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Ciclone, de Leonor Cabral e LAMA Teatro. © Vitorino Coragem
O teatromosca é uma companhia de teatro fundada em Sintra em 1999. O seu trabalho mais recente desenvolveu-se em torno da fusão entre as linguagens cinematográficas e as teatrais – “Ned Kelly” (2020), espetáculo vencedor do Prémio Autores para melhor trabalho cenográfico, “Estúdio: Flores” (2020), “Maridos” (2021) e “A Ilha de Morel” (2022). Foi considerado pelo Jornal Expresso como "um dos mais interessantes, honestos e originais grupos de teatro portugueses". Em 2011 iniciou o projeto editorial, moscaMORTA, que visa publicar textos originais de novos dramaturgos portugueses. Desde 2015, organiza, anualmente, o MUSCARIUM - festival de artes performativas em Sintra, e, desde 2017, é responsável pela programação e gestão do AMAS – Auditório Municipal António Silva, em Agualva-Cacém. Paralelamente, desenvolve um conjunto de projetos de intervenção comunitária, envolvendo artistas e públicos na produção e fruição das suas muitas atividades.
“Contra o medo” é o mote que guiará o ciclo de programação para 2023 e foi a esse propósito que a Artecapital falou com Pedro Alves e Maria Carneiro, directores artísticos do teatromosca, sobre o tema e o já longo percurso da companhia e suas diversas actividades. O que propõem como abordagem para este ano é mais que certeiro, tendo em conta a situação actual geopolítica, financeira e quotidiana de cada um de nós: “Num período histórico devoto à velocidade, queremos investir na suspensão do movimento vertiginoso como um ato de coragem para olhar o mundo, prestar atenção às pessoas, refletir.” Segundo os directores artísticos, essa “atenção” passa também por combater “o medo de arriscar, o receio de experimentar algo novo, de fazer as coisas de um modo diferente daquele que era habitual, de nos encontrarmos com outros que ainda não conhecíamos, de tornar familiar o estranho e de tornar estranho o que tínhamos como familiar.”
A programação para 2023 já está disponível no website da companhia, iniciando-se já no dia 19 de Janeiro com o espectáculo “CICLONE”, criação de Leonor Cabral e LAMA Teatro.
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O teatromosca tem um trajecto longo e diversificado em termos de actividades. Que balanço fazem desse percurso?
Como foi trabalhar na zona de Sintra? Sentem que o contexto social e cultural se alterou desde o início do projecto em 1999 até à actualidade?
O teatromosca tem procurado afirmar-se, cada vez mais, como estrutura de criação e programação artística atenta às realidades líquidas em que vamos vivendo. Criada no concelho de Sintra no final da década de 1990 - período de forte investimento na Cultura de que serão bons exemplos o facto de Lisboa ter sido Capital Europeia da Cultura ou de Portugal ter acolhido a Exposição Mundial de 1998, e em que surgiram vários novos coletivos na área do Teatro ou da Dança, tanto local, como nacionalmente -, a companhia tem-se mantido permeável às transformações que vão ocorrendo (em Portugal, na Europa...), ao mesmo tempo que vai dialogando, quase sempre de um modo crítico, com os contextos sociais e culturais em que vai atuando. Se, inicialmente, nos assumíamos, exclusivamente, como produtores e criadores teatrais, aos poucos, o trabalho do teatromosca foi expandindo-se para outros “territórios”, outras geografias, de facto, mas investindo também na criação de objetos que cruzavam diferentes disciplinas artísticas e apostando no desenvolvimento de um conjunto de outros projetos de intervenção comunitária. Nesse sentido, fez-nos sentido passar a organizar conferências, workshops, realizar projetos com crianças, jovens, pessoas com deficiência, com a população sénior, a estabelecer parcerias, intercâmbios e coproduções com entidades públicas e privadas nacionais e internacionais, organizar um festival anual de artes performativas ou passar a gerir e programar um auditório municipal na cidade de Agualva-Cacém. Tudo isto, mantendo sempre focados na criação de um reportório artístico que entende o território que habitamos como uma espécie de observatório privilegiado dos novos impasses, desafios e tensões que se colocam à experiência urbana contemporânea. Entendemos que Sintra deve constituir-se como centro de irradiação cultural para todo o país. Assim, pretendemos afirmar o teatromosca como estrutura capaz de servir o circuito artístico nacional e internacional, procurando a diversidade de públicos, de ligações artísticas e de produção e de estratégias de implantação.
Look Back in Anger, pela Companha da Esquina. © Companha da Esquina
Desde 2017 que fazem a gestão do AMAS - Auditório Municipal António Silva, onde apresentam regularmente espetáculos. Presumo que o contacto com outras companhias seja também muito frutífero para o vosso trabalho como artistas. Como é que conciliam essa actividade de programação com a de criação?
A partir de determinada altura, pelo volume de trabalho que tínhamos, pela sua especificidade – os processos criativos, por exemplo, eram cada vez mais demorados e exaustivos -, pela dimensão e pela diversidade das atividades que desenvolvíamos, tendo em conta as redes que vínhamos a construir com outras companhias e artistas, atendendo ainda aos diferentes públicos que nos iam acompanhando, começámos a sentir uma certa urgência em possuir um espaço de ensaios adaptado às nossas necessidades e mais urgente ainda era a vontade de gerir um espaço de programação que nos permitisse trazer para o concelho de Sintra e, mais especificamente, para a cidade de Agualva-Cacém, propostas artísticas com as quais nos identificávamos ou que entendíamos que fazia falta trazer aqui. E, desta forma, ao mesmo tempo que passámos a ter capacidade para acolher com regularidade aqueles que já nos acolhiam, pudemos ainda aprofundar relação com outros coletivos e outros artistas, dando-nos a possibilidade de conhecer melhor outras formas de criar e produzir, outros modos de ver o mundo. Tem sido muito importante continuarmos a crescer em contacto com outros, aprendendo com eles, dialogando, discutindo, refletindo, entrando muitas vezes em conflito, procurando soluções, alternativas, juntos. Contudo, essa vertente de programação que já vínhamos a ensaiar, pelo menos, desde a primeira edição do festival MUSCARIUM, em 2015, trouxe enormes desafios. A equipa começou por estar sobrecarregada, tínhamos demasiado trabalho e éramos poucos, o orçamento era curto e a estrutura teve que crescer muito rapidamente, os orçamentos duplicavam de ano para ano, a equipa nuclear duplicou. Assim, num curto espaço de tempo, a companhia passou de ser, quase exclusivamente, criadora, também a programadora, e a complexidade do nosso trabalho aumentou muito, exigindo enorme flexibilidade e uma predisposição diferente para novas aprendizagens, e para a adoção de novas metodologias e alterações nos processos. Aqui pelo meio houve uma crise pandémica, à qual a companhia reagiu rapidamente, produzindo e acolhendo espetáculos transmitidos em live streaming - recorrendo às competências que tínhamos vindo a acumular nos últimos anos com o trabalho em torno, especificamente, do vídeo - e continuando a nossa ação em projetos de intervenção comunitária, nomeadamente o Teatro Duas Senas e o Grupo de Teatro Sénior. Dizer, por fim, que a responsabilidade de gestão e definição de programação de um auditório municipal nos satisfaz muito, ao mesmo tempo que representa um importante desafio que só é possível graças à colaboração de todos os que nos acompanham e se vão juntando a nós.
Provavelmente Saramago, pela Musgo Produção Cultural. © Danilo Ferrara
O teatromosca organiza também o MUSCARIUM, festival de artes performativas, cuja 9ª edição vai ter lugar de 2 de setembro a 1 de outubro em Sintra. Como é que surgiu a ideia de um festival? Veio colmatar algo que não é possível numa programação “regular”, algo mais experimental, mais arrojado?
Quando desenhámos a primeira edição do MUSCARIUM pensávamos, precisamente, no AMAS - Auditório Municipal António Silva, espaço cultural sintrense que, atualmente, gerimos. O auditório estava subaproveitado. A autarquia não tinha recursos (humanos e financeiros) para assegurar uma programação regular, constante e diversificada deste equipamento. A sua abertura dependia cada vez mais da nossa iniciativa. Eram raríssimas as vezes em que a sala abria para acolher um espetáculo. E nós tínhamos já estabelecida uma significativa rede de contactos com outros artistas e coletivos, nacionais e internacionais, que pretendíamos acolher em Sintra. Decidimos então criar um festival que nos permitiria, durante um curto período temporal, contribuir também para a formação de públicos numa zona de alta densidade populacional, mas que sentíamos (e sentimos ainda) que tinha (tem!) escassa oferta cultural. Depois, seria também uma importante forma de promovermos o diálogo entre artistas e companhias, assim como, destes com os públicos que já nos acompanhavam e outros que esperávamos vir a alcançar. Nos primeiros anos, os espetáculos e atividades paralelas concentraram-se na cidade de Agualva-Cacém. Passaríamos a integrar espetáculos de dança e música, promoveríamos ações de formação e organizaríamos exposições, e, a partir do momento em que começámos a programar o AMAS ao longo de todo o ano, passámos então a estilhaçar as atividades do festival por diversos espaços do concelho e começámo-nos a questionar em relação aos objetivos do MUSCARIUM. Faria sentido continuar com o festival nos moldes em que o vínhamos a realizar? Em 2022, decidimos mudar um pouco as coisas e apostámos na construção de um espaço que privilegiasse a criação e a experimentação artística, promovendo várias residências artísticas em diferentes espaços do concelho de Sintra. Desde o ano passado, convidamos artistas e companhias de distintas áreas como o Teatro, a Dança, a Música, a Performance, para virem para Sintra criar os seus projetos, não importa em que fase de criação/produção possam estar. Por vezes, as ideias para um novo espetáculo vão surgindo aqui, na sala de um museu em Rio de Mouro, uma coreografia começa a ser esboçada numa galeria de arte em Sintra, um espetáculo de teatro passa pela última fase de ensaios num auditório em Queluz, uma performance estreia numa praça de Mem-Martins, ao mesmo tempo que podemos ter um concerto dentro da carruagem de um comboio na linha de Sintra... Acreditamos que, deste modo, estamos a criar espaço para a experimentação artística, a dar condições de trabalho para os artistas (na sua grande maioria, jovens) desenvolverem os seus projetos e para os públicos terem acesso privilegiado a essas diferentes fases dos processos criativos. Por enquanto, a aposta do festival vai neste sentido, ao mesmo tempo que continuamos a acolher alguns espetáculos em vários espaços do concelho.
Ode Marítima Remix, pela Companhia João Garcia Miguel. © Mário Campos Raínha
O vosso ciclo de programação para 2023 tem como título “contra o medo”. Querem explicar melhor o que pretendem com este mote?
Claramente, é uma tomada de posição em relação ao caos que se apoderou da Europa (do mundo?). Os regimes ditatoriais proliferam. As formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou procuram justificar a intolerância e o ódio vão-se propagando. Assim, tomamos para nós as palavras de Shakespeare - “Os cobardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas os corajosos experimentam a morte apenas uma vez.” - e decidimos conceber um plano de atividades que se reveste de “coragem”, como ação do coração, cruzando-se ainda com as ideias de Zygmunt Bauman: “Sem humildade e coragem não há amor. Estas duas qualidades são exigidas, em escalas enormes e contínuas, quando se entra numa terra inexplorada e não-mapeada. E é a esse território que o amor nos leva ao se instalar entre dois ou mais seres humanos.” Num período histórico devoto à velocidade, queremos investir na suspensão do movimento vertiginoso como um ato de coragem para olhar o mundo, prestar atenção às pessoas, refletir. Assim, se vamos criar espetáculos para o público infantojuvenil onde se manifesta o desejo de falar sobre os medos, de uma criança e de um homem idoso, numa coprodução com os nossos amigos do Teatro Art’Imagem, da Maia, e do La Tête Noire, La Compagnie, companhia de teatro de Órleans (França), ou se levaremos a cena o texto inédito em Portugal da aclamada escritora austríaca Elfried Jelinek, “Os Protegidos”, em coprodução com o Theatro Circo de Braga e o Colectivo Glovo, numa acutilante e atualíssima reflexão sobre os refugiados, se construiremos um projeto com o LAMA Teatro que terá a Revolução do 25 de Abril de 1974 como pano de fundo, e outras propostas em colaboração com o Teatro do Silêncio, o Teatrão, O Fim do Teatro, a Hipérion Projeto Teatral, o coletivo francês Les Bâtards Dorées, a companhia finlandesa Kekäläinen & Company, também é certo que pretendemos combater ainda o medo de arriscar, o receio de experimentar algo novo, de fazer as coisas de um modo diferente daquele que era habitual, de nos encontrarmos com outros que ainda não conhecíamos, de tornar familiar o estranho e de tornar estranho o que tínhamos como familiar.
Querem destacar alguns dos espectáculos que vamos poder ver na programação de 2023?
Não seria leal da nossa parte, para os artistas que convidamos para aqui apresentarem os seus trabalhos e para os espetadores que queremos que venham assistir a uma programação, assumidamente, eclética e heterogénea, que aqui destacássemos apenas algumas de entre as dezenas de propostas que vamos ter no AMAS e na edição de 2023 do festival MUSCARIUM. Boa parte da programação do AMAS já está disponível para consulta no nosso site e, em breve, serão anunciadas todas as atividades do festival.
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Pedro Alves nasceu em Sintra, em 1979. Cofundador e diretor artístico do teatromosca, onde tem desempenhado funções de ator, encenador e produtor. Licenciado em Estudos Artísticos, na variante de artes do espetáculo, e Mestre em Estudos de Teatro pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Frequentou ações de formação na área da gestão cultural, produção, encenação, gestão de projetos e recursos humanos e animação sociocultural, entre outras. Desempenhou funções de formador e encenador do Grupo de Teatro da Faculdade de Farmácia de Lisboa. Colaborou com o Quorum Ballet em diversos espetáculos na função de dramaturgista. No teatromosca, dirigiu, entre outros, os espetáculos “Dog Art”, “Kip”, “As Três Vidas de Lucie Cabrol”, “Europa”, “Tróia”, “Moby-Dick”, “O Som e a Fúria”, “Fahrenheit 451”, “Kif-Kif”, “O Deus das Moscas”, “Ned Kelly”, “Maridos” ou o projeto “MODOS DE VER”.
Maria Carneiro nasceu no Porto, em 1988. Desde 2014 colabora com o teatromosca tendo, em abril de 2022, assumido as funções de codiretora artística da companhia. Entre 2016 e 2022 foi coordenadora de produção do Teatro da Trindade INATEL, e assessora da direcção, a partir de 2019. Em 2019, completou o MMIAM – Master of Management in International Arts Management, que teve lugar em seis países e cinco universidades. Foi assistente de encenação de Kirsten Delholm na companhia dinamarquesa Hotel Pro Forma e estagiou no The Centre for Performance Research no País de Gales. Tem produzido críticas e artigos para diversas publicações nacionais e internacionais, na área das artes performativas.