|
METADE DOS MINUTOS, PQ23, Angela Rocha. © Jakub Hrab
A Quadrienal de Praga é uma mostra internacional nas áreas do design de cena, cenografia e arquitectura teatral. A cenógrafa Ângela Rocha representou oficialmente Portugal nesta 15ª edição, que decorreu de 7 a 18 de junho de 2023, com o projecto “Metade dos Minutos”. Em conversa com a Artecapital, Ângela Rocha falou sobre esta instalação artística imersiva que incidia na dimensão táctil, e que “mais do que uma ideia” pretendeu “ser um reflexo, permeável à matéria e ao público.” A importância do público como parte da obra é uma questão reforçada aqui pela cenógrafa, chamando a atenção para “a necessidade de dar voz ao corpo e enaltecer as mãos e o seu poder transformador e conector com o mundo e o tempo”, pois a “cenografia não se encerra no teatro assim como o teatro não se encerra no palco.”
Por Liz Vahia
:::
Como é que descreveria o projecto “Metade dos Minutos”, que recentemente representou Portugal na Quadrienal de Praga de 2023? E de que forma ele se enquadra no objectivo da Quadrienal de apresentar a cenografia como uma experiência que vai “para lá do visual” e que cria “mundos de sensações”? A DGArtes justificou a escolha da proposta curatorial da Ângela com a ênfase que dá ao “visitante como agente activo e decisor”.
Metade dos Minutos é uma instalação artística que se debruça sobre a tomada de consciência do corpo no espaço, apresentando de forma imersiva a reivindicação do Presente espacial e temporal.
O seu núcleo incide na dimensão táctil. Como se através de um gesto que vê, explora texturas de forma saturada, articulando uma realidade de excessos visuais, que pretende reanimar a nossa sensibilidade táctil. Todos os elementos são inteiramente engolidos pela organicidade de texturas distintas num diálogo de afetação entre matéria e corpo, desenvolvido no especto de contrastes entre o que cativa e o que repele.
O seu formato de labirinto impede a objetificação do lugar, privilegiando o potencial meramente exploratório e colocando o visitante no centro da ação. Mais do que um espaço, almeja ser um conetor, mais do que uma ideia deve ser um reflexo, permeável à matéria e ao público.
Enquanto cenógrafa, o público é uma peça fundamental e significante. Metade dos Minutos reflete inevitavelmente essa importância, intensificada pela oportunidade de proximidade. A organicidade viva que reage ao visitante procura um diálogo permeável ao lugar individual do público, implicando-o como agente ativo e decisor.
METADE DOS MINUTOS, PQ23, Angela Rocha. © Bruno Simão
Sendo o tema desta edição da Quadrienal “Rare” (traduzido para “visões raras” em Portugal), acha que o lado táctil do projecto “Metade dos Minutos” chama a atenção para esta dimensão que agora nos é cada vez mais “estranha”, por afastada da maioria das experiências sensoriais que temos hoje? A pandemia terá contribuído também para essa ideia de que a presença pode estar dissociada do “toque” e da matéria?
Numa era que impera pelo ruído industrial e pela velocidade, quando me confrontei com a temática da Quadrienal de Praga 23 - Visões Raras - foi gritante a necessidade de dar voz ao corpo e enaltecer as mãos e o seu poder transformador e conector com o mundo e o tempo.
A expressão manual sempre me interessou. Por um lado, pelo enriquecimento de vocabulário gestual e expressivo que abarca. Dinamiza o corpo. Flexibiliza a amplitude da sua complexa e meticulosa engrenagem. Aprender uma técnica é participar numa conversa silenciosa. Estamos a ser expostos ao engenho humano e inevitavelmente a vestígios do pensamento que o serviu, a sua necessidade, a sua filosofia, praticidade e lógica. Apropriarmo-nos desses gestos é uma forma de nos aproximarmos do que foi o nosso caminho. Tomar contacto com uma arte do fazer é ler uma forma humana do sentir e do pensar. Por outro lado, na manualidade existe um tempo muito próprio que com o acelerar da vida urbana e a automatização da linguagem maquinal já tantas vezes nos escapa. A presença profunda da tecnologia no nosso dia-a-dia consegue agregar as mais diversas ações nos mesmos gestos – pressionar e deslizar. A perda de vocabulário de expressão é ainda aguçada pelas características das superfícies que pressionamos, que são por norma frias e pouco estimulantes sensorialmente.
No contexto pandémico somámos a este declínio a perda de espaço coletivo. A distância tornou-se a medida de todas as coisas, sobrepondo, erradamente, a noção de perigo ao valor do toque.
A falta de escuta do corpo num caminho de intelectualização excessiva, veda a franqueza e deleite da mera sensação emotiva e ligação plena no estar, do aqui e agora.
A instalação Metade dos Minutos é uma tentativa de reconexão com a escuta do sentir mais terreno.
METADE DOS MINUTOS, PQ23, Angela Rocha. © Jakub Hrab
As duas “portas de saída” do projecto “Metade dos Minutos” foram concebidas por dois artistas convidados. Como é que surgiu essa ideia e como surgiu o convite ao Diogo Costa e à Telma Faria?
Como é que a ideia de “saída”, pensada conceptualmente, se relacionava com o todo da obra?
O formato de labirinto surgiu como imperativo de movimento. Não objetivar o espaço mas colocar-nos num lugar de possibilidades, numa ideia de futuro que é o percurso e não uma meta.
O futuro quer-se sobretudo plural, daí sentir-me impelida a diversificar e enriquecer a experiência do visitante, conceptualmente e plasticamente, através da integração de obras de diferentes artistas plásticos.
A possibilidade de integração surge enquadrada na ideia de periferia, nas possíveis saídas (invariavelmente entradas também!) do labirinto. A premissa seria dar aos artistas a maior independência criativa possível dentro do desafio do que teria de ser uma porta funcional num percurso que se relaciona intrinsecamente com a ideia do toque.
O convite surge assim aos artistas Diogo Costa e Telma Pais de Faria dos quais tenho acompanhado os seus percursos e com os quais me identifico e admiro.
O Diogo Costa tinha um percurso mais relacionado com o desenho e pintura que me pareceu intrigante na exploração da ideia táctil e a Telma Pais de Faria nas suas criações têxteis com enorme potencial para o toque.
O esforço de criar esta visão e sinergia global foi ainda reforçado pelo facto dessas “saídas” reconduzirem a outros espaços expositivos dos países vizinhos, diluindo a ideia de fronteira e entregando discretamente o visitante na continuação do seu percurso.
METADE DOS MINUTOS, PQ23, Angela Rocha. © Bruno Simão
Consegue fazer já um balanço pós-quadrienal? Que reacções é que registou ao longo do evento, tanto no local como em Portugal? O projeto "Metade dos Minutos" foi mesmo o vencedor do PQ Kids Award desta edição.
A sensação é de missão cumprida. É de felicidade.
Enquanto cenógrafa tenho pouco contacto com a reação das pessoas ao meu trabalho, apesar de estarem sempre no horizonte.
Como existe uma espécie de antecâmara na entrada do labirinto, podíamos ver as reações das pessoas, as expressões, exclamações, sorrisos…
Foi para mim um enorme privilégio receber em primeira mão as reações tão emotivas e generosas, confesso que por vezes até me arrepiei.
Quando frequentemente a reação é um “uau”, há algo dentro de mim que se comove infinitamente, porque de alguma forma por um breve instante sinto que conseguimos deslumbrar aquela pessoa, o que, por mais breve que seja, parece-me uma força vital para caminhar em torno do futuro.
Foram mais de cinco mil visitantes a experienciar Metade dos Minutos, um enorme fluxo, que apesar das filas não impediu a que muitos a quisessem repetir. A pessoa que contabilizamos ter ido mais vezes somou um total de 7 idas.
Foi bonito ver a reação das pessoas quando descobriam o sentido para o qual os alfinetes não magoam, ou o espanto quando se apercebiam que tinham sido espetados manualmente mais de meio milhão de alfinetes.
Foram muitos meses de dedicação e, este gesto laborioso tinha como primeiro e último objetivo chegar às pessoas. Elas é que dão sentido e vida à instalação, por isso não poderia pedir melhor retorno. Obrigada.
Para culminar a nossa presença na Quadrienal de Praga, recebemos o prémio do público jovem, a meu ver os mais exigentes na sua honestidade bruta, o nosso futuro!
Como comentou um visitante num dos últimos dias, fazia-lhe todo o sentido que tivéssemos sido distinguidos com esse prémio porque a instalação tocava numa essência humana.
Quero ainda brindar à fantástica equipa que tornou esta ideia possível, foram mais de 42 mãos a materializa-la!! E salientar a importância do apoio e compreensão que a Direcção-Geral das Artes demonstrou para com os princípios norteantes deste projeto.
Espero que num futuro próximo consigamos voltar a expô-la, estamos a trabalhar nesse sentido!
FRAGMENTS II. Obra de Rita Lopes Alves, © Angela Rocha
A Ângela foi ainda a responsável pela curadoria do projecto para a secção “Fragmentos II”, onde esteve a peça “1:20” de Rita Lopes Alves. A secção tinha como tema “Magic of Scale”, como é que a peça da Rita Lopes Alves se enquadrava aqui?
A obra 1:20 de Rita Lopes Alves apresenta como núcleo base um fragmento real da sua bancada de trabalho, o maior testemunho da sua obra cenográfica, recetáculo das sucessivas impressões de processos, que resulta, per se, numa obra visual tão fidedigna e histórica como abstrata.
A secção Fragments II tem como mote a reflexão do que remanesce numa arte que é por natureza efémera. Enquanto curadora parece-me de uma enorme pertinência termos acesso a este fragmento, a obra que se faz a si mesma num jogo poético e desprendido com o tempo dos gestos e as suas ausências. A "Magia da Escala" é aqui abordada através da dimensão micro e macro dos registos fragmentados dos seus vários projetos. As circunstâncias atuais, nomeadamente o falecimento de Jorge Silva Melo, incitaramm também a reflexões sobre a nossa própria história e as órbitas da vida e da arte.
A escolha da Rita recai também num fator pessoal. Concluí que o que fica depois dos trabalhos são as pessoas. Foi com a Rita que comecei a trabalhar em Teatro, foi com ela que aprendi como funciona a engrenagem e dinâmica da arte teatral, além da enorme estima que lhe tenho como ser humano. Tirando o óbvio mérito deste convite, ele pretende ser ao mesmo tempo um agradecimento e um elogio.
Como vê o papel de eventos como a Quadrienal de Praga na promoção da ideia de cenografia como criação artística e não só como um “adereço” performativo?
Construir um espaço é construir-nos a nós mesmos.
Uma plataforma com a dimensão da Quadrienal de Praga que reúne fazedores e pensadores de todas as partes do mundo dando-lhes um lugar e tempo para imaginar, problematizar e entrecruzar o futuro da nossa arte, é um passo fundamental para a tornar cada vez mais lata e metamórfica. A criação cenográfica é das artes mais abrangentes, não só pela sua característica única de ter de ser habitada, não se encerrando em si mesma, como é de uma fertilidade imensa por poder ir beber a todas as técnicas e origens. A cenografia não se encerra no teatro assim como o teatro não se encerra no palco.
:::
Ângela Rocha, apresentação PQ23, Mirabolante, Lisboa 2023 © Bruno Simão
Ângela Rocha
(1988 – Erada, Covilhã)
Frequentou o curso profissional Geral das Artes da Escola Artística António Arroio. É diplomada em Teatro, no curso de Design de Cena, pela Escola Superior de Teatro e Cinema e foi bolseira do Programa Leonardo Da Vinci, em Roma na Companhia Matéria Viva.
Foi assistente de Cenografia e Figurinos na companhia Artistas Unidos. Assinou trabalhos de cenografia e figurinos para encenadores como Cláudia Gaiolas, Guilherme Gomes, Gonçalo Waddington, João Pedro Mamede, Madalena Marques, Maria João Luís, Raquel Castro, Ricardo Neves-Neves, Teresa Coutinho, Tiago Guedes, Tiago Rodrigues, entre outros.
Marcou presença em diversos festivais a nível nacional e internacional, nomeadamente no Festival D´Avignon, com a peça “António e Cleópatra” de Tiago Rodrigues. É cofundadora do Condomínio – Festival de cultura local em espaços habitacionais, num total de 8 edições. Em 2019 venceu o prémio SPA de Melhor Cenografia pelo espetáculo “Sweet Home Europa”, uma produção do Teatro D. Maria II. É atualmente a representante oficial de Portugal na Quadrienal de Praga 2023, a maior mostra internacional de artes plásticas do espetáculo.
No seu trabalho procura aprofundar uma relação sincera entre o potencial plástico intrínseco às matérias, a sua repetição e a via da invocação mais do que uma vertente realista, num diálogo permeável ao lugar individual do público. Caracteriza-se ainda por construir muitas das suas concepções, o que lhe permite um lugar de permanente aprendizagem de meios e formas.