoa… Acho bonito. O mais próximo que temos, no português, é a «paixão». Mas a paixão não é kilig. A paixão é obsessiva e dói. Kilig é mais uma contemplação. Preenche-nos e eleva-nos. E a música… Olha, a música que eles têm com esse nome, se tu ouvires, mostra-te ‘memo o que quero dizer. É duma calma transbordante, é tão…
A descrição da rapariga é completa e minuciosa, abordando as dozes faixas do álbum. Mais do que uma vez, ela salienta que André Carvalho faz um invulgar uso do silêncio. Mário, deplorando a crítica descritiva, achando-a dum pedantismo tosco, tenta, apesar de tudo, escutar (como mero compasso de espera).
– O som percorre um negro vazio… Não há percussão! Não há ritmo de fundo nem sensação de permanência!... A guitarra, o contrabaixo e o saxofone vêm, cada um, do seu sítio! Depois chocam… Umas vezes seguem juntos… Outras vezes não… É como tudo!... É como a vida.
Diz-se que Natureza é indiferente à felicidade do homem. E é isso, precisamente, que Mário sente naquele momento. Reduzido a um cúmplice da verborreia das Artes! O seu espírito conspurcado pelo papel de ouvinte… Tudo pelo sexo!
– O álbum é como um dicionário de emoções – continua a rapariga – Tenta dar-nos o sentir por detrás das palavras.
Inaceitável! Oh, é inaceitável! Mário teve que chegue. Seja ou não a altura certa, ele atacará com força! Obliterará esse tal André Carvalho!
– Resumindo… Temos um álbum com um título de um filme, um estilo moribundo e um conceito banal. É isso, não é?
Surpreendida pelo tom, a rapariga desfaz-se numa crispação interrogativa.
Mário continua:
– É isso que resta ao jazz? Dizer-me que culturas diferentes usam palavras diferentes? Por favor… No máximo, é trivial! Criaram-se diferentes abreviaturas conceptuais na Índia... E então? Os indianos precisaram de uma palavra prà marca da roupa apertada… Uau! Gigantesco contributo prà Antropologia! O mundo é tão mais amplo do que eu esperava! E depois… como era a outra palavra holandesa? A da caminhada ao vento…
– «Uitwaaien»…
– Isso! O que tem de especial? É muito contemplativa, é claro… Mas e então? Uns povos foram mais estéticos na linguagem do que outros. E como é que isso salva o jazz da insignificância?
E nossa rapariga, estonteada, incrédula, confusa, volve com um tímido:
– É a exploração dum conceito.
– Dum conceito! Pois ‘tá claro! O «conceito»! O refúgio de toda a subarte! Por amor de Deus… Andamos a explorar conceitos desde o urinol do Duchamp! E ganhámos o quê com isso? Um conjunto de coisas cujo valor não é autoevidente! Coisas que precisam de ser explicadas…
– Eu acho que… o conceito ou é bem ou mal representado.
– Isso é dizer nada sobre o valor da arte!
Agora a rapariga percebe… Firma-se chão firma-se por debaixo dos seus pés! Intui, por fim, que pisa um ringue. E a defesa sai-lhe instintivamente: responde que quem representa devidamente o conceito merece o seu mérito. Mas o argumento é fraco. Define circularmente um padrão avaliativo, mas não o justifica. Mário, a quem nada disto escapa, atiça-a com um riso trocista, e acrescenta:
– Como assim? A melhor arte é autoevidente! Não precisa de ser explicada! Não precisa de muletas intelectuais pra se fazer valer. Beleza e sublimidade… é isso que faz a arte!
A rapariga defende-se:
– Não concordo. Acho que as coisas evoluem. Se calhar, agora, é preciso ser-se um bocadinho menos óbvio como artista. É preciso pensar. Não sei porque é que isso é mau… Quero dizer… a arte incentiva-nos a pensar. Não sei porque é que isso é mau…
– Exacto! Disseste bem: «É preciso pensar»! Dantes, era preciso sentir. Era preciso ter-se uma sensibilidade refinada!
– E hoje em dia é preciso ser-se inteligente.
– Inteligente? Inteligente pra ler Marx? Ou Foucault? Ou Derrida? Ou pra partilhar um senso-comum político qualquer?
Oh, coisa terrível, a esperança! Faz a nossa amiga baixar a guarda…
– Olha, já que falas nisso… A premissa do André Carvalho é aquela frase do Wittgenstein: «Os limites da linguagem são os limites do meu mundo».
Doce criatura… Provavelmente cheia de amor! Mas, sobretudo, uma criatura leviana. Das que se mete na boca do lobo.
Mário ataca, como é esperado.
– Pronto, aí tens! A porra do Wittgenstein! É tão óbvio! Ah, a arrogância… Todos os «artistas» se agarram aos ‘memos intelectuais pra se porem num pedestal. É tão ridículo… A arte tornou-se elitista sem se ter tornado nobre.
– Sabes que mais, Mário? Ganhaste – por fim, ela ergue-se como um titã! – ‘Tou convencida: gosto de má música má e sou vulgar. Tens mais alguma coisa pra eu descobrir?
Mário não tem resposta. Pertence ao tipo combatente, ao tipo que paralisa (ou adoece) na ausência da luta. Tudo o que lhe resta é pedir clemência!
– ‘Tás a levar isto demasiado a sério...
– Faz parte da minha vulgaridade. Nem todos podemos cínicos. Só queria dizer-te que gostei do concerto d’ontem. E tu gostas de alguma coisa?... Espera… Sabes que mais? Não quero saber… Adeus, Mário.
Que vá com Deus, esta nossa amiga! Que não lhe falte a coragem nem o discernimento para evitar os Mários! O nosso Mário, por sua vez, não voltará a vê-la. E tudo indica, pensamos nós, que ele assim o quer. Mas não é verdade. Mais tarde, na hora crepuscular, o nosso protagonista vê-se esmagado por uma tristeza pós-masturbatória. Ao limpar-se com um guardanapo, abre-se-lhe uma fenda nas muralhas do cinismo. Um sentimento corre livre pelas pradarias da alma! O caos e a desordem trovejam! E os monumentos da arrogância, edificações de preconceitos defensivos, vêm-se destroçados por uma chuva de lágrimas! Oh, pobre Mário… Pensando na rapariga, pensando no entusiasmo sorridente com que esta lhe falara daquele sítio tão pretensioso e daquele álbum tão conceptual, não consegue evitar sentir-se sozinho. É, portanto, o desespero que o faz ouvir o álbum. Lá vai ele ao Bandcamp, visitar André Carvalho, não demorando muito até testemunhar o juízo aguçado da rapariga: Há um uso notável do silêncio… As palavras são realmente pequenas histórias… O álbum não é previsível, mas também não é anárquico… Percebo a cena do gajo: a música é usada para expandir a linguagem… Não só a dele, mas toda a música… até a pop… É uma tese descritiva… Realmente, é mesmo isso que acontece… Acuse-se, ou não, o nosso Mário de embriaguez sentimental, ele está, por esta altura, aberto ao conceito. Tão aberto ao conceito que ao escutar a tal faixa de nome «Kilig», essa pequena narrativa sobre a contemplatividade romântica, julgar ver o sorriso da rapariga uma vez mais. Vê-se reduzido a um fantasma, a um testemunho silencioso e impotente da alegria de viver, pairando sobre todos os amantes que, ao contrário dele, foram ou são felizes. O que lhe parece certo, agora, – o que lhe parece redentor – é comprar dois bilhetes para um concerto do André Carvalho. Já consegue ver-se de mão dada com a rapariga que perdeu entre o público. Oh, pobre Mário… Certamente não voltará a vê-la.
André Fontes
Licenciado em Filosofia, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e pós-graduado em Artes da Escrita, pela Universidade Nova de Lisboa. André publicou, em 2019, o seu primeiro romance, Saturnália, editado pela Guerra e Paz Editores.