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“My mind is a machine gun, my bodies are bullets, the audience is the target”. É com este ímpeto que Kevin Michael Allin se apresenta ao mundo. Numa obra polémica que passa pela imagem, pelo discurso, uma música nociva e directa que está em constante equilíbrio entre o crime e a arte. Após o surgimento do Punk em Inglaterra nos anos 70, o género diverge-se e Kevin Allin escolhe o Hardcore Punk para procurar uma reacção através do choque, para uma sociedade “in which the social and historical setting of critical activity is a totality felt to be benign (free, apolitical, serious, uncharacterizable as a whole” (Said, 1983). Com uma música que vai contra tudo e todos, Kevin, com o pseudónimo de G.G. Allin, combate sobretudo a massificação do Punk que vê “as suas propostas serem esvaziadas do seu sentido original subversivo e entrarem no sistema das mercadorias como mais um produto disponível ao consumo”. (Gallo, 2008) Numa América feita de “pessoas ao invés de números”, os grupos Punk estabelecem-se como “neo-tribos” que se isolam e assumem uma estética própria e única. Com uma comunicação a partir de um sistema underground e artesanal, também os espaços se tornam uma premissa de expressão, e assim a comunidade Hardcore cria “gigs... com equipamentos rudimentares que produziam um som bruto, sem o trabalho de acabamento oferecido pelo aparato tecnológico como acontecia com as... bandas do circuito comercial” (Gallo, 2008). É nestes espaços que surgem as condições para tornar possível o apogeu expressivo das bandas deste circuito: a performance ao vivo. Para G.G. não é excepção, e começa desde o início da sua carreira a criar um registo performativo que não passa só pela música, mas pela abjecção. É este o principal foco de expressão que G.G. iria a utilizar em todas as performances ao vivo. O Hardcore faz o processo inverso do Dadaísmo onde “passara-se das performances espontâneas para o programa mais organizado e didáctico de uma galeria” (Goldberg, 2011). Da massificação Punk, o Hardcore passa para a espontaneidade e recupera elementos de performances Dadaístas: o insulto, o abjecto, a interacção directa com o público. Contudo, vemos semelhanças entre os concertos de G.G. Allin e a intervenção de Cravan em 1917 na Exposição dos Independentes em Nova Iorque onde: “chegou escandalosamente bêbado e, em delírio, desatou logo a dizer obscenidades ao público. De seguida começou a tirar a roupa. Nesse momento, a polícia arrastou-o dali para uma esquadra”. (Goldberg, 2011) No Punk também são frequentes as alusões sadistas e que vão ao encontro do gosto pela crueldade. E podemos ver não só nas performances mas na obra total de G.G. Allin, as seitas satânicas hodiernas divididas, pelos estudiosos, em quatro correntes:
“os racionalistas e ateus que consideram Satanás símbolo da razão e da busca do prazer, independentemente de qualquer vínculo moral e religioso; os ocultistas, que subvertem crenças e ritos religiosos; os satanistas "ácidos", entre os quais os ritos assumem sempre carácter orgiástico com o uso de droga (tendência teatralizada por muitos conjuntos de rock);
e, finalmente, os luciferianos, de antigas descendências maniqueias e gnósticas, onde o demónio aparece como princípio positivo”. (Eco, 2007)
É necessário compreender que estas quatro correntes sofrem uma modificação drástica na contemporaneidade e que muito do carácter ideológico presente nestas seitas se adaptaram de uma forma social, espacial e até material. Para G.G. Allin o satanás existe dentro dele, e não há por parte dos fãs uma adoração ao diabo, mas a uma pessoa que personifica um “comentário social acerca dos problemas de violência na raça humana” (Dino) e que acaba por mostrar uma atitude desprovida de moralismos, fazendo “algo que muitas pessoas gostariam de ter a coragem de fazer” (Dino). Claro que temos de ter em conta que muitas destas “adorações”/fanatismos a uma figura que representa um humano desprovido de restrições sociais e morais, parte muitas vezes de “síndromas psiquiátricos (ou) servem simplesmente para justificar comportamentos orgiásticos e sexualmente exagerados” (Eco, 2007). O uso de drogas e álcool na comunidade Punk é uma constante, e é um factor sempre presente em G.G. Allin, na sua caracterização, nos comentários, na expressão. Mas não é nesse aspecto que G.G. Allin justifica a sua performance e a mantém presente no equilíbrio entre crime e arte. Está na sua linguagem artística; e é aí que G.G. Allin se diferencia dos Dadaístas, dos satanistas de épocas anteriores: na linguagem da performance como comentário social a partir de uma identidade. E são vários os aspectos que legitimam essa expressão de repulsa e anarquia social física e moral. Não tem a matriz utilizada pela Black Mountain College onde “«A arte diz respeito ao Como e não ao Quê; não ao conteúdo literal mas à execução do conteúdo factual. É na execução - na forma como se faz – que se encontra o conteúdo da arte»” (Albers, 2007)
Buckminster Fuller e estudantes do Black Mountain College montam uma cúpula geodésica, 1948.
Em G.G. há um Como que se mostra na rebeldia, na abjecção; e um Quê que, por um lado se baseia num criticismo social individual, e também pela procura da reacção através do choque. Claro que são dois princípios utilizados por outros performers em Happenings que recorrem a elementos sociais como elemento de estudo e alvo de crítica, e que também utilizam a abjecção como instrumento de expressão performativa através da mutilação, a nudez ou a quebra da quarta parede através do confronto físico com o espectador. No movimento Punk esses elementos de performance têm sempre matrizes anárquicas que têm princípios tanto individuais como colectivos. Há uma ideologia colectiva na qual “eles sempre se declaram, antes de mais nada, punks” (Gallo, 2008). Como Ivone Gallo constata no seu estudo:
“Em torno destes posicionamentos indeterminados ocorrem fragmentações dentro do todo diversificado do punk e os mais puristas rejeitam a adesão ao anarquismo apontando este vínculo como um dos factores responsáveis pela perda da espontaneidade do punk que carregava isto como uma de suas características principais.”
Em G.G. Allin há um elemento social, mas também uma identidade própria na qual tem raiz já no seu estilo de vida que tem base em ideias anticapitalistas para combater o poder governamental e o comodismo da sociedade contemporânea. G.G. justifica este seu ponto numa entrevista onde defende que “o negócio da sociedade é ir à escola, arranjar emprego, casar, ter filhos, arranjar empréstimos, e cavar um buraco do qual nunca vais conseguir sair”.
Ele quer uma vida fora da mão governamental e das normatividades e tabus impostos pela sociedade. Farto de lidar com os “corpos dóceis” de Foucault, G.G. passa para a acção. A obra performativa de G.G. existe através de registo de vídeo. Não havendo um pretexto artístico para cada uma das suas intervenções, há uma unidade nestes vídeos que legitima as performances. Desde uma intervenção num evento de spoken word, a entrevistas na televisão, uma comunicação na Universidade de Nova Iorque, fora e dentro dos concertos, a espaços mais intimistas como a própria casa ou até mesmo o próprio funeral. Tal como é o caso do projecto de fotografia: ”The Brown Sisters” de Nicholas Nixon, onde quatro irmãs são fotografadas uma vez por ano durante 40 anos, o projecto ganha uma autonomia sobre o artista, que, no caso de Nixon perguntamos qual das mortes iria impedir a continuidade do projecto: a do artista ou a de uma das irmãs?
"The Brown Sisters" (Retratos 1975 e 2014) The Museum of Modern Art, New York. Cortesia do artista, Nicholas Nixon.
No caso de G.G. onde as intervenções não têm intenção artística, também não poderemos atribuir ao conjunto de intervenções uma unidade que não passa pela intenção do artista de ter um projecto concreto, mas onde se concretiza um registo pessoal e identitário ao qual podemos incluir numa matriz artística? Neste caso, o Hardcore Punk. A estética Punk, no contexto da performance “encontra-se” num impasse desequilibrado na medida que a legitimação do Punk se dá através da sua matriz anti cultural. Isto é; a partir do facto de que “o reconhecimento oficial dos museus e das galerias incitou os artistas mais jovens a encontrar caminhos menos convencionais para o seu trabalho” (Goldberg, 2011), é-nos demonstrado que a própria contracultura do Punk se legitima por uma “postura intencionalmente contrária à estagnação e ao academismo a ele associados” (Goldberg, 2011) o que torna uma estética que preza pela sua independência, susceptível de massificação, na sua matriz anti capitalista e antiautoritária. E esta legitimação do feio já tinha sido recordada por Adorno relativamente a outras:
“correntes como o Surrealismo e o Expressionismo «cujas irracionalidades se tornaram desagradáveis... atacavam o poder, a autoridade e o obscurantismo» que a recusa das «formas da vida bela na sociedade feia» não pode deixar de ser fatalmente desfigurada pelo ressentimento e que a arte deve «assumir o que é banido como feio, não já para integrá-lo, para mitigá-lo...mas para denunciar, no feio, o mundo que o cria e reproduz à sua própria imagem (...) A arte acusa o domínio (...) e dá testemunho daquilo que foi removido e renegado daquele domínio». Hoje, todos... reconhecem como «belíssimas» (artisticamente) as obras que tinham horripilado os seus pais. O feio da vanguarda foi aceite como novo modelo de beleza e deu origem a um novo circuito mercantil.” (Eco, 2007)
Em resposta a esta massificação no Punk, G.G. Allin utiliza, antes da abjecção, a obscenidade. Em várias fases da história da sociedade há um crescente cuidado com a higiene, que se transforma de acordo com padrões sociais, morais e higiénicos, como é demonstrado, por exemplo, em “O limpo e o sujo” de Vigarello, onde ao longo do livro lemos as diferentes modificações de práticas de higiene cujos costumes e cuidados “estão simultaneamente próximos e infinitamente distantes dos nossos “. (Vigarello, 1985) E essa discriminação social pelo corpo e abjecto mostra-se logo desde a Idade Média no contexto da infecção da peste: “É preciso restringir os contactos e, portanto, as possíveis transmissões. No caso dos banhos, a dinâmica do isolamento atinge, contudo, a própria imagem do corpo e do seu funcionamento”. (Vigarello, 1985) Mas também a história contribui também para dar mais importância ao abjecto, principalmente durante o Renascimento quando Rabelais escreve Gargântua e Pantagruel e o “obsceno rabelaisiano já não parece... como característica plebeia, tornando-se sobretudo linguagem e comportamento da corte real. E não só.” (Eco, 2007)
O gigante Gargântua, ilustração de Gustave Doré, 1873.
E ainda hoje restam marcas desta passagem de costumes praticados no “gueto carnavalesco” , transferidos para a literatura culta, onde se torna “sátira do mundo dos doutos...” (e assim) “assume uma função filosófica” (Eco, 2007). Esta transformação social tornou-se possível apenas numa fase onde a sociedade “ já sustenta a prevalência do humano e do terrestre sobre o divino” (e com isto) “o obsceno torna-se orgulhosa afirmação dos direitos do corpo”. (Eco, 2007) Houve sempre desde Príapo, um pudor “com tudo aquilo que é excrementício e tudo que se refere ao sexo” (Eco, 2007). Contudo, o “sentido de pudor mostrou- se variável segundo as culturas e os períodos históricos”, e em algumas culturas essa evidência da abjecção “contribuía para tornar evidente a beleza de um corpo... mas nas culturas em que existe um forte sentido do pudor manifesta-se o gosto da sua violação, através do oposto do pudor, que é a obscenidade” (Eco, 2007). É assim que G.G. se manifesta: por “comportamentos obscenos por raiva ou provocação” (Eco, 2007). Mas que não são comportamentos com teor cómico, e essa recusa do cómico, é sim, intencional por parte de G.G. cujas performances pretendem realçar uma certa animalidade e conteúdo ofensivo, a nível físico e moral. “Um disco pode confrontar pela capa e pelas letras. Uma entrevista com um músico pode chocar pelo seu teor. Porém, essas mídias, junto com as gravações de vídeo, mesmo que confrontem, não possuem a potência de um show.” (Carvalho, 2016) Hoje, estamos inseridos na “sociedade do espectáculo” do Debord: “caracterizada pela degradação do ter e pelo reinado do aparecer, sendo que as relações entre os homens já não são mediadas por coisas mas por imagens... os indivíduos consomem através das imagens, aquilo que lhes falta” (Ferreira, 2006). É esta condição constante de estar no mundo que torna o trabalho performativo de G.G. Allin numa unidade. A abjecção, a provocação e o choque existe dentro e fora do palco, nas intervenções na rua, na capa dos álbuns como é o exemplo de Brutality and Bloodshed for all que subverte o slogan patriota de “Liberty and Justice for all” enchendo a capa de sangue, onde a à frente de uma bandeira do Estados Unidos assume cores degradantes e fica atrás de um manequim “arrancado” e exibido por G.G. como se dissesse que a justiça pode ser arrancada, estrupada, e vendida no seu estado mais pútrido.
Capa do album "Brutality and Bloodshed for All", 1993.
Mas os concertos são o auge da expressão de G.G.; o objectivo é combater a normalidade de um concerto típico: “uma estrutura, uma organização, um horário para começar e acabar, um set de músicas, e a separação entre plateia e músicos” (Carvalho, 2016). Na estética Punk, durante um concerto, são vários os elementos de confronto utilizados (especialmente no caso de G.G):
“artistas notadamente bêbados e narcotizados, felação encenada, agressões verbais dos músicos com a polícia e os seguranças, os pulos do palco, homens vestidos de mulheres, homens nus, mulheres nuas, a nudez misturada com violência... os fluxos corporais: suor,
sangue, vómito, catarro, fezes. Esses fluxos podem ser trocados entre músicos e plateia ou entre os membros da plateia, ou serem expostos pela banda. Boa parte disso tudo confronta principalmente com a moral e os bons costumes.” (Carvalho, 2016)
G.G. Allin durante um concerto em 1992.
Contudo, os fluxos corporais, continuam a ser aceites em sub-culturas como no caso de práticas como
“a ingestão de sémen na prática de sexo oral; o mesmo em relação ao líquido menstrual e a secreção vaginal. A urina é objecto de fetiche no golden shower... As fezes são também objectos fetichistas... o beijo grego... Mas a carga simbólica do sangue, do corte, talvez seja a mais extrema, pois não há a “chuva vermelha” – todos os outros fluidos são aceitáveis, mesmo que em subculturas. (Carvalho, 2016)
No Punk, a mutilação através do corte para provocar o derrame de sangue, serve para transmitir “uma violência para si, que envolve o outro” (Carvalho, 2016). E esta envolvência concretiza-se numa matriz site specific por parte da estética Punk; os locais de concerto devem estar degradados, incompletos, fechados, decadentes e sujos. “O sangue é importante na cultura principalmente pelas doenças relacionadas a ele: a sífilis, a hepatite, a Sida.” (Carvalho, 2016). Que são doenças que resultam de comportamentos associados muitas vezes à cultura Punk: os desvios sexuais e o uso de drogas. Uma ideia de fluxo, de um corpo que entra em experimentação com os factores directos, que surgem numa ambiência e que se misturam com o organismo do performer, já tinha sido encontrada em várias performances do grupo “Fluxus”. Contudo, o que o este grupo dos anos 60 pretendia era “procurar e despoletar a criatividade latente no ser humano” (Goldberg, Fluxus) no sentido de quebrar barreiras entre categorizações artísticas, que criava a ideia de fluxo no sentido de experimentação sobre material artístico.
Performance "Piano activities" durante o Festival Internacional Fluxus, Alemanha, 1 de Setembro 1962. The Museum of Modern Art, New York.
Nestas performances de concertos Punk, esse fluxo não é o da quebra entre barreiras de técnicas artísticas, mas de um fluxo que existe entre a performance, um estado de identidade presente numa expressão artística ou pessoal, e que entra em contacto com factores mais escatológicos e abjectos. E em G.G., existe um fluxo deste tipo no decorrer das suas performances; o corpo está em total abertura para o mundo e para a sociedade, e inclusive para o público que assiste aos seus concertos. Vemos que na estética performativa do Punk existem vários elementos performativos recuperados de outros movimentos artísticos da arte da performance, e G.G. Allin, consegue da forma mais directa, extrema e nociva, revisitar elementos artísticos para um contexto social que pede manifestações de anarquia, a luta pelo culto da personalidade, e o poder das minorias face às exigências normativas da sociedade e dos poderes de controlo governamentais. A partir de elementos artísticos e históricos, a performance constante de G.G. Allin purifica o abjecto, transformando-o em linguagem/expressão artística. E apesar desta abjecção explícita, do atentado à moral e a todas as normas sociais:
“G.G. Allin is an entertainer with a message to a sick society. He makes us look at it for what we really are. The human is just another animal who is able to speak out freely, to express himself clearly. Make no mistake about it, behind what he does is a brain”
John Wayne Gacy
Pedro Vaz
Nasceu em 1995, em Portalegre. Terminou o Mestrado em Estudos Artísticos na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde durante esse tempo integrou em projectos musicais como baixista, em "Pussywhips" e "Marble Avenue". Integrante em projectos de performance como o "Movimento sem prega" e as "Ocupações literárias" do grupo "SESLA" onde está integrado já há 5 anos.
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Referências
Albers, A. (2007). Black Mountain College, Carolina do Norte. In R. Goldberg, A arte da Performance (p. 151). Londres: Orfeu Negro.
Carvalho, D. (2016). O sangue no show de rock como dispositivo de confronto. Revista Lugar Comum, 7. Dino. (s.d.).
Eco, U. (2007). O Feio o cómico e o obsceno. In U. Eco, A história do feio (p. 131). Milão: Difel.
Ferreira, S. (2006). Paradigmas estético-culturais ou subjetivar-se na contemporaneidade. In S. Ferreira, Marcas do abjecto (p. 14). Porto Alegre.
Gallo, I. (Junho de 2008). Punk: cultura e arte. Varia Historia, p. 6.
Goldberg, R. (2011). A estética Punk. In R. Goldberg, A arte da Performance (p. 230). Londres: Orfeu Negro.
Goldberg, R. (s.d.). Fluxus. Obtido em 25 de Janeiro de 2016, de A arte da performance: aartedaperformance.weekly.com/fluxus.html
Said, E. (1983). Opponents, Audiences, Constituencies and Community. In H. Foster, The Anti-Aesthetic (pp. 135-136). Port Townsend, Washington: Bay Press.
Vigarello, G. (1985). A água que se infiltra. In G. Vigarello, O limpo e o sujo (p. 16). Lisboa: Fragmentos LDa.
https://www.youtube.com/watch?v=VPIfkWQ6_z4 / https://www.youtube.com/watch?v=i_-88Gig1Kc&t=1177s